Por Marilena Chauí
Palestra proferida no lançamento da campanha “Para Expressar
a Liberdade – Uma nova lei para um novo tempo”, em 27/08/2012, no Sindicato dos
Jornalistas de São Paulo.
I. Democracia e
autoritarismo social
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da
democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades
individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam a
liberdade com a ausência de obstáculos à competição, essa definição da democracia
significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica
da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que
disputam eleições; em segundo, que embora a democracia apareça justificada como
“valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida
no plano do poder executivo pela atividade de uma elite de técnicos competentes
aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida a um regime
político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos
políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes,
na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas
econômicos e sociais.
Ora, há, na prática democrática e nas ideias democráticas,
uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que liberalismo
percebe e deixa perceber.
Podemos, em traços breves e gerais, caracterizar a democracia
ultrapassando a simples idéia de um regime político identificado à forma do governo,
tomando-a como forma geral de uma sociedade e, assim, considerá-la:
1. Forma sociopolítica definida pelo princípio da isonomia (
igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para
expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em
público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres,
isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas
leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa;
indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da
democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios –
igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;
2. Forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o
conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais
para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do
trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas
sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a
forma da contradição e não a da mera oposição?
3. Forma sociopolítica que busca enfrentar as dificuldades
acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a
existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do
conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a
ideia dos direitos ( econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos
direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para
reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos
direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente,
mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como
cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser
reconhecidos por toda a sociedade.
4. Graças à ideia e à prática da criação de direitos, a
democracia não define a liberdade apenas pela ausência de obstáculos externos à
ação, mas a define pela autonomia, isto é, pela capacidade dos sujeitos sociais
e políticos darem a si mesmos suas próprias normas e regras de ação. Passa-se,
portanto, de uma definição negativa da liberdade – o não obstáculo ou o
não-constrangimento externo – a uma definição positiva – dar a si mesmo suas
regras e normas de ação. A liberdade possibilita aos cidadãos instituir
contrapoderes sociais por meio dos quais interferem diretamente no poder por
meio de reivindicações e controle das ações estatais.
5. Pela criação dos direitos, a democracia surge como o único
regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir
o novo como parte de sua existência e, consequentemente, a temporalidade é
constitutiva de seu modo de ser, de maneira que a democracia é a sociedade
verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às
transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela
existência dos contrapoderes sociais, a sociedade democrática não está fixada
numa forma para sempre determinada, pois não cessa de trabalhar suas divisões e
diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva de alterar-se
pela própria práxis;
6. Única forma sociopolítica na qual o caráter popular do
poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em
que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das
classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a
classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo
sua passagem de democracia liberal á democracia social, encontra-se no fato de
que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) reivindicam
direitos e criam novos direitos;
7. Forma política na qual a distinção entre o poder e o
governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias
esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas
(contrariamente do que afirma a ciência política) não significam mera
“alternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu
detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um
mandato temporário para isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são
simples votantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas
manifestar a origem do poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando
inventaram a política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque
ninguém pode dar o que não tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para
escolher ocupantes temporários do governo.
Dizemos, então, que uma sociedade – e não um simples regime
de governo – é democrática quando, além de eleições, partidos políticos,
divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e da
minoria, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime
político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma
criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se
como uma contrapoder social que determina, dirige, controla e modifica a ação
estatal e o poder dos governantes.
Se esses são os principais traços da sociedade democrática,
podemos avaliar as enormes dificuldades para instituir a democracia no Brasil.
De fato, a sociedade brasileira é estruturalmente violenta, hierárquica,
vertical, autoritária e oligárquica e o Estado é patrimonialista e cartorial,
organizado segundo a lógica clientelista e burocrática. O clientelismo bloqueia
a prática democrática da representação – o representante não é visto como
portador de um mandato dos representados, mas como provedor de favores aos
eleitores. A burocracia bloqueia a democratização do Estado porque não é uma
organização do trabalho e sim uma forma de poder fundada em três princípios
opostos aos democráticos: a hierarquia, oposta à igualdade; o segredo, oposto
ao direito à informação; e a rotina de procedimentos, oposta à abertura
temporal da ação política.
