terça-feira, 7 de agosto de 2012

A inocência de José Dirceu

O debate na mídia quanto ao chamado caso do “mensalão” vai se constituindo cada vez mais como uma realidade à parte do julgamento concreto. Como bem destacou a ombudsman do jornal Folha de S. Paulo, nesta fase do julgamento a imparcialidade da cobertura midiática deveria ser um mantra, mas efetivamente não é o que tem acontecido.

Por isso a necessidade que sinto de expor meu ponto de vista de forma clara, taxativa e sem rebusques para que seja claramente compreendido: sob o ponto de vista estritamente jurídico, em meu entender, não houve prova suficiente no processo que possam demonstrar a existência do chamado “mensalão” e o ex-ministro José Dirceu deve ser inocentado de todas as acusações contra ele formuladas.

Como o processo é extremamente volumoso e composto de uma infinidade de documentos e depoimento, versando sobre um rol extenso de fatos, e tratando-se o presente artigo apenas de um texto opinativo de caráter jornalístico, vou cingir-me apenas às acusações que foram dotadas de efeito politico-midiático.

Por tratar-se de processo complexo, relativo a um grande numero de réus e a um número maior ainda de acusações e condutas imputadas, escolhi tratar apenas do que parece chamar mais atenção da opinião publica. Obviamente a referida complexidade e amplitude do caso implica que existam condutas que merecem punição e reprovação ética.

A própria pratica do chamado caixa 2, admitido pelos réus, é pratica criminosa e integralmente antiética. Se no plano criminal pode não implicar consequência concreta pela incidência da prescrição, no plano politico o efeito é muito incisivo. Com o reconhecimento de tal pratica por seus dirigentes, o PT declarou o divórcio com seu compromisso histórico de mudar a ética reinante na politica brasileira desde o descobrimento, igualou-se a uma tradição espúria, cujo real sentido é mais amplo e grave que a expressão de mero “malfeito” costumeiramente usada.

Junto com o caixa 2 o PT aceitou um jogo que corrompe sistemicamente o regime democrático em todo o mundo e, ao não punir clara e ostensivamente no plano ético partidário, seus militantes que participaram desta pratica, abriu mão de  uma experiência política que ousasse ser alternativa à hegemonia de práticas aéticas e patrimonialistas que caracterizam a vida democrática no mundo contemporâneo.

Como tal tipo de prática jamais seria aceita pela militância de base do Partido, a democracia interna do PT corroeu-se. De uma usina de ideias de transformação política e social que era, o PT cada vez mais se aproxima de reduzir-se a um instrumento de operações políticas concretas e eleitoreiras. Sem o oxigênio da democracia crítica de base o partido vai sendo sufocado pelo espectro dos compadrios burocráticos e se limitando ao debate do que “ganha a eleição” e não do que transforma a vida das pessoas e da sociedade.

O empobrecimento do debate interno traz como pena o personalismo de suas lideranças e o afastamento progressivo dos quadros mais comprometidos com a utopia da mudança

O PT e a esquerda brasileira, independentemente do resultado que do julgamento da ação 470 pelo STF, já foram condenados a uma pena politica que não tem prazo certo para terminar seus efeitos, os quais poderão acarretar até mesmo a morte do partido, ao menos como possibilidade de utopia para os que creem em práticas políticas eticamente mais adequadas.

Ocorre que se no plano politico e ético as praticas evidenciadas pela então direção do PT se mostraram recrimináveis, sob o ponto de vista jurídico não se pode ter como certa a chamada pratica do “mensalão”, na forma divulgada pela mídia; assim, de forma alguma o ex-ministro José Dirceu deve ser condenado criminalmente pelo que lhe foi imputado na denúncia formulada pelo Procurador Geral da República.

Tem-se entendido como “mensalão” a suposta criação de um esquema criminoso de compra de votos parlamentares para aprovação de projetos de iniciativa do Executivo ou de interesse do governo no Congresso com o uso de dinheiro publico para tanto. Quando a expressão “mensalão” foi criada referia-se a pagamentos mensais supostamente feitos a parlamentares.

