Atualmente perpassa, na
maioria da mídia tradicional, uma forte campanha pela condenação dos réus do
“mensalão”, apresentando-os como quadrilheiros da impureza política. Os réus do
“mensalão” e o PT já estão condenados. Já foram condenados independentemente do
processo judicial, que muito pouco acrescentará ao que já foi feito, até agora,
contra os indivíduos e o partido, sejam eles culpados ou não, perante as leis
penais do país. O artigo é de Tarso Genro.
Tarso Genro (*)
O grande legado da
chamada “era Lula” não é o “mensalão”. Nem este é o maior escândalo da história
recente do país. Se a compra de votos para a reeleição do Presidente Fernando
Henrique Cardoso – que certamente ocorreu à revelia do beneficiário – tivesse a
mesma cobertura insistente da mídia e se os processos investigativos tivessem a
mesma profundidade das investigações do chamado “mensalão”, a eleição que
sucedeu aqueles eventos poderia ter sido inclusive anulada e um mar de cassações
de mandatos e de punições pela Justiça poderia ter ilustrado, ali sim, o maior
escândalo institucional da República. Tratava-se da nulidade de um mandato
presidencial, cuja viabilidade teria sido literalmente comprada.
Assim como o
impedimento do Presidente Collor foi feito dentro do Estado Democrático de
Direito, o processo do mensalão” também o foi. Isso é bom para o país e bom
para a democracia. A compra de votos para a reeleição, porém, foi diluída em
termos de procedimento penal e logo arquivada também politicamente. Naquela
oportunidade a política não foi judicializada, consequentemente, não foi
“midiatizada” e, como sabemos, na “sociedade espetáculo” de hoje o que não está
na mídia não está na vida política.
O fato de que o Estado
de Direito funcionou em todos estes casos não quer dizer que isso ocorreu de
maneira uniforme. O tratamento não foi igual para todos os envolvidos. As ações
e providências políticas no Estado de Direito refletem no espaço midiático de
forma diversa e não cumprem finalidades meramente informativas. São
“mercadorias informativas” cujo objeto não é promover necessariamente decisões
judiciais perfeitas e justas, apenas passam o “olhar” dos detentores do poder
de informar. A Justiça, como a renda, é sempre distribuída desigualmente,
porque sobre a distribuição da Justiça e a distribuição de renda incidem
fatores externos às suas normas de repartição ideal, que se originam da força
política e econômica dos grupos envolvidos nos conflitos políticos.
O Estado Democrático de
Direito é o melhor não porque ele é o Estado perfeitamente justo. O Estado de
Direito é o desejável porque ele oferece melhores possibilidades de preservar
direitos e acolher demandas e porque ele é a melhor possibilidade para
preservar os direitos humanos e as liberdades públicas. O processamento dos
réus do “mensalão” deve ser considerado, assim, como uma normalidade do Estado
Democrático de Direito, mas o que não pode ser considerado como aceitável é o
massacre midiático que já condenou os réus e condenou o PT e os petistas de
forma indeterminada, antes do pronunciamento do STF. E isso não foi feito de
maneira ingênua.
Vejamos porque isto
ocorre. O grande legado da “era Lula” foi, além do início da mudança do modelo
econômico anterior, o início de uma verdadeira “revolução democrática” no país,
o que fez o seu governo ser tão combatido pela direita neoliberal, cujas
posições refletem na maior parte da grande mídia, que é plenamente posicionada
nos conflitos políticos e econômicos do país.
Mas o que é esta
“revolução democrática”? Suponhamos que a democracia seja uma grande mesa onde
todos, abrigados no princípio da igualdade formal, sentam-se para viabilizar
seus interesses e disputar algo da renda socialmente gerada pelo trabalho
social. Nesta grande mesa (resultado aqui no Brasil da Constituição Democrática
de 88), entre a promulgação da Constituição e os governos FHC, todos sentavam
nos lugares reservados por aquele ordenamento. Obviamente, porém, alguns
sentavam em bancos mais elevados, viam toda mesa, observavam o que estava em
cima dela para adquirir, para comprar, para “pegar” pela pressão ou pelo
Direito. Conversavam entre si de maneira cordata, transitavam
“democraticamente” os seus interesses, tendo na cabeceira da grande mesa os
Presidentes eleitos.
Outros estavam sentados
em bancos tão baixos que não viam o Presidente, não participavam do diálogo,
não sabiam o que estava em cima da mesa. Não tinham sequer a quem se reportar
em termos de exercício do seu poder de pressão. Estavam só formalmente na mesa
democrática, sem poder e sem escuta. O que Lula promoveu foi apenas a correção
da altura dos bancos, que agora permite aos trabalhadores, sindicalistas ou
não, com as suas grandezas e defeitos, os “sem-terra” e “sem-teto”, os que não
contavam nas políticas de Estado, os excluídos que não podiam ascender na vida
(inclusive os grupos empresariais e setores médios que não tinham influência
nas decisões do Planalto) verem o que sempre esteve em cima da mesa.
