Mesmo com a
democratização e a abertura política alcançadas, ainda cabe perguntar: e a
ética dos jornalistas? Não basta dizer que são obrigados por seus patrões a
deixarem de lado os preceitos da profissão. Parece que esses profissionais
assumiram, nem que paulatinamente, a ideologia neoliberal, com todas as suas
consequências
“Será necessária a ação
política (no sentido estrito) para que se possa falar de “partido político”?
(...) Muitas vezes o Estado-Maior intelectual do partido orgânico não pertence
a nenhuma das frações, mas opera como se fosse uma força dirigente superior
aos partidos e às vezes reconhecida como
tal pelo público. Essa função pode ser estudada com maior precisão se se parte
do ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou um
grupo de revistas) são também eles “partidos”, “frações de partido” ou “funções
de um determinado partido”. Veja-se a função do Times na Inglaterra, a que teve
o Corriere della Sera na Itália e também a função da chamada “imprensa de
informação”, supostamente “apolítica”, e até a função da imprensa esportiva e
da imprensa técnica.”
(GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o
Estado Moderno. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1976, pp.
22-23.)
Com o fim da ditadura,
a imprensa brasileira, que vivera confortavelmente sob aquele regime e não se
importava tanto com o Estado forte, inclusive na economia, passa à defesa do
Estado mínimo, mudança que, naturalmente, não se dá de súbito, como num passe
de mágica. Um novo ideário vai se constituindo no final dos anos 1970, início
dos 1980, no momento da afirmação de uma conformação empresarial jornalística
claramente fundada no mercado – conformação que, por certo, influencia
decididamente os jornalistas do ponto de vista de sua ideologia, de sua
compreensão do mundo. Isso terá consequências de longo curso. Queremos tratar
desse aspecto neste texto.
A burguesia brasileira,
intimamente associada ao capital internacional, compreende nesse imediato
pós-ditadura que já é hora de modificar aspectos do Estado montado no Brasil
após os anos 30 do século 20, destituindo-o de suas funções econômicas diretas
tanto quanto pudesse. Os proprietários dos meios de comunicação, que compõem
então um setor econômico dinâmico, que integram a burguesia brasileira, não
são, obviamente, indiferentes a esse movimento, e incorporam-se a ele,
particularmente a partir da Constituinte. O Estado mínimo passa a ser um dos
objetivos da velha mídia, e ganha maior consistência com a afirmação do
neoliberalismo em escala mundial.
O neoliberalismo, como
se sabe, foi a resposta a uma crise do capitalismo, modo de produção que tem
uma incrível capacidade de responder a crises. Não se aceitava mais a receita
keynesiana. Chega com sua visão de que ao Estado cabe tão-somente assegurar a
espontaneidade do mercado, verdadeira matriz revolucionária de todo
desenvolvimento – ou, se quisermos ser mais precisos, matriz essencial da
acumulação capitalista. O Welfare State soçobrava nessa nova fase. Não era mais
funcional ao sistema, embora funcional, aqui, possa parecer inadequado, porque
ele é resultado da luta dos trabalhadores, também.
O neoliberalismo
reclamava, ao contrário do que se diz, um Estado forte. Mas forte em sua
capacidade de reprimir os trabalhadores, diminuir o poder dos sindicatos, forte
na contenção dos gastos sociais e na restrição às intervenções diretas do
Estado na economia, generoso no socorro ao mercado quando necessário, capaz de
promover reformas fiscais indispensáveis aos investimentos capitalistas e,
muito importante, um Estado que considerasse a desigualdade algo muito
saudável, útil ao desenvolvimento capitalista. Do ângulo de quem pensasse ao
menos o Welfare State, para não nos referirmos ao pensamento socialista, uma
fórmula profundamente cruel para todas as populações, e em especial para os
trabalhadores.
Ao Brasil, o
neoliberalismo chega tardiamente, depois de já haver deitado raízes profundas
no Chile de Pinochet, quase um efeito demonstração sob uma ditadura sangrenta,
e em terras europeias, a partir da experiência inglesa, iniciada no final dos
anos 70 do século 20, com Margaret Thatcher. A luta política da Constituinte em
terras brasileiras determinou a vitória de ideias avessas ao neoliberalismo. A
Constituição de 1988 aproximava-se muito mais do Welfare State do que do
receituário neoliberal. Caminhou na contramão da lógica mundial, ao menos na
letra da lei.
Collor é quem inaugura
a proposta neoliberal, embora seja de fato Fernando Henrique Cardoso que, a
partir de 1995 e até 2002, a executa com rigor, a ponto de quase levar o Brasil
à falência, privatizar tudo que pôde e fazer a festa do livre mercado. A
receita do neoliberalismo indica sempre não desenvolver políticas voltadas para
os mais pobres, e nisso também não faltou coerência a FHC, que foi rigoroso com
sua particular teoria da dependência ao tornar-se um eficiente condottiero da
burguesia brasileira e internacional.