Além disso, social e economicamente nossa sociedade está
polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio
absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a
consolidação da democracia. Um privilégio é, por definição, algo particular que
não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma
carência é uma falta também particular ou específica que se exprime numa
demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem
universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é
particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido
para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora
diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das
minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o
privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos, definidora da
democracia.
A esses obstáculos, podemos acrescentar ainda aquele
decorrente do neoliberalismo, qual seja o encolhimento do espaço público e o
alargamento do espaço privado. Economicamente, trata-se da eliminação de
direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em
proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em proveito do
capital; a economia e a política neoliberais são a decisão de destinar os
fundos públicos aos investimentos do capital e de cortar os investimentos
públicos destinados aos direitos sociais, transformando-os em serviços
definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos
transformados em serviços, privatização que aumenta a cisão social entre a
carência e o privilégio, aumentando todas formas de exclusão. Politicamente o
encolhimento do público e o alargamento do privado colocam em evidência o bloqueio
a um direito democrático fundamental sem o qual a cidadania, entendida como
participação social, política e cultural é impossível, qual seja, o direito à
informação.
II. Os meios de
comunicação como exercício de poder
Podemos focalizar o exercício do poder pelos meios de
comunicação de massa sob dois aspectos principais: o econômico e o ideológico.
Do ponto de vista econômico, os meios de comunicação fazem
parte da indústria cultural. Indústria porque são empresas privadas operando no
mercado e que, hoje, sob a ação da chamada globalização, passa por profundas
mudanças estruturais, “num processo nunca visto de fusões e aquisições,
companhias globais ganharam posições de domínio na mídia.”, como diz o
jornalista Caio Túlio Costa. Além da forte concentração (os oligopólios beiram
o monopólio), também é significativa a presença, no setor das comunicações, de
empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição nessa área. O porte dos
investimentos e a perspectiva de lucros jamais vistos levaram grupos proprietários
de bancos, indústria metalúrgica, indústria elétrica e eletrônica, fabricantes
de armamentos e aviões de combate, indústria de telecomunicações a adquirir,
mundo afora, jornais, revistas, serviços de telefonia, rádios e televisões,
portais de internet, satélites, etc..
No caso do Brasil, o poderio econômico dos meios é
inseparável da forma oligárquica do poder do Estado, produzindo um dos
fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o que Alberto Dines chamou
de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma privatizada das concessões
públicas de canais de rádio e televisão, concedidos a parlamentares e lobbies
privados, de tal maneira que aqueles que deveriam fiscalizar as concessões
públicas se tornam concessionários privados, apropriando-se de um bem público
para manter privilégios, monopolizando a comunicação e a informação. Esse
privilégio é um poder político que se ergue contra dois direitos democráticos
essenciais: a isonomia (a igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito à
palavra ou o igual direito de todos de expressar-se em público e ter suas
opiniões publicamente discutidas e avaliadas). Numa palavra, a cidadania
democrática exige que os cidadãos estejam informados para que possam opinar e
intervir politicamente e isso lhes é roubado pelo poder econômico dos meios de
comunicação.
A isonomia e a isegoria são também ameaçadas e destruídas
pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato, do ponto de vista
ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos a ideologia da
competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob a forma
anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia social,
política e cultural está fundada na crença na racionalidade técnico-científica.
A ideologia da competência pode ser resumida da seguinte
maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião
dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de
antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pré-determina
os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e define
previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido.
Essas distinções têm como fundamento uma distinção principal, aquela que divide
socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico,
técnico, religioso, político, artístico), que podem falar e têm o direito de
mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa
palavra, a ideologia da competência institui a divisão social entre os
competentes, que sabem e por isso mandam, e os incompetentes, que não sabem e
por isso obedecem.
