Por Sylvia Debossan Moretzsohn, do Observatório da Imprensa
Uma revista publica um pingue-pongue – entrevista em formato
de perguntas e respostas – com um jornalista que imediatamente denuncia em seu
blog o “engodo”, porque não teria dado entrevista alguma; a revista responde
reafirmando a autenticidade do texto e tudo fica por isso mesmo, a palavra de
um contra a da outra.
Foi na semana passada. A edição 2284 da Veja Rio, que começou
a circular no domingo (26/8), trazia, na coluna “Beira Mar”, uma suposta
entrevistacom o colunista esportivo Renato Maurício Prado, do Globo, sobre o
fim de seu contrato com a SporTV, depois de uma discussão ao vivo com o
apresentador Galvão Bueno, durante um programa de debates nos últimos Jogos
Olímpicos.
Já na terça-feira (28), na nota “Pingo nos is”, ao pé de seu
blog, reproduzida no dia seguinte em sua coluna no caderno de Esportes do
jornal impresso, Renato afirmava que não dera entrevista: teria apenas atendido
ao telefonema da repórter e explicado que não queria falar, “até por entender
que nós, jornalistas, não somos notícia”. Ressaltava inclusive um erro na
menção à sua participação num programa de rádio, já extinto havia mais de dois
anos, e lamentava a utilização de uma foto sua, feita para sua coluna no Globo,
pois, para o leitor, ficava a impressão de que ele teria posado para Veja.
Em nota oficial, publicada na quinta-feira (30/8), a revista
rejeitava o desmentido.
O que se diz no contestado pingue-pongue não tem qualquer
relevância para além do previsível noticiário sobre “celebridades e
personalidades do Rio”, que é o tema dessa seção da revista. A questão do
método, sim, é que é de extrema relevância, independentemente do assunto, da
importância das fontes ou da parcela do público a que se destina esse tipo de
informação. Ou fraude.
A farsa da reportagem
Não é de hoje que Veja
é criticada por utilizar artifícios estranhos aos mais elementares princípios
éticos do jornalismo. Entre eles, a descontextualização, ou mesmo a pura e
simples invenção de declarações. Recordo aqui, apenas para ilustrar, um caso de
grande repercussão ocorrido há pouco mais de dois anos: o texto intitulado “A
farra da antropologia oportunista“, publicado em maio de 2010, que acusava
pesquisadores de forjar a existência de comunidades indígenas ou quilombolas em
proveito próprio – das ONGs das quais participavam – e em detrimento das
perspectivas de desenvolvimento do país. Para tanto, utilizava supostas
afirmações de dois antropólogos, Mércio Pereira Gomes e Eduardo Viveiros de
Castro, que argumentariam no sentido pretendido pela revista.
A farsa da reportagem foi denunciada em pelo menos três
artigos neste Observatório e na resposta
do professor Gomes (“Resposta a uma matéria falsa“), que recusava à Veja “o
falso direito jornalístico” de atribuir-lhe “uma frase impronunciada e um
sentido desvirtuante” daquilo que pensava sobre a questão indígena brasileira.
O protesto de Viveiros de Castro também circulou amplamente
pela internet e provocou uma troca de mensagens entre ele a revista (ver aqui),
na qual ficava evidente a inexistência de entrevista e a deturpação dos
argumentos do pesquisador, retirados de um artigo seu.
O mais curioso é que Veja concluía sua resposta dizendo que o
antropólogo a havia autorizado a utilizar o tal artigo “da forma que bem
entendesse”. O que, a rigor, jamais poderia ocorrer, porque evidentemente
nenhum texto pode ser utilizado de qualquer jeito: precisa ser citado de acordo
com a sua própria coerência interna, conforme o contexto em que foi escrito.
