O debate na mídia
quanto ao chamado caso do “mensalão” vai se constituindo cada vez mais como uma
realidade à parte do julgamento concreto. Como bem destacou a ombudsman do
jornal Folha de S. Paulo, nesta fase do julgamento a imparcialidade da
cobertura midiática deveria ser um mantra, mas efetivamente não é o que tem
acontecido.
Por isso a necessidade
que sinto de expor meu ponto de vista de forma clara, taxativa e sem rebusques
para que seja claramente compreendido: sob o ponto de vista estritamente
jurídico, em meu entender, não houve prova suficiente no processo que possam
demonstrar a existência do chamado “mensalão” e o ex-ministro José Dirceu deve
ser inocentado de todas as acusações contra ele formuladas.
Como o processo é extremamente
volumoso e composto de uma infinidade de documentos e depoimento, versando
sobre um rol extenso de fatos, e tratando-se o presente artigo apenas de um
texto opinativo de caráter jornalístico, vou cingir-me apenas às acusações que
foram dotadas de efeito politico-midiático.
Por tratar-se de
processo complexo, relativo a um grande numero de réus e a um número maior
ainda de acusações e condutas imputadas, escolhi tratar apenas do que parece
chamar mais atenção da opinião publica. Obviamente a referida complexidade e
amplitude do caso implica que existam condutas que merecem punição e reprovação
ética.
A própria pratica do
chamado caixa 2, admitido pelos réus, é pratica criminosa e integralmente
antiética. Se no plano criminal pode não implicar consequência concreta pela
incidência da prescrição, no plano politico o efeito é muito incisivo. Com o
reconhecimento de tal pratica por seus dirigentes, o PT declarou o divórcio com
seu compromisso histórico de mudar a ética reinante na politica brasileira desde
o descobrimento, igualou-se a uma tradição espúria, cujo real sentido é mais
amplo e grave que a expressão de mero “malfeito” costumeiramente usada.
Junto com o caixa 2 o
PT aceitou um jogo que corrompe sistemicamente o regime democrático em todo o mundo
e, ao não punir clara e ostensivamente no plano ético partidário, seus
militantes que participaram desta pratica, abriu mão de uma experiência política que ousasse ser
alternativa à hegemonia de práticas aéticas e patrimonialistas que caracterizam
a vida democrática no mundo contemporâneo.
Como tal tipo de
prática jamais seria aceita pela militância de base do Partido, a democracia
interna do PT corroeu-se. De uma usina de ideias de transformação política e
social que era, o PT cada vez mais se aproxima de reduzir-se a um instrumento
de operações políticas concretas e eleitoreiras. Sem o oxigênio da democracia
crítica de base o partido vai sendo sufocado pelo espectro dos compadrios
burocráticos e se limitando ao debate do que “ganha a eleição” e não do que
transforma a vida das pessoas e da sociedade.
O empobrecimento do
debate interno traz como pena o personalismo de suas lideranças e o afastamento
progressivo dos quadros mais comprometidos com a utopia da mudança
O PT e a esquerda
brasileira, independentemente do resultado que do julgamento da ação 470 pelo
STF, já foram condenados a uma pena politica que não tem prazo certo para
terminar seus efeitos, os quais poderão acarretar até mesmo a morte do partido,
ao menos como possibilidade de utopia para os que creem em práticas políticas
eticamente mais adequadas.
Ocorre que se no plano
politico e ético as praticas evidenciadas pela então direção do PT se mostraram
recrimináveis, sob o ponto de vista jurídico não se pode ter como certa a
chamada pratica do “mensalão”, na forma divulgada pela mídia; assim, de forma
alguma o ex-ministro José Dirceu deve ser condenado criminalmente pelo que lhe
foi imputado na denúncia formulada pelo Procurador Geral da República.
Tem-se entendido como
“mensalão” a suposta criação de um esquema criminoso de compra de votos
parlamentares para aprovação de projetos de iniciativa do Executivo ou de
interesse do governo no Congresso com o uso de dinheiro publico para tanto.
Quando a expressão “mensalão” foi criada referia-se a pagamentos mensais
supostamente feitos a parlamentares.