Enquanto discurso do conhecimento, essa ideologia opera com a
figura do especialista. Os meios de comunicação não só se alimentam dessa
figura, mas não cessam de instituí-la como sujeito da comunicação. O
especialista competente é aquele que, no rádio, na TV, na revista, no jornal ou
no multimídia, divulga saberes, falando das últimas descobertas da ciência ou
nos ensinando a agir, pensar, sentir e viver. O especialista competente nos
ensina a bem fazer sexo, jardinagem, culinária, educação das crianças,
decoração da casa, boas maneiras, uso de roupas apropriadas em horas e locais
apropriados, como amar Jesus e ganhar o céu, meditação espiritual, como ter um
corpo juvenil e saudável, como ganhar dinheiro e subir na vida. O principal
especialista, porém, não se confunde com nenhum dos anteriores, mas é uma
espécie de síntese, construída a partir das figuras precedentes: é aquele que
explica e interpreta as notícias e os acontecimentos econômicos, sociais,
políticos, culturais, religiosos e esportivos, aquele que devassa, eleva e
rebaixa entrevistados, zomba, premia e pune calouros – em suma, o chamado
“formador de opinião” e o “comunicador”.
Ideologicamente, o poder da comunicação de massa não é um
simples inculcação de valores e ideias, pois, dizendo-nos o que devemos pensar,
sentir, falar e fazer, o especialista, o formador de opinião e o comunicados
nos dizem que nada sabemos e por isso seu poder se realiza como manipulação e
intimidação social e cultural.
Um dos aspectos mais terríveis desse duplo poder dos meios de
comunicação se manifesta nos procedimentos midiáticos de produção da culpa e
condenação sumária dos indivíduos, por meio de um instrumento psicológico
profundo: a suspeição, que pressupõe a presunção de culpa. Ao se referir ao
período do Terror, durante a Revolução Francesa, Hegel considerou que uma de
suas marcas essenciais é afirmar que, por princípio, todos são suspeitos e que
os suspeitos são culpados antes de qualquer prova. Ao praticar o terror, a
mídia fere dois direitos constitucionais democráticos, instituídos pela
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (Revolução Francesa) e
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quais sejam: a
presunção de inocência (ninguém pode ser considerado culpado antes da prova da
culpa) e a retratação pública dos atingidos por danos físicos, psíquicos e
morais, isto é, atingidos pela infâmia, pela injúria e pela calúnia. É para
assegurar esses dois direitos que as sociedades democráticas exigem leis para
regulação dos meios de comunicação, pois essa regulação é condição da liberdade
e da igualdade que definem a sociedade democrática.
III
Faz parte da vida da grande maioria da população brasileira
ser espectadora de um tipo de programa de televisão no qual a intimidade das
pessoas é o objeto central do espetáculo: programas de auditório, de
entrevistas e de debates com adultos, jovens e crianças contando suas preferências
pessoais desde o sexo até o brinquedo, da culinária ao vestuário, da leitura à
religiosidade, do ato de escrever ou encenar uma peça teatral, de compor uma
música ou um balé até os hábitos de lazer e cuidados corporais.
As ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas
tornam-se cada vez mais consultórios sentimental, sexual, gastronômico,
geriátrico, ginecológico, culinário, de cuidados com o corpo (ginástica,
cosméticos, vestuário, medicamentos), de jardinagem, carpintaria, bastidores da
criação artística, literária e da vida doméstica. Há programas de entrevista no
rádio e na televisão que ou simulam uma cena doméstica – um almoço, um jantar –
ou se realizam nas casas dos entrevistados durante o café da manhã, o almoço ou
o jantar, nos quais a casa é exibida, os hábitos cotidianos são descritos e
comentados, álbuns de família ou a própria são mostrados ao vivo e em cores. Os
entrevistados e debatedores, os competidores dos torneios de auditório, os que
aparecem nos noticiários, todos são convidados e mesmo instados com vigor a que
falem de suas preferências, indo desde sabores de sorvete até partidos
políticos, desde livros e filmes até hábitos sociais. Não é casual que os
noticiários, no rádio e na televisão, ao promoverem entrevistas em que a
notícia é intercalada com a fala dos direta ou indiretamente envolvidos no
fato, tenham sempre repórteres indagando a alguém: “o que você sentiu/sente com
isso?” ou “o que você achou/acha disso?” ou “você gosta? não gosta disso?”. Não
se pergunta aos entrevistados o que pensam ou o que julgam dos acontecimentos,
mas o que sentem, o que acham, se lhes agrada ou desagrada.