O elogio da fraude
Criada em 1968 por
Mino Carta, Veja passou por uma série de mudanças ao longo dessas mais de
quatro décadas, e só um estudo detalhado poderia apontar o que a levou a se
distanciar progressivamente da prática rigorosa do jornalismo para enveredar
por uma política editorial que pretende amoldar a realidade às suas pautas,
utilizando quaisquer recursos para a obtenção dos resultados previamente
definidos. O recente episódio que envolveu o colunista esportivo seria,
portanto, apenas uma derivação social e politicamente irrelevante de um
processo incorporado há muito tempo.
Entretanto, nesse processo há um aspecto essencial e
aparentemente inocente que deveria chamar a atenção, sobretudo de jovens
aspirantes a jornalistas, especialmente agora que a discussão a respeito da
adequada formação retorna, com o debate sobre a exigência do diploma
universitário: é que as regras elementares do método jornalístico não são tão
elementares assim. Pois que mal faz inventar entrevistas, desde que elas sejam
simpáticas às fontes?
Em Notícias do Planalto, lançado em 1999 e prestes a ser
reeditado, Mario Sergio Conti relata a esperteza de Elio Gaspari, então em
início de carreira:
“[Gaspari] estava numa agência de notícias no Galeão. O
aeroporto era o ponto de passagem dos poderosos da República. Os políticos,
ainda em trânsito da antiga para a nova capital, embarcavam nos voos matutinos
para Brasília. No Galeão desembarcavam as celebridades estrangeiras que
visitavam o Rio. Como se podia entrar na área da alfândega, os jornalistas
circulavam e faziam entrevistas. Os repórteres da agência tinham de falar com
os passageiros famosos, redigir as matérias na sala de Imprensa, tirar cópias
num estêncil a álcool e mandá-las para os jornais. Gaspari logo constatou que o
tempo médio de embarque e desembarque, vinte minutos, era escasso. Enquanto
entrevistava um deputado, perdia outros três que entravam no avião para
Brasília. Passou a acordar de madrugada para ler os jornais e, com base neles,
escrever pequenas entrevistas de políticos comentando os assuntos do dia. Se
concordavam com as respostas, passavam a ser os entrevistados de fato e de
direito. Assim, podia mandar aos jornais três, quatro entrevistas, em vez de
uma. Os entrevistados agradeciam porque, além de estarem nos jornais, às vezes
pareciam mais inteligentes ou engraçados do que realmente eram.”
Esses políticos jamais poderiam sonhar que algum dia lhes
cairia no colo um assessor tão bom, e ainda por cima gratuito. Conti prossegue,
muito divertido:
“Em Veja, o método foi
refinado e usado anos a fio. Gaspari inventava um raciocínio para avivar uma
matéria, geralmente de madrugada, no calor do fechamento, e mandava um repórter
achar alguém famoso que quisesse assumir a autoria. A frase “O povo gosta de
luxo, quem gosta de miséria é intelectual” nasceu assim, proposta por Gaspari
ao carnavalesco Joãozinho Trinta. O truque era puro Elio Gaspari. Tinha algo de
molecagem, mas ficava nos limites das normas jornalísticas, na medida em que ninguém
era forçado a encampar uma declaração. O seu fim último era levar um fato novo
ao leitor (…)”. (grifo meu).
Então ficamos assim: inventar declarações e atribuí-las a
terceiros faz parte das normas jornalísticas, desde que sejam favoráveis a
essas fontes. Nada impede, tampouco, que se recorte um artigo e nele se insiram
perguntas, para dar a impressão de um pingue-pongue. Terão razão, afinal,
certos teóricos que dizem que jornalismo é ficção?
Essas coisas as escolas – pelo menos, as escolas de qualidade
– não ensinam. Pelo contrário, refutam e denunciam. No entanto, renomados
jornalistas – nos quais, naturalmente, muitos jovens se miram – praticam e
enaltecem o que deveriam combater. E a fraude só causa revolta quando contraria
os envolvidos.
Mas nem por isso deixa de ser o que é.
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