O simples fato de ver e
dialogar permitiu que estes contingentes sociais passassem a disputar a posse
de bens e uma melhor renda. A democracia em abstrato tornou-se um jogo mais
concreto. Os governos Lula, assim, levaram a uma nova condição o princípio da
igualdade formal, que começa pelo direito das pessoas terem a sua
reivindicações apreciadas pelo poder, impulsionadas pelo conhecimento do que
pode ser repartido e do que está “em cima” da mesa da democracia.
Isso foi demais.
Significou e significa um bloqueio à ruína neoliberal que perpassa o mundo e,
embora tenha sido um projeto também negociado com o capital financeiro, trouxe
para a política, para o desejo de mudar, para a luta por melhorias concretas,
milhões e milhões de plebeus que estavam fora do jogo democrático. Estes
passaram a comer, vestir, estudar e reduzir os privilégios da concentração de
renda.
A “plebeização” da
democracia elitista que vigorava no Brasil é o fator mais importante do ódio à
“era Lula” e do superfaturamento político do “mensalão”. Este é o motivo do
superfaturamento, que pressiona o STF para que este não faça um julgamento
segundo as provas, mas faça-o a partir de juízo político da “era Lula”, que
cometeu o sacrilégio de “sujar” com os pobres a democracia das elites.
Para não entrar em
debates mais sofisticados sobre Teoria Econômica, situo como premissa – a
partir de uma ótica que pretende ser de grande parte da esquerda
democrático-socialista – o confronto político sobre os rumos da sociedade
brasileira, após a primeira eleição do Presidente Lula: de um lado, tendo como
centro aglutinador os dois governos do Presidente Fernando Henrique, um bloco
político e social defensor de um forte regime de privatizações, alinhamento
pleno com os EEUU em termos de política global -inclusive em relação ao combate
às experiências de esquerda na América Latina- com a aceitação da sociedade dos
“três terços” (um terço plenamente incluído, um terço razoavelmente incluído e
um terço precarizado, miserável ou totalmente fora da sociedade formal, alvo de
políticas compensatórias), experiência mais próxima do projeto de
sócio-econômico dos padrões neoliberais, que hoje infernizam a Europa; de outro
lado, tendo como centro aglutinador os dois governos Lula, um bloco político e
social que “brecou” o regime de privatizações, reconstruiu as agências financeiras
do Estado (como Bndes, Banco do Brasil e Caixa Federal, para financiar o
desenvolvimento), estabeleceu múltiplas relações em escala mundial -libertando
o país da tutela americana na política externa- protegeu as experiência de
esquerda na América Latina e desenvolveu políticas públicas de combate à
pobreza, programas de inclusão social e educacional amplos, tirando 40 milhões
de brasileiros da miséria, com pretensões mais próximas das experiências
social-democratas, adaptadas às condições latino-americanas.
Estes dois grandes
blocos têm no seu entorno fragmentos de formações políticas que ora se adaptam
a um dos polos, combatem-se, ou fazem alianças pontuais sem nenhuma afinidade
ideológica. Como também fazem alianças as direitas liberais com a extrema esquerda
e o centro, ora com a esquerda, ora com a direita. Mais frequentemente estas
alianças foram feitas para paralisar iniciativas dos governos Lula, que
sobrevivem até o presente, como as políticas de valorização do salário-mínimo,
as políticas de implementação do Mercosul, a política externa quando valoriza
os governos progressistas latino-americanas e as políticas, em geral, de
combate às desigualdades sociais e regionais.
Atualmente perpassa, na
maioria da mídia tradicional, uma forte campanha pela condenação dos réus do
“mensalão”, apresentando-os como quadrilheiros da impureza política. A mídia
seleciona imagens e produz textos que já adiantam uma condenação que o Poder
Judiciário terá obrigação de obedecer, pois “este é o maior escândalo de corrupção
da história do país”, o que certamente começou com o Partido dos Trabalhadores
e seus aliados no governo.
Os réus do “mensalão” e
o PT já estão condenados. Já foram condenados independentemente do processo
judicial, que muito pouco acrescentará ao que já foi feito, até agora, contra
os indivíduos e o partido, sejam eles culpados ou não, perante as leis penais
do país. O processo judicial, aliás, já é secundário, pois o essencial é que o
combate entre os dois blocos já tem um resultado político: o bloco do
Presidente Lula, em que pese a vitória dos seus dois governos, tornou-se –
partir do processo midiático – um bloco de políticos mensaleiros, cujas
práticas não diferem, no senso comum, de qualquer dos partidos tradicionais.
Vai ser muito duro recuperar estas perdas. Mas elas serão recuperadas, pois o
povo já se acostumou a ver o que está em cima da mesa da democracia e sabe que
ali tem coisas para repartir.
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