Também tornou-se um hábito nacional jornais e revistas
especializarem-se cada vez mais em telefonemas a “personalidades”
indagando-lhes sobre o que estão lendo no momento, que filme foram ver na
última semana, que roupa usam para dormir, qual a lembrança infantil mais
querida que guardam na memória, que música preferiam aos 15 anos de idade, o
que sentiram diante de uma catástrofe nuclear ou ecológica, ou diante de um
genocídio ou de um resultado eleitoral, qual o sabor do sorvete preferido, qual
o restaurante predileto, qual o perfume desejado. Os assuntos se equivalem,
todos são questão de gosto ou preferência, todos se reduzem à igual banalidade
do “gosto” ou “não gosto”, do “achei ótimo” ou “achei horrível”.
Todos esses fatos nos conduzem a uma conclusão: a mídia está
imersa na cultura do narcisismo.
Como observa Christopher Lash, em A Cultura do Narcisismo, os
mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade
substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e
confiabilidade – para que algo seja aceito como real basta que apareça como
crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável. Os fatos cedem
lugar a declarações de “personalidades autorizadas”, que não transmitem
informações, mas preferências e estas se convertem imediatamente em propaganda.
Como escreve Lash, “sabendo que um público cultivado é ávido por fatos e
cultiva a ilusão de estar bem informado, o propagandista moderno evita slogans
grandiloqüentes e se atém a ‘fatos’, dando a ilusão de que a propaganda é
informação”.
Qual a base de apoio da credibilidade e da confiabilidade? A
resposta encontra-se num outro ponto comum aos programas de auditório, às
entrevistas, aos debates, às indagações telefônicas de rádios, revistas e
jornais, aos comerciais de propaganda. Trata-se do apelo à intimidade, à
personalidade, à vida privada como suporte e garantia da ordem pública. Em
outras palavras, os códigos da vida pública passam a ser determinados e
definidos pelos códigos da vida privada, abolindo-se a diferença entre espaço
público e espaço privado. Assim, as relações interpessoais, as relações
intersubjetivas e as relações grupais aparecem com a função de ocultar ou de
dissimular as relações sociais enquanto sociais e as relações políticas
enquanto políticas, uma vez que a marca das relações sociais e políticas é
serem determinadas pelas instituições sociais e políticas, ou seja, são relações
mediatas, diferentemente das relações pessoais, que são imediatas, isto é,
definidas pelo relacionamento direto entre pessoas e por isso mesmo nelas os
sentimentos, as emoções, as preferências e os gostos têm um papel decisivo. As
relações sociais e políticas, que são mediações referentes a interesses e a
direitos regulados pelas instituições, pela divisão social das classes e pela
separação entre o social e o poder político, perdem sua especificidade e passam
a operar sob a aparência da vida privada, portanto, referidas a preferências,
sentimentos, emoções, gostos, agrado e aversão.
Não é casual, mas uma consequência necessária dessa
privatização do social e do político, a destruição de uma categoria essencial
das democracias, qual seja a da opinião pública. Esta, em seus inícios (desde a
Revolução Francesa de 1789), era definida como a expressão, no espaço público,
de uma reflexão individual ou coletiva sobre uma questão controvertida e
concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social, de um grupo ou
mesmo da maioria. A opinião pública era um juízo emitido em público sobre uma
questão relativa à vida política, era uma reflexão feita em público e por isso
definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de pensamento e
de expressão.
É sintomático que, hoje, se fale em “sondagem de opinião”.