A denuncia do PGR fundou-se no depoimento de Roberto Jefferson para fundamentar a acusação inicial e deveria, no decorrer do processo, provar a referida acusação. Entretanto o que dele resultou, em apertada síntese, foi o seguinte:

1 – Ouvidas mais de 600 testemunhas no processo não houve uma sequer que sustente a existência de algum esquema ou iniciativa organizada de compra de apoio parlamentar; também não foram apresentados documentos, dados fiscais ou bancários, filmagens ou gravações telefônicas, imagens de reuniões, nada que ofereça a menor demonstração da existência o suposto esquema;

2 – Não há um parlamentar que tenha realizado saques ou recebimentos mensais;

3 – A relação entre votação de reformas constitucionais e pagamentos recebidos pelos parlamentares estabelecida na denúncia foi abandonada pelo PGR nas alegações finais, que passou a apontar outros projetos que teriam sido objeto do suposto crime. Obviamente tal argumento não será apreciado pela Corte Suprema por ter sido trazido apenas no final do processo, sem direito a ser refutado pela defesa. Nenhuma prova sequer foi apresentada que relacione os pagamentos recebidos a votações de projetos; A defesa, contudo, apresentou extenso estudo feito com base em dados oficiais das votações da CÂmara no período de 2003 e 2004 que demonstra a inexistência de relação entre os saques feitos pelos partidos e as votações dos projetos de interesse do governo. Aliás, nos meses de repasse mais elevado o apoio às iniciativas do governo teve queda significativa;



4 – Não há provas de que os recursos que originaram os saques feitos pelos partidos tenham origem pública. O bônus de volume da publicidade feita pelo Banco do Brasil através da agência de Marcos Valério foi demonstrado como de propriedade da agência e não do banco, inclusive conforme entendimento do Tribunal de Contas, contrariando o alegado na denúncia. Conforme demonstrado o que pertencia ao Banco do Brasil por cláusula contratual era a bonificação de desconto, que tem nome semelhante mas não é a mesma coisa que bônus de volume como pressupunha a denúncia. Também os recursos advindos do Fundo Visa-Net são de origem privada, como demonstrado por declarações de testemunhas, da própria companhia e de documentos. O Banco do Brasil é acionista do Fundo, mas não possui seu controle. Embora as alegações finais do PGR falem em desvio de recursos de órgãos públicos e empresas estatais, não aponta quais seriam estes órgãos e empresas estatais. Não há, portanto, qualquer prova minimamente consistente nos autos do processo que ateste a existência do mensalão, entendido como esquema de compra de votos de parlamentares;

5 – Não se pode falar em provas consistentes de que José Dirceu comandou os atos de dirigentes do partido que implicaram a realização dos pagamentos e respectivos saques de partidos políticos e parlamentares. As demais acusações formuladas contra ele também não foram demonstradas. O depoimento de Jefferson em relação à participação de José Dirceu nos fatos foi refutado por diversas testemunhas, que não figuram como réus no processo. Os testemunhos contra José Dirceu foram dados por réus no processo e foram refutados por número maior de testemunhas não figurantes como partes do processo;

6 – O próprio procurador-geral da República reconheceu em sua sustentação oral a não existência de provas documentais e materiais contra José Dirceu. Após sete anos de investigação, não foram apresentados dados bancários, fiscais, gravações telefônicas, filmagens de reuniões etc. Ou seja, nenhuma das provas que costumeiramente têm sido produzidas em casos de acusações semelhantes.

Com relação a José Dirceu, nem a autoria nem a materialidade do delito foram demonstradas de forma minimamente razoável de se sustentar condenação. Condená-lo seria um aviltamento dos mais comezinhos valores e princípios constitucionais que governam nosso processo penal

Em sua sustentação oral, o procurador centrou seus argumentos em perguntas. Numa fase final do processo como essa deveria ter apresentado respostas.

*Este é um artigo do colunista Pedro Serrano, e não representa as opiniões do grupo de professores da PUC-SP que analisa o julgamento do chamado “mensalão” em parceria com a revista CartaCapital

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