A denuncia do PGR
fundou-se no depoimento de Roberto Jefferson para fundamentar a acusação
inicial e deveria, no decorrer do processo, provar a referida acusação.
Entretanto o que dele resultou, em apertada síntese, foi o seguinte:
1 – Ouvidas mais de 600
testemunhas no processo não houve uma sequer que sustente a existência de algum
esquema ou iniciativa organizada de compra de apoio parlamentar; também não
foram apresentados documentos, dados fiscais ou bancários, filmagens ou
gravações telefônicas, imagens de reuniões, nada que ofereça a menor
demonstração da existência o suposto esquema;
2 – Não há um
parlamentar que tenha realizado saques ou recebimentos mensais;
3 – A relação entre
votação de reformas constitucionais e pagamentos recebidos pelos parlamentares
estabelecida na denúncia foi abandonada pelo PGR nas alegações finais, que
passou a apontar outros projetos que teriam sido objeto do suposto crime.
Obviamente tal argumento não será apreciado pela Corte Suprema por ter sido
trazido apenas no final do processo, sem direito a ser refutado pela defesa.
Nenhuma prova sequer foi apresentada que relacione os pagamentos recebidos a
votações de projetos; A defesa, contudo, apresentou extenso estudo feito com
base em dados oficiais das votações da CÂmara no período de 2003 e 2004 que
demonstra a inexistência de relação entre os saques feitos pelos partidos e as
votações dos projetos de interesse do governo. Aliás, nos meses de repasse mais
elevado o apoio às iniciativas do governo teve queda significativa;
4 – Não há provas de
que os recursos que originaram os saques feitos pelos partidos tenham origem
pública. O bônus de volume da publicidade feita pelo Banco do Brasil através da
agência de Marcos Valério foi demonstrado como de propriedade da agência e não
do banco, inclusive conforme entendimento do Tribunal de Contas, contrariando o
alegado na denúncia. Conforme demonstrado o que pertencia ao Banco do Brasil
por cláusula contratual era a bonificação de desconto, que tem nome semelhante
mas não é a mesma coisa que bônus de volume como pressupunha a denúncia. Também
os recursos advindos do Fundo Visa-Net são de origem privada, como demonstrado
por declarações de testemunhas, da própria companhia e de documentos. O Banco
do Brasil é acionista do Fundo, mas não possui seu controle. Embora as
alegações finais do PGR falem em desvio de recursos de órgãos públicos e
empresas estatais, não aponta quais seriam estes órgãos e empresas estatais.
Não há, portanto, qualquer prova minimamente consistente nos autos do processo
que ateste a existência do mensalão, entendido como esquema de compra de votos
de parlamentares;
5 – Não se pode falar
em provas consistentes de que José Dirceu comandou os atos de dirigentes do partido
que implicaram a realização dos pagamentos e respectivos saques de partidos
políticos e parlamentares. As demais acusações formuladas contra ele também não
foram demonstradas. O depoimento de Jefferson em relação à participação de José
Dirceu nos fatos foi refutado por diversas testemunhas, que não figuram como
réus no processo. Os testemunhos contra José Dirceu foram dados por réus no
processo e foram refutados por número maior de testemunhas não figurantes como
partes do processo;
6 – O próprio procurador-geral
da República reconheceu em sua sustentação oral a não existência de provas
documentais e materiais contra José Dirceu. Após sete anos de investigação, não
foram apresentados dados bancários, fiscais, gravações telefônicas, filmagens
de reuniões etc. Ou seja, nenhuma das provas que costumeiramente têm sido
produzidas em casos de acusações semelhantes.
Com relação a José
Dirceu, nem a autoria nem a materialidade do delito foram demonstradas de forma
minimamente razoável de se sustentar condenação. Condená-lo seria um
aviltamento dos mais comezinhos valores e princípios constitucionais que
governam nosso processo penal
Em sua sustentação
oral, o procurador centrou seus argumentos em perguntas. Numa fase final do
processo como essa deveria ter apresentado respostas.
*Este é um artigo do
colunista Pedro Serrano, e não representa as opiniões do grupo de professores
da PUC-SP que analisa o julgamento do chamado “mensalão” em parceria com a
revista CartaCapital
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