Com efeito, a palavra sondagem indica que não se procura a expressão pública
racional de interesses ou direitos e sim que se vai buscar um fundo silencioso,
um fundo não formulado e não refletido, isto é, que se procura fazer vir à tona
o não-pensado, que existe sob a forma de sentimentos e emoções, de
preferências, gostos, aversões e predileções, como se os fatos e os
acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se exprimir pelos sentimentos
pessoais. Em lugar de opinião pública, tem-se a manifestação pública de
sentimentos.
Nada mais constrangedor e, ao mesmo tempo, nada mais
esclarecedor do que os instantes em que o noticiário coloca nas ondas sonoras
ou na tela os participantes de um acontecimento falando de seus sentimentos,
enquanto locutores explicam e interpretam o que se passa, como se os
participantes fossem incapazes de pensar e de emitir juízo sobre aquilo de que
foram testemunhas diretas e partes envolvidas. Constrangedor, porque o rádio e
a televisão declaram tacitamente a incompetência dos participantes e envolvidos
para compreender e explicar fatos e acontecimentos de que são protagonistas.
Esclarecedor, porque esse procedimento permite, no instante mesmo em que se
dão, criar a versão do fato e do acontecimento como se fossem o próprio fato e
o próprio acontecimento. Assim, uma partilha é claramente estabelecida: os
participantes “sentem”, portanto, não sabem nem compreendem (não pensam); em
contrapartida, o locutor pensa, portanto, sabe e, graças ao seu saber, explica
o acontecimento.
É possível perceber três deslocamentos sofridos pela ideia e
prática da opinião pública: o primeiro, como salientamos, é a substituição da
ideia de uso público da razão para exprimir interesses e direitos de um
indivíduo, um grupo ou uma classe social pela ideia de expressão em público de
sentimentos, emoções, gostos e preferências individuais; o segundo, como também
observamos, é a substituição do direito de cada um e de todos de opinar em público
pelo poder de alguns para exercer esse direito, surgindo, assim, a curiosa
expressão “formador de opinião”, aplicada a intelectuais, artistas e
jornalistas; o terceiro, que ainda não havíamos mencionado, decorre de uma
mudança na relação entre s vários meios de comunicação sob os efeitos das
tecnologias eletrônica e digital e da formação de oligopólios midiáticos
globalizados (alguns autores afirmam que o século XXI começou com a existência
de 10 ou 12 conglomerados de mass media de alcance global). Esse terceiro
deslocamento se refere à forma de ocupação do espaço da opinião pública pelos
profissionais dos meios de comunicação. Esses deslocamentos explicam algo
curioso, ocorrido durante as sondagens de intenção de voto nas eleições
presidenciais de 2006: diante dos resultados, uma jornalista do jornal O Globo
escreveu que o povo estava contra a opinião pública!
O caso mais interessante é, sem dúvida, o do jornalismo
impresso. Em tempos passados, cabia aos jornais a tarefa noticiosa e um jornal
era fundamentalmente um órgão de notícias. Sem dúvida, um jornal possuía
opiniões e as exprimia: isso era feito, de um lado, pelos editorais e por
artigos de não-jornalistas, e, de outro, pelo modo de apresentação da notícia
(escolha das manchetes e do “olho”, determinação da página em que deveria
aparecer e na vizinhança de quais outras, do tamanho do texto, da presença ou
ausência de fotos, etc.). Ora, com os meios eletrônicos e digitais e a
televisão, os fatos tendem a ser noticiados enquanto estão ocorrendo, de
maneira que a função noticiosa do jornal é prejudicada, pois a notícia impressa
é posterior à sua transmissão pelos meios eletrônicos e pela televisão. Ou na
linguagem mais costumeira dos meios de comunicação: no mercado de notícias, o
jornalismo impresso vem perdendo competitividade (alguns chamam a isso de
progresso; outros, de racionalidade inexorável do mercado!).
