Por: Vander Fornazieri
Ele frequentou as
páginas do Pasquim na época de Ziraldo e Jaguar, enquanto pensava em abandonar,
pela segunda vez, a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Não colou
grau, mas nos anos seguintes emplacou dezenas de personagens nas páginas da
imprensa brasileira em cartuns e tiras impagáveis como as do Condomínio,
Overman, Piratas do Tietê e Los 3 Amigos, esta a seis mãos, com os parceiros
Glauco e Angeli.
Acho que os partidos
estão apanhando. Não estão conseguindo acompanhar o pique do país. A dinâmica
da sociedade brasileira mais uma vez está deixando as estruturas partidárias
para trás
Filho de professor da
USP, criado no bairro paulistano de Pinheiros, Laerte sempre teve laços fortes
com a militância política de esquerda. Na faculdade começou seu namoro com o
Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, relacionamento que o aproximou do
movimento sindical do ABC. Em 1978, desenhou histórias do João Ferrador,
personagem criado por Antônio Carlos Félix Nunes para a Tribuna Metalúrgica.
Naquele ano fundou, com o amigo jornalista Sérgio Gomes, a Oboré, marco da
imprensa sindical, em atividade até hoje. Publicou livros, editou revistas, fez
roteiros para a TV Pirata, TV Colosso e Sai de Baixo, programas da Rede Globo
exibidos ao longo dos anos 1990.
Inquieto, Laerte sempre
questionou tudo, inclusive a si mesmo. Explicitou dúvidas. Assumiu crises. E
recentemente deu uma guinada radical. Aos 60 anos, dois filhos adultos,
namorada firme, carreira sólida, resolveu se “montar”. Depilado, maquiado,
enfeitado com bijuterias e vestido com roupas de mulher, saiu à rua. Não era um
atrevimento de artista. Foi o início da nova vida de um “homem com identidade
de gênero feminina”.
Você tentou ser músico…
É, sempre toquei muito
mal. Tive aulas de piano com minha avó quando era criança. Foi com essa bagagem
técnica que cursei três anos de música na ECA e caí fora para desenhar. Eu já
fazia alguns trabalhos para o jornal do centro acadêmico. Depois prestei novo
vestibular e voltei para a ECA para estudar Jornalismo. Foram mais três anos
até cair fora de novo. Nunca me formei em nada.
E a militância
política?
Começou no movimento
estudantil. Eu conheci o Partidão na USP, em 1973, em pleno governo Médici.
Como foi a fundação da
Oboré?
Eu e o (jornalista)
Sérgio Gomes começamos essa experiência de imprensa sindical em 1974, nos
(Sindicato dos Trabalhadores) Têxteis. Mas ela foi interrompida porque a
diretoria entrou em cana. Em 1975, o Sérgio também foi preso com outros
militantes do Partidão. Eu escapei. Três anos depois o movimento sindical
renasceu no ABC e voltamos a nos empolgar com a ideia de estimular os
sindicatos a construir os próprios órgãos de imprensa. Nossa intenção com a
fundação da Oboré, seguindo um conselho do próprio Lula, era dinamizar o
jornalismo dos sindicatos.
Foi
um processo de construção.
Era parte da nossa
proposta fazer os sindicatos entenderem que a estrutura de comunicação, assim
como a assessoria jurídica ao trabalhador, tinha lugar no movimento. A
publicação de charges e quadrinhos nos jornais sindicais foi um upgrade. O
trabalhador sentiu que havia na sua imprensa a mesma ferramenta que existia nos
grandes jornais.
De onde surgiu o bordão
“Hoje eu não tô bom”, do João Ferrador?
Foi criação do próprio Lula. Com aquela voz rouca ele
pediu: “Faz aí o João Ferrador dizendo ‘hoje eu não tô bom’”. O personagem
virou símbolo de uma vontade política. Era um agitador de ideias.
O Henfil fez parte
dessa história e também da fundação do PT.
