Para o bem da
democracia, juízes deveriam ser levados ao banco dos réus.
Por Alipio Freire
O achincalhe, a
chicana, o deboche do Supremo Tribunal Federal (STF), frente às leis que regem
(ou, pelo menos, deveriam reger) suas decisões, parecem não ter limites. As
prisões ilegais dos réus do processo conhecido — não por acaso incorretamente —
pela alcunha de “mensalão”, além de um atropelo às leis vigentes, segue a
batida das piores tradições golpistas da direita brasileira: foi decretada em
vésperas de feriado prolongado, quando a dispersão das organizações e
movimentos populares e democráticos impede toda reação contra o ato.
Assim foi com o Ato Institucional Número Cinco
— AI-5 (numa sexta-feira de meados de dezembro — dia 13); assim tentou o
fraudador da Constituição — doutor Nelson Jobim, então ministro da Defesa do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na passagem do ano de 2009 para 2010,
contra o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), do também
então ministro Paulo Vannuchi, hoje — com todo mérito — eleito membro da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
Toda vez que uma decisão importante e de
interesse da maioria for tomada às vésperas de um feriado longo, em longínquos
dias de dezembro, ou em qualquer momento de desmobilização, estejamos alertas:
trata-se de um golpe contra os interesses da maioria da sociedade.
Aprendamos — mas jamais repitamos.Ou seja,
método tipicamente da direita, tão velho quanto sonhar agachado — há quem
confunda a serventia da posição e a use para seus devaneios, sendo que o
presidente do STF — doutor Joaquim Barbosa e a maioria dos seus pares parecem
especializados neste metier. Enfi m, existem sonhos de todo tipo e qualidade...
Há
os que sonham, por exemplo, com a impunidade — exatamente por isto se agacham
céleres perante qualquer possibilidade de ascensão que vislumbrem, tornando-se
muitas vezes vassalos mais realistas que seus senhores.
A Corte Suprema do país
é isto. E não se trata apenas de mudar os nomes que a compõem, embora de
imediato isto fosse o desejável. Quem sabe um impeachment. Por essas e outras,
ou abrimos através de uma séria reforma política essa caixa-preta, ou as nossas
conquistas democráticas retroagirão. Os venais devem ser punidos. Estejam nos
executivos, nos legislativos ou nos judiciários — mas punidos na forma da lei.
E a independência dos
Três Poderes jamais deve servir de pretexto para a omissão e a crítica de uns
sobre os outros. Lembram-se das fanfarronadas do doutor Gilmar Mendes, quando
presidente do STF, em seus comentários sobre decisões do Executivo e do Legislativo?
Aliás, assusta-nos a
presteza com que o atual ministro José Eduardo Cardozo, da Justiça (PT), tem
atendido e cumprido as ordens emanadas de certos setores da escancarada
oposição de direita, ultradireita e de pusilânimes em geral. E não apenas no que
diz respeito à disponibilização de forças federais frente aos mais tolos
conflitos sociais.
No presente caso, é
imperdoável a postura do ministro Cardozo frente à “fuga para a Itália” do
ex-diretor do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, entrando imediatamente com o
pedido de sua extradição junto ao governo de Roma. O caso Henrique Pizzolato
(cidadão com dupla nacionalidade) é uma das maiores aberrações do processo em
curso: todos sabemos (é mais que público) que o doutor Joaquim Barbosa ocultou
cínica e despudoradamente as provas de inocência do réu, que constavam do
processo.
Ora, o ministro Cardozo
teria feito melhor para a nossa democracia, se houvesse contestado o doutor
Barbosa e — pelo menos — forçado o esclarecimento da questão. Mas, se for possível
o julgamento do senhor Pizzolato por um tribunal italiano (como ele pretende),
a desmoralização do STF, do doutor Barbosa e de seus parceiros de venalidade,
ganhará dimensão internacional. E, junto com a caterva, irá água abaixo o nome
do ministro Cardozo...
A rigor, o
comportamento do STF (com as honrosas exceções de alguns juízes), coadjuvado
pela grande mídia comercial, não é o da busca da Justiça — papel defi nido pela
Constituição. Ao contrário: é a busca da estigmatização e linchamento dos réus
do “mensalão” que, de fato, enquanto tal jamais existiu(*), embora outros atos
ilícitos tenham sido cometidos, como admitem mesmo alguns dos réus. Em qualquer
democracia ou república, o linchamento é o oposto de toda Justiça. E aqui,
convêm algumas considerações e perguntas:
Exceto o Partido
Comunista do Brasil (PCdoB), que tomou atitude firme e pública durante seu
Congresso no final da semana passada, onde andam as forças de esquerda, os
partidos e demais entidades democráticas deste país? Pretendem ganhar eleições
ou barganhar cargos à custa mesmo da injustiça e arbítrio das forças saudosas
da ditadura? A manifestação da Executiva Nacional do próprio Partido dos
Trabalhadores — ao qual pertenceram vários dos réus, foi pífia, de tão tímida.