O resultado dessa situação foi duplo: de um lado, a notícia é
apresentada de forma mínima, rápida e, frequentemente, inexata – o modelo conhecido
como news letter – e, de outro, deu-se a passagem gradual do jornal como órgão
de notícias a órgão de opinião, ou seja, os jornalistas comentam e interpretam
as notícias, opinando sobre elas. Gradualmente desaparece uma figura essencial
do jornalismo: o jornalismo investigativo, que cede lugar ao jornalismo
assertivo ou opinativo. Os jornalistas passam, assim, o ocupar o lugar que,
tradicionalmente, cabia a grupos e classes sociais e a partidos políticos e,
além disso, sua opinião não fica restrita ao meio impresso, mas passa a servir
como material para os noticiários de rádio e televisão, ou seja, nesses
noticiários, a notícia é interpretada e avaliada graças à referência às colunas
dos jornais.
Os deslocamentos mencionados e, particularmente, este último,
têm conseqüências graves sob dois aspectos principais:
1) Uma vez que o jornalista concentra poderes e forma a
opinião pública, pode sentir-se tentado a ir além disso e criar a própria
realidade, isto é, sua opinião passa a ter o valor de um fato e a ser tomada
como um acontecimento real;
2) Os efeitos da concentração do poder econômico midiático.
Os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio, cinema, televisão) sempre
foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não podendo deixar de exprimir
seus interesses particulares ou privados, ainda que isso sempre tenha imposto
problemas e limitações à liberdade de expressão, que fundamenta a ideia de
opinião pública. Hoje, porém, os conglomerados de alcance global controlam não
só os meios tradicionais, mas também os novos meios eletrônicos e digitais, e
avaliam em termos de custo-benefício as vantagens e desvantagens do jornalismo
escrito ou da imprensa, podendo liquidá-la, se não acompanhar os ares do tempo.
Esses dois aspectos incidem diretamente sobre a transformação
da verdade e da falsidade em questão de credibilidade e plausibilidade. Rápido,
barato, inexato, partidarista, mescla de informações aleatoriamente obtidas e
pouco confiáveis, não investigativo, opinativo ou assertivo, detentor da credibilidade
e da plausibilidade, o jornalismo se tornou protagonista da destruição da
opinião pública.
De fato, a desinformação é o principal resultado da maioria
dos noticiários nos jornais, no rádio e na televisão, pois, de modo geral, as
notícias são apresentadas de maneira a impedir que se possa localizá-la no
espaço e no tempo.
Ausência de referência espacial ou atopia: as diferenças
próprias do espaço percebido (perto, longe, alto, baixo, grande, pequeno) são
apagadas; o aparelho de rádio e a tela da televisão tornam-se o único espaço
real. As distâncias e proximidades, as diferenças geográficas e territoriais
são ignoradas, de tal modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados
Unidos ou em Campina Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante.
Ausência de referência temporal ou acronia: os acontecimentos
são relatados como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros; surgem
como pontos puramente atuais ou presentes, sem continuidade no tempo, sem
origem e sem conseqüências; existem enquanto forem objetos de transmissão e
deixam de existir se não forem transmitidos. Têm a existência de um espetáculo
e só permanecem na consciência dos ouvintes e espectadores enquanto permanecer
o espetáculo de sua transmissão.
Como operam efetivamente
os noticiários?
Em primeiro lugar, estabelecem diferenças no conteúdo e na
forma das notícias de acordo com o horário da transmissão e o público, rumando
para o sensacionalismo e o popularesco nos noticiários diurnos e do início da
noite e buscando sofisticação e aumento de fatos nos noticiários de fim de
noite. Em segundo, por seleção das notícias, omitindo aquelas que possam
desagradar o patrocinador ou os poderes estabelecidos. Em terceiro, pela
construção deliberada e sistemática de uma ordem apaziguadora: em sequência,
apresentam, no início, notícias locais, com ênfase nas ocorrências policiais,
sinalizando o sentimento de perigo; a seguir, entram as notícias regionais, com
ênfase em crises e conflitos políticos e sociais, sinalizando novamente o
perigo; passam às notícias internacionais, com ênfase em guerras e cataclismos
(maremoto, terremoto, enchentes, furacões), ainda uma vez sinalizando perigo;
mas concluem com as notícias nacionais, enfatizando as ideias de ordem e
segurança, encarregadas de desfazer o medo produzido pelas demais notícias. E,
nos finais de semana, terminam com notícias de eventos artísticos ou sobre
animais (nascimento de um ursinho, fuga e retorno de um animal em cativeiro,
proteção a espécies ameaçadas de extinção), de maneira a produzir o sentimento
de bem-estar no espectador pacificado, sabedor de que, apesar dos pesares, o
mundo vai bem, obrigado.