Ele estava em Natal,
mas nós vivíamos em contato. Ele veio para São Paulo e começamos a trabalhar
juntos, inclusive para a Tribuna. Era uma pessoa extraordinária, com capacidade
de criar ininterruptamente. Discutíamos muito sobre tudo: um novo partido,
abertura, anistia. Vínhamos de uma frente de oposições, o que para mim ainda
era a melhor tática para enfrentar a ditadura. Acreditava que aquele momento de
pseudoabertura era um golpe para enfraquecer a oposição, que deveria se manter
unida.
O que resultou dessas
discussões?
Era tudo uma ilusão.
Havia várias forças interessadíssimas em organizar seus partidos. O Henfil
participou ativamente da construção do PT, que não era uma ideia exclusiva da
esquerda. Pessoas do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo também estavam
interessadas em participar. Foram a congressos e depois saíram. Foi aí que a
coisa ficou mais ideologizada. O fato é que eu e o Henfil nos desentendemos, e acho que o tempo provou
que ele estava certo (risos).
E a anistia?
A Lei da Anistia serve
hoje de salvaguarda para torturador. Na época as pessoas não tinham clareza,
elas queriam ver os amigos (exilados) de volta. A gente se pegou no argumento
da anistia possível, do depois a gente vê como fica.
Você foi censurado?
A única vez foi na
Gazeta Mercantil, já no governo Sarney. Eu já estava mais ainda à esquerda e
fiz alguma coisa que não agradou ao jornal. Eu disse: ué, finalmente, consegui!
(risos) Sempre fui muito cagão. Media com a régua do meu temor até onde podia
ir. Nos jornais sindicais também sabia que não podia pregar a revolução armada.
Charge tem de fazer
cabeça?
Quando comecei a me vestir com roupa feminina
e sair à rua, a sensação mais forte que tive foi a da descoberta de que isso é
possível.Eu já sabia que ia me encantar, mas não sabia que era tão possível.
Não acredito que o
cartum editorial faça cabeças novas. Acho que ele age como reforçador de
posições já partilhadas por um determinado grupo.
Falando em grupo,
quando você saiu do Partidão?
Foi em 1984, na mesma
época em que saí da Oboré, que já era uma espécie de núcleo dissidente. Quando
os dirigentes do PCB voltaram do exílio deu-se aquele choque. A gente descobriu
que eles eram muito antigos (risos) e não estavam entendendo nada.
Hoje você tem simpatia
por algum partido?
Tenho simpatia por
várias pessoas. Acho que os partidos estão apanhando. Não estão conseguindo
acompanhar o pique do país. A dinâmica da sociedade brasileira mais uma vez
está deixando as estruturas partidárias para trás. Vejo disputa de espaço muito
intensa. Volta e meia a gente vê que os próprios trabalhadores estão entregues,
como no caso de Jirau (operários da construção da usina hidrelétrica de Jirau,
em Rondônia, lutam por melhores condições de trabalho). Não tinha sindicato
para defendê-los, não tinha imprensa para cobrir, não tinha nada.
Como está a relação da
mídia com o mundo do trabalho?
Tá uma vergonha. Existe uma tendência de despolitizar o
momento sindical, de transportar os assuntos para a área técnica. Vira tudo
caderno de economia.
A imprensa precisa de
regulamentação?
Tem de ter algum tipo
de discussão, em que termos eu não sei. Boa parte das suspeitas e do pé atrás
da imprensa em relação a isso é justificada porque passamos por uma ditadura,
na qual, aliás, ela mesma teve papel vergonhoso. Mas a imprensa gosta de se
imaginar campeã de todas as liberdades, e não é bem assim. No Brasil, tem se
estruturado em torno de interesses particulares e de empresas. Acho que hoje nem a imprensa se
diz imparcial.
E o humor?
Eu ando muito cansado
do humor. Ele virou um certo problema. Passo o tempo inteiro questionando se o
que estou produzindo é humor. Como é que o humor consegue acompanhar um momento
de transgressão, de enfrentamento ideológico? O humor tem feito isso ou ele só
conseguia fazê-lo na época em que isso era evidente, quando existia uma
ditadura e uma oposição? E mesmo nessa época maniqueísta o humor falava com
quem? Às vezes acho que o humor brasileiro, apesar de rico e produtivo, se
distancia da vida da população. Várias vezes a gente constata a presença do
humorista não como um sujeito alinhado às ideias pioneiras, de transgressão, de
enfrentamento, mas às ideias feitas, ao preconceito.
