Na semana passada, ao ler no site da Folha a notícia “Justiça
determina abertura de ação penal contra militares por crimes na ditadura”,
atravessou o meu espírito uma reprovação. Já no primeiro parágrafo se
anunciava:
“Militares que atuaram
na repressão durante o regime militar (1964-85) responderão a ação penal por
supostos crimes cometidos durante a ditadura”.
Por que e como supostos crimes? Não bastam as seguidas e
cumulativas provas, de testemunhas, de
documentos, e até entrevistas de réus confessos, para retirar o véu da dúvida?
Mas continuava a notícia:
“A Justiça Federal em
Marabá (685 km de Belém) aceitou denúncia do Ministério Público Federal e
determinou a abertura de ação penal contra o coronel da reserva Sebastião Rodrigues
Curió (foto acima) , 77, e contra o tenente-coronel da reserva Lício Maciel,
82”.
Depois disso, atravessaram o espírito dois espantos. O
primeiro foi ver o quanto o assunto justiça e ditadura havia sido o mais
comentado e enviado no site em 30 de agosto. O segundo foi conhecer o gênero e
grau de comentários que sob a reportagem se abrigavam, dos raivosos defensores
do golpe de 64 aos mais complacentes e pacifistas, sempre na velha fórmula: para quê tanta confusão, se tudo é morto e
passado?
Não vem ao caso aqui mostrar o paradoxo de quem argumenta
que, por um lado, a história da ditadura é ultrapassada, e por outro, manter a feroz defesa do regime
que não mais existe, como se os anos da guerra fria estivessem em uma
geladeira. Do necrotério de 1970, talvez. Importa mais agora, entre os
comentários cordatos, um apelo que li dirigido aos brasileiros de bons
corações, nesta esperta frase:
“Um deles tem 77 anos,
o outro tem 82. Não adianta ficar prendendo ex-coronel que fez crimes na
ditadura civil-militar. Nossa ditadura foi a mais branda da América Latina, não
que eu esteja tentando justificá-la, mas ficar revogando a lei da Anistia pra
prender velhinhos é no mínimo covardia. Não sabia que a esquerda queria se
vingar de vovôs”.
Vovós, poderia ser dito, para ser mais forte a fragilidade
dos velhos coitadinhos. Ora, tenho junto a mim um precioso depoimento de uma
senhora que teve a sorte de morar no mesmo edifício do coronel Vilocq, quando
ele estava velhinho. Quando ele não mais era uma fortaleza de abuso e
violência. Os mais jovens não sabem, mas Vilocq arrastou Gregório Bezerra por
uma corda, espancou o bravo comunista sob cano de ferro, e esteve a ponto de
enforcá-lo em praça pública em 1964. Quanta força contra um homem rendido e
desarmado. Pois bem, assim me contou a privilegiada:
Muitas vezes, viu a conversarem, em voz amena e agradável,
lado a lado, em suas cadeiras de rodas,
Darcy Vilocq e Wandenkolk Wanderley, que moravam no mesmo edifício e destino.
Olhem que feliz coincidência, lado a lado, a ferocidade e o terror. Um,
Wandenkolk, ex-delegado, que usava alicate para arrancar unhas de comunistas no Recife; outro, Vilocq,
sobre quem Gregório fala em suas memórias. Pois ficavam os dois companheiros a
cavaquear, pelas tardes, na paz do bucólico bairro de Casa Forte.
De Vilocq, a minha privilegiada amiga informa um pouco mais,
neste brilho de ironia involuntária da cena brasileira: uma empregada
doméstica, no prédio em que ele morava,
dizia que Vilocq parecia um bebê, de tão inofensivo e pacífico na velhice. A ponto de ela
brincar, muitas vezes com ele, dizendo: “eu vou te pegar, eu vou te pegar”. O
bebêzinho, o velhinho sorria, já sem a força de espancar com ferro e obrigar um
homem a pisar em pedrinhas, depois de lhe arrancar a pele dos pés a maçarico.
Para infelicidade geral, os dois bons velhinhos já não mais
existem. O que gostava de unhas com pedaços de carne foi para o céu aos 90
anos, em 2002. O que tentou enfiar no ânus de Gregório Bezerra um cano seguiu
para Deus aos 93, em março deste ano. Ficou um vazio nas tardes da história
onde mora a minha amiga. Como poderá a justiça humana agora alcançá-los? Com
quem brincará a boa moça, empregada doméstica?
Pensemos neles, por eles e para a justiça que não lhes
chegou, quando olharmos os idosos e respeitáveis Carlos Alberto Brilhante
Ustra, David dos Santos Araujo, Ariovaldo da Hora e Silva, Maurício Lopes Lima,
Carlos Alberto Ponzi, Adriano Bessa Ferreira, José Armando Costa, Paulo Avelino
Reis, Dulene Aleixo Garcez dos Reis. E outros velhos, muitos outros de Norte a
Sul do país, que no tempo de poder foram o terror do Estado no Brasil. Eles
ficaram apenas mais velhos, os bons velhinhos assassinos.
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