Paradoxalmente, rádio e televisão podem oferecer-nos o mundo
inteiro num instante, mas o fazem de tal maneira que o mundo real desaparece,
restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no
espaço e no tempo. Como desconhecemos as determinações econômico-territoriais
(geográficas, geopolíticas, etc.) e como ignoramos os antecedentes temporais e
as consequências dos fatos noticiados, não podemos compreender seu verdadeiro
significado. Essa situação se agrava com a TV a cabo, com emissoras dedicadas
exclusivamente a notícias, durante 24 horas, colocando num mesmo espaço e num
mesmo tempo (ou seja, na tela) informações de procedência, conteúdo e
significado completamente diferentes, mas que se tornam homogêneas pelo modo de
sua transmissão. O paradoxo está em que há uma verdadeira saturação de
informação, mas, ao fim, nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que
fomos informados sobre tudo.
Se não dispomos de recursos que nos permitam avaliar a
realidade e a veracidade das imagens transmitidas, somos persuadidos de que
efetivamente vemos o mundo quando vemos a TV ou quando navegamos pela internet.
Entretanto, como o que vemos são as imagens escolhidas, selecionadas, editadas,
comentadas e interpretadas pelo transmissor das notícias, então é preciso
reconhecer que a TV é o mundo ou que a internet é o mundo.
A multimídia potencializa o fenômeno da indistinção entre as
mensagens e entre os conteúdos. Como todas as mensagens estão integradas num
mesmo padrão cognitivo e sensorial, uma vez que educação, notícias e
espetáculos são fornecidos pelo mesmo meio, os conteúdos se misturam e se
tornam indiscerníveis. No sistema de comunicação multimídia a própria realidade
fica totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais num mundo irreal,
no qual as aparências não apenas se encontram na tela comunicadora da
experiência, mas se transformam em experiência. Todas as mensagens de todos os
tipos são incluídas no meio por que fica tão abrangente, tão diversificado, tão
maleável, que absorve no mesmo texto ou no mesmo espaço/tempo toda a
experiência humana, passada, presente e futura, como num ponto único do universo.
Se, portanto, levarmos em consideração o monopólio da
informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar, do ponto
de vista da ação política, as redes sociais como ação democratizadora tanto por
quebrar esse monopólio, assegurando a produção e a circulação livres da
informação, como também por promover acontecimentos políticos de afirmação do
direito democrático à participação. No entanto, os usuários das redes sociais
não possuem autonomia em sua ação e isto sob dois aspectos: em primeiro lugar,
não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que empregam e, em segundo, não
detêm qualquer poder sobre a ferramenta empregada, pois este poder é uma
estrutura altamente concentrada, a Internet Protocol, com dez servidores nos
Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados todos os endereços
eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores decidirem se desligar,
desaparece toda a internet; além disso, a gerência da internet é feita por uma
empresa norte-americana em articulação com o Departamento de Comércio dos
Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da internet mundial. Assim, sob o
aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação
política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala
planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta.
Na perspectiva da democracia, a questão que se coloca,
portanto, é saber quem detêm o controle dessa massa cósmica de informações. Ou
seja, o problema é saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que
controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as
utiliza, sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico, que define a
operação da informática, qual seja, a concentração e centralização da informação,
pois tecnicamente, os sistemas informáticos operam em rede, isto é, com a
centralização dos dados e a produção de novos dados pela combinação dos já
coletados.
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