Por Venício A. de Lima
“Brasília virou as
costas para o julgamento do maior escândalo da história recente do país. Em
frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), silêncio e um vazio perturbador. O
maior ato do dia, que contou com apoio do PSDB, do DEM e do PPS – principais
partidos de oposição – reuniu apenas 15 manifestantes.”
Assim começa matéria
sob o título “Faltou quorum na praça” que o Correio Braziliense publicou no dia
seguinte ao início do julgamento da Ação Penal nº 470 pelo Supremo Tribunal
Federal (ver aqui).
No Valor Econômico, a
matéria “Nas ruas, mensalão é ignorado pela população, que preferiu Olimpíada”,
descreve:
“Na fachada das lojas populares de
eletrodomésticos do centro de São Paulo, grandes televisores, cuja compra pode
ser parcelada em até 24 vezes, dividiam-se na programação do dia. A animação
Monstros S.A. e a transmissão dos jogos olímpicos em Londres ocupavam com
grande vantagem as telas, com exceções dedicadas a programas de culinária e uma
apresentação da banda americana Bon Jovi. Nenhuma mostrava o primeiro dia do
histórico julgamento da Ação Penal nº 470, vulgo mensalão” (ver aqui).
As observações acima
constituem exceções. De maneira geral, a grande mídia ignorou o desinteresse da
população em relação ao julgamento. Até mesmo os responsáveis pela segurança
pública na Praça dos Três Poderes em Brasília teriam sido surpreendidos.
Confirmando os fatos
descritos, pesquisas de opinião indicam que apenas uma em cada dez pessoas tem
conhecimento do julgamento. Perguntados sobre “quem é o principal envolvido no
mensalão?”, o nome mais citado é Carlinhos Cachoeira (cf. CartaCapital nº 709,
pág. 21).
Apesar de tudo isso,
jornalistas e colunistas insistem em equacionar o massacre dos indiciados que
tem sido veiculado diariamente na grande mídia como sendo “a voz das ruas” e
“pressão da opinião pública” sobre os ministros do STF para que se condene “os
réus do maior escândalo da história recente do país”.Como escreveu o sociólogo
Marcos Coimbra, presidente do Instituto Vox Populi, “o que a grande imprensa
brasileira menos quer é que o Supremo julgue. Ela já fez isso. E não admite a
revisão de seu veredicto” (ver aqui).
Qual opinião pública?
Existem lições recentes
de nossa história política que merecem ser relembradas. Retomo comentários que
fiz sobre o livro do historiador e cientista político Aluysio Castelo de
Carvalho – A Rede da Democracia – O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda
do governo Goulart (1961-64)” – coedição da NitPress e Editora da UFF, 2010
(ver “Os jornais e a ‘opinião pública’“).
Carvalho parte de uma
visão panorâmica do papel postulado para a “opinião pública” por alguns dos
pensadores clássicos da tradição liberal – Hobbes, Locke, Montesquieu,
Constant, dentre outros. No Brasil, Rui Barbosa e Oliveira Vianna atribuíram
“às elites dirigentes responsáveis o papel de intérprete dos interesses da
nação” e também colocaram “a imprensa em primeiro plano, enfatizando sua
posição central como órgão da opinião pública” (pág. 29).
A principal hipótese de
Carvalho é a de que, no início da década de 1960, os jornais cariocas estudados
abandonaram a concepção institucional de representatividade da opinião pública
– aquela que se materializa através dos partidos, de eleições regulares e de
representantes políticos – e recorreram a outra concepção, a publicista, que
“ressalta a existência da imprensa como condição para a publicização das
diversas opiniões individuais que constituem o público”.
A adoção da concepção
publicista faz com que não só a crítica aos partidos políticos e ao Congresso
se justifique, como também sustenta a posição de que os jornais são os
legítimos representantes da opinião publica.
A partir da análise de
pronunciamentos feitos na Rede da Democracia e de editoriais dos jornais,
Carvalho conclui:
“Ocorreu por parte (de O Globo, O Jornal e
Jornal do Brasil) uma exaltação da própria imprensa como modelo de instituição
representativa da opinião pública, porque se viram mais comprometidos com a
preservação da ordem social liberal. Os jornais cariocas construíram uma imagem
positiva da imprensa, em detrimento da divulgada sobre o Congresso. (…) Os
jornais se consideravam o espaço público ideal para a argumentação, em
contraposição à retórica dita populista e comunista que teria se expandido no
governo Goulart e estaria comprometida com a desestruturação das instituições,
sobretudo do Congresso. Os jornais se colocaram na posição de porta-vozes
autorizados e representativos de todos os setores sociais comprometidos com uma
opinião que preservasse os tradicionais valores da sociedade brasileira
ancorados na defesa da liberdade e da propriedade privada” (pág. 156).
Entre os inúmeros
pronunciamentos e editoriais analisados por Carvalho, merece destaque o
publicado em O Jornal [2 de março de 1962] que toma como referência o que
considera a relação existente entre sociedade e sistema político nos Estados
Unidos. Diz o editorial:
“Ninguém ignora quanto o governo americano é
sensível à opinião pública e se deixa conduzir por suas reações. Congresso e
Poder Executivo não ousam nunca contrariá-la, temendo republicanos e democratas
os seus pronunciamentos nas urnas. (…) Nos Estados Unidos os governos
condicionam invariavelmente as suas decisões aos resultados da auscultação da
vontade e do sentimento do povo, rigorosamente traduzidos pela imprensa” (pág.
159).
Grande mídia e “opinião
pública” hoje
A “concepção
publicista”, apresentada por Carvalho, foi um fenômeno restrito à articulação
do golpe de 1964 pelos principais jornais cariocas ou corresponde a uma postura
permanente da grande mídia brasileira?
Diante da cobertura que
vem sendo feita do julgamento da Ação Penal n. 470 pelo STF e da postura de
jornalistas e colunistas, deixo a resposta com o eventual leitor(a).
[Venício A. de Lima é jornalista, professor
aposentado da UnB e autor de, entre outros livros, de Política de Comunicações:
um balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012.
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