Mas, deixemos de lado
as instâncias formais e subalternas. Reportemo-nos diretamente ao poder de fato
do PT, que migrou e se metamorfoseou ambulante e sucessivamente do grupo de
“compadres sindicalistas”, para as Caravanas da Cidadania; destas para o
Instituto da Cidadania; passeou em seguida pelos aparelhos da Presidência da
República e, hoje, se manifesta através do Instituto Lula, onde senta praça.
Onde foi parar toda
essa gente? Esperam se ver livres de companhias hoje “incômodas”, das quais fi
eram todo tipo de uso e agora descartam? Temem se chocar com a direita que
integra as bases de governabilidade dos seus sucessivos governos? Sim,
realmente — com a política que desenvolveram acumpliciados com alguns dos hoje
réus, fica difícil sequer se referir ao julgamento do ex-presidente Fernando
Collor de Mello, cujo processo jaz em alguma gaveta há mais de 20 anos, “à
espera de ser julgado”.
E as correntes do PT?
Até o momento, exceto o líder de O Trabalho, Markus Sokol, os representantes
das demais tendências não disseram a que vieram. Pensam se livrar de alguns
camaradas que nas disputas internas se utilizam de métodos muitas vezes da
direita para abater seus adversários? Vão agir como alguns deles que hoje
criticam e até execram, mas aos quais já se aliaram em diversos momentos?
Algo precisa ser dito,
sem rebuços. Independentemente de qualquer crítica que tenhamos (e temos
muitas, algumas graves) ou venhamos a ter a qualquer dos réus petistas, todos
eles se comportaram com uma dignidade exemplar: em nenhum momento hesitaram em
assumir para si as responsabilidades perante as acusações pelas quais
respondem. Jamais sequer cogitaram em lançar mão do espúrio direito da “delação
premiada”, que transforma cada cidadão brasileiro num potencial dedo duro. Se
há algum outro petista (dirigente ou não) envolvido no assunto, nunca saberemos
— pelo menos, através desses homens presos.
Às vezes nos parece
haver um certo júbilo de uns e outros, frente a essas prisões e linchamentos.
Algo como alguns personagens de esquerda que comemoraram o fi m da antiga União
Soviética — a Queda do Muro de Berlim, promovida pela direita... E vejam no que
deu. Isto acontece sempre que nos aliamos ou nos omitimos perante o inimigo.
Diria Dercy Gonçalves: a perestroika da vizinha está presa na gaiola. Mas, a
omissão, a covardia, o permanente “senso de oportunidade” têm sempre um preço.
Como escreveu em mensagem sobre o assunto, numa lista, a nossa companheira
Eliete, “Àqueles que não se rebelam contra as injustiças: amanhã será tua
vez!”.
Mais que Dirceu,
Genoíno, Delúbio e outros, mais do que o PT, e muito mais que qualquer
divergência política ou de métodos (estas últimas, as mais graves); mais que os
resultados eleitorais de 2014 — ou a não conquista do tão almejado cargo de
assessor de porteiro na Embaixada do Brasil em Uganda perseguido por tantos;
mais que o fato de não petistas também estarem a ser igualmente punidos de
forma arbitrária; o que está em jogo são conquistas democráticas conseguidas
com o sangue e o suor de milhões de brasileiros. Silenciar neste momento é
capitular. Perder uma eleição é uma derrota conjuntural. Perder conquistas
democráticas é uma derrota estrutural. A defesa das nossas instituições
democráticas é um dever de todo e toda cidadã.
(*) O termo “mensalão”
foi criado pela grande mídia comercial, para designar um suposto crime de
corrupção que implicaria em um pagamento mensal regular que seria feito por
dirigentes petistas a diversos parlamentares federais, para que apoiassem/
votassem as propostas do Partido dos Trabalhadores no Congresso. Já foi
sobejamente provado e aceito que tal prática jamais aconteceu. A insistência no
uso da expressão faz parte de uma campanha de criminalização e difamação dos
réus ora processados.
Alipio Freire é
jornalista, escritor e membro do conselho editorial do Brasil de Fato.