Por Vladimir Safatle
Durante décadas, a esquerda conseguiu sustentar uma certa
hegemonia no campo cultural nacional. Mesmo na época da ditadura, tal hegemonia
não se quebrou. Vivíamos em uma ditadura na qual era possível comprar Marx nas
bancas e músicas de protesto ocupavam o topo das paradas de sucesso. Essa
aparente legalidade que visava desarticular mobilizações mais profundas da
sociedade nacional.
A ditadura brasileira compreendeu rapidamente que não era
necessário um controle total da cultura. Os nazistas usaram um modelo parecido
quando ocuparam Paris. Um controle parcial bastava, com direito a censura e
perseguição em momentos arbitrariamente escolhidos. Dessa forma, liberdade e
restrição confundiam-se em uma situação cada vez mais bizarra de anomia e
desorientação da crítica.
Deve, porém, ter pesado no cálculo da ditadura a compreensão
de que o custo para quebrar a hegemonia da esquerda no campo da cultura seria
alto demais. Neste caso, melhor operar por intervenções cirúrgicas. Durante os
anos 50 e 60, o País vivera uma impressionante consolidação cultural e
intelectual que continuaria dando frutos nas próximas décadas. Colaborou para a
propagação dessa hegemonia na classe média brasileira a guinada progressista da
Igreja Católica, feita a partir do pontificado de João XXIII e do Concílio
Vaticano 2º.
Com o fim da ditadura, a força cultural da esquerda
permaneceu. Nossos jornais, por exemplo, seguiam o esquizofrênico princípio:
conservador na política, liberal na economia e revolucionário na cultura. Mesmo
que figuras como Paulo Francis e José Guilherme Merquior estivessem
constantemente a representar o pensamento conservador, suas vozes eram em larga
medida minoritárias. Vale lembrar que eles não representavam o conservadorismo
mais puro e duro, com direito a pregação moralista de costumes e relação com os
setores mais reacionários da Igreja.
Poderíamos acreditar que a perda de tal hegemonia seria
resultado direto da queda do Muro de Berlim. Sem desmerecer o fenômeno, não é
certo, no entanto, que ele tenha papel tão determinante. Pois vale lembrar como
a esquerda cultural brasileira estava longe de ser a emulação do centralismo do
Partido Comunista, com sua orientação soviética. Na verdade, as causas devem
ser procuradas em outro lugar.
Primeiro, há de se lembrar como, desde o fim dos anos 80, as
universidades brasileiras não conseguiam mais formar professores dispostos a
desempenhar o papel de intelectuais públicos. Os intelectuais que tínhamos vieram
da geração que entrou na universidade nos anos 70. Geração que viveu de maneira
brutal a necessidade de mobilização política. As gerações que vieram
compreenderam-se com uma certa timidez. Elas, em larga medida, foram marcadas
pelo desejo de agir no âmbito mais restrito da universidade.
Segundo, há de se colocar a perda da hegemonia cultural como
um dos sintomas da era Lula. Do ponto de vista político, o esforço da classe
intelectual brasileira parece ter se esgotado com a eleição do ex-metalúrgico.
Boa parte dos descaminhos do governo foi colocada na conta da legitimidade dos
intelectuais que um dia o apoiaram ou que continuaram apoiando. O simples
abandono do apoio não foi uma operação bem-sucedida. Como os intelectuais não
tiveram discernimento suficiente para imaginar o que poderia ocorrer? Por outro
lado, a repetição reiterada do lado bem sucedido do governo soava, para muitos,
como estratégia para diminuir a força crítica diante dos erros, que não eram
mais comentados no espaço público, devido ao medo de instrumentalização pela
mídia conservadora.
Aos poucos, parte da mídia criou seus intelectuais
conservadores, repetindo, algumas dezenas de degraus abaixo, um fenômeno que os
franceses viram nos anos 70 com os nouveaux philosophes. Como se não bastasse,
o próprio governo foi paulatinamente se afastando da órbita dos intelectuais de
esquerda. A troca de comando do Ipea, por exemplo, com o convite ao economista
liberal Marcelo Néri, está longe de ser um acontecimento isolado. Há de se
notar como este governo é, desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso, aquele
que tem menos intelectuais em seus quadros. Sequer o ministro da Educação é
alguém vindo da vida universitária (como foram Paulo Renato Souza, Cristovam
Buarque e Fernando Haddad).
Nesse contexto, sela-se uma situação nova no Brasil. Pela
primeira vez em décadas a esquerda é minoritária no campo cultural. Há de se
compreender como chegamos a esse ponto, já que este artigo é apenas um
tateamento provisório.
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