Parece que você ainda
está construindo esse pensamento.
Hoje de manhã estava
pensando nisso. Quando o movimento gay mundial conseguiu finalmente traçar uma
política séria de garantia de direitos civis e expor a ideia de que gay é um
ser humano, vem o Millôr Fernandes e diz que homossexualidade é uma “questão de
furo íntimo”. É um trocadilho genial, como quase tudo que o Millôr fez, mas não
tem nada a ver com avanço, com solidificar uma visão humanista.
Então você deve
estranhar o tipo humor que se faz hoje.
Estranho, mas continuo
defendendo a liberdade de imprensa, de expressão. Sou contra a censura. Acho
que até o Proibidão (show de humor politicamente incorreto) deve ser possível.
Mas tem de ser discutido. Tem de estar ao alcance da crítica.
Num passado não muito
distante você também explorou o preconceito.
Sim. É muito fácil para
o humor frequentar essa área porque ele trabalha a partir de um repertório
comum para o autor e a audiência. Senão a piada não acontece. Por exemplo:
todos precisam partilhar a ideia de que mulher dirige mal. Mas existe humor de
todas as facções. Tem o humor de resposta.
Uma vez você disse que
a vida é muito chata.
Quando a gente diz que
a vida está chata, é uma incapacidade nossa de enxergar o que está se passando.
Outra forma de dizer isso talvez seja “estou me sentindo bloqueado em
determinadas vontades, desejos”. Essa
falta de clareza de ideias, que muitas vezes não podem ser trilhadas por causa
de proibições internas, nos faz achar que a vida está chata. Aí a gente fica
esperando que a vida nos abra perspectivas, quando é o contrário que tem de acontecer.
Como foi virar um
transgênero?
Ou de assumir minha
transgeneridade… Acho que a falta de compreensão dessa possibilidade é que me
fez dizer que a vida estava chata. Quando comecei a me vestir com roupa
feminina e sair à rua, a sensação mais forte que tive foi a da descoberta de
que isso é possível. Eu já sabia que ia me encantar, mas não sabia que era tão
possível. O fato de ser um negócio realizável é o suprassumo. É muito legal.
O fato de você ser uma
pessoa conhecida, um profissional respeitado, facilitou esse processo?
Por ter essa natureza
cagona, precisei desse tempo todo, dessa idade, de estar numa situação em que
as perdas são administráveis. Não que eu não tenha corrido riscos, mas estava
pronto. Veja que a maior parte das pessoas transgêneras, travestis e
transexuais assume as barras muito jovem, correndo riscos e colocando a vida
inteira na balança. Isso serve para eu ter uma medida do que é coragem.
Existe uma relação
entre os recentes ataques homofóbicos e a maior visibilidade dos vários grupos
homossexuais?
Ataques sempre
existiram, porém é desejável que a visibilidade aumente porque, ao mesmo tempo,
crescem as possibilidades de defesa, de acionar o poder público. Então, se
alguém está pensando em voltar para o armário… Hum, hum, movimento errado.
Você tem participado
dos grupos ativistas LGBT?
Sim, e isso é reviver
minha militância. Existem dezenas de entidades de defesa dos direitos civis
dessa população. Fui recentemente a um congresso em Curitiba. Em agosto haverá
outro na Bahia. Eu e umas amigas vamos abrir uma ONG, a Associação Brasileira
de Transgêneros (Abrat). A ideia é estimular o debate, produzir teses e prestar
serviços de informação
Até onde vai sua
transformação? Você pensa em tomar hormônios?
Penso, mas ainda não
decidi. Estou com 60 anos. Não partiria, com certeza, para a via cirúrgica.
Você imaginava a
repercussão que sua decisão alcançaria?
Às vezes me assusta a
dimensão que as coisas tomam. Mas se isso acontece é porque há uma área de
tensão, coisas mal resolvidas. Quando dizem “não sei por que gastar cinco
parágrafos com esse assunto”, ouçam a si próprios: porque é importante.
Participou Talita
Galli, da TVT
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