Portanto, no
pós-ditadura, que termina em 1985, vivemos um tempo de mutação. Há mudanças na
política e na economia. Na estrutura e na superestrutura, para recorrer a uma
tipologia antiga. Lembro-me agora, antes de adentrar o assunto que me
interessa, de uma questão posta por Daniel Aarão Reis Filho – será que a
sociedade brasileira não teve responsabilidade para com a sobrevivência da
ditadura por 21 anos?
Houve, de alguma forma,
sem dúvida, uma complacência da sociedade com aquele estado de coisas, senão a
ditadura teria sido escorraçada antes. Havia um conformismo, que pode ser
explicado de variadas maneiras, pela política, pela história, pela cultura, mas
conformismo. É por esse caminho que chego aos jornalistas, à massa de
jornalistas, ao meu objeto neste texto.
Enfrento, e o faço há
algum tempo, uma pergunta incômoda: nessa nova configuração da imprensa, com
uma tomada de posição pós-ditadura a favor do Estado mínimo e na sequência do
neoliberalismo, que são irmãos siameses, qual a responsabilidade dos
jornalistas? Normalmente, essa questão não é posta, é como se o problema não
existisse. Eu próprio, ao me perguntar, hesitava em responder, e nem sei se o
conseguirei. Tentarei abrir picadas na floresta.
Parece que há
tão-somente a imposição do patrão, e a enorme massa dos produtores de notícias
é obrigada a cumpri-la. Não tem sido posta a questão para os jornalistas – aos
editores, pauteiros, chefes de reportagem, ao reportariado –, apenas aos
redatores-chefes, estes, no Brasil, sempre predispostos a obedecer às ordens
emanadas de cima.
Para a maioria dos que
produzem a notícia, pode ser uma situação confortável. A responsabilidade fica
com os patrões, evidentemente os que definem as diretrizes de cada veículo. Não
creio que possamos nos acomodar com essa explicação.
Para insistir, a massa
de jornalistas não foi, de alguma forma, assumindo, nem que paulatinamente, a
ideologia neoliberal, com todas as suas consequências? Vamos tentar analisar
isso, arriscar uma análise, mexer num vespeiro.
Se se pudesse falar de
um exercício de hegemonia no interior dos próprios meios de comunicação, seria
possível especular sobre o fato de que o aspecto principal do controle dos
profissionais na velha mídia não é a coerção, mas o consenso, construído
pacientemente, num processo quase imperceptível aos olhos dos próprios
jornalistas.
Arrisco outra hipótese: essa foi uma batalha silenciosa,
que foi sendo perdida pelo pensamento de esquerda no território jornalístico,
que, salvo exceções, está adstrito nos dias de hoje às iniciativas da internet,
que ressalto serem da maior importância. São elas que nos impedem de estar inteiramente
submetidos ao pensamento único da velha mídia.
Ouso dizer que falar em
imposição dos patrões, simplesmente, parece algo estranho, pouco verossímil.
Claro que o jornalismo brasileiro, com sua estrutura ainda muito baseada em
famílias, tem uma característica quase patriarcal, no sentido do mando. Os
patrões dão ordens, sim. Mas as ordens teriam dificuldade de ser realizadas não
fosse a participação decisiva dos próprios jornalistas, que influenciados pelos
editores e pela linha editorial de cada órgão, repetida ad nauseam, vão se
envolvendo profundamente com a ideologia de cada veículo e, também, com as dos
outros veículos da velha mídia, ideologias que não guardam quase nenhuma
diferença entre si.
O neoliberalismo, com sua carga individualista, com sua
visão privatizante do mundo, com seu desprezo pelas políticas voltadas para os
mais pobres, com seu estímulo ao consumismo, com sua valorização dos
investimentos capitalistas, com seu reforço de um Estado repressor, foi se
entronizando nos corações e mentes dos jornalistas, sem que, talvez, se dessem
conta disso.
Mais do que no restante
da sociedade, na qual, no Brasil, as reações a ideologias dominantes são cada
vez mais evidentes, poderíamos dizer, com Marx, que aqui, no território da
velha mídia, no mundo dos jornalistas, a ideologia da classe dominada é a mesma
das classes dominantes. Esse trabalho de construção cotidiana do consenso entre
os jornalistas, de reelaboração permanente do padrão ideológico, da reafirmação
de visões de mundo conservadoras, sempre vem revestido de aparências
modernizadoras. Tudo o que não estiver vinculado ao dinamismo do mercado, da
atividade privada, estará condenado ao fogo do inferno. O novo, o moderno, o
progresso está vinculado à lógica do mercado. O que tiver cara de estatal
receberá o rótulo inevitável do atraso.
A nova orientação
jornalística adotada, os novos parâmetros, os novos pressupostos que vão sendo
construídos não são elaborados, insista-se, à base da pressão constante sobre
jornalistas inconformados, mas natural e suavemente, mesmo que se registrem,
aqui e acolá, reações individuais, que podem ser contadas nos dedos.
Manuais de redação,
orientação dos editores, fontes selecionadas a dedo de modo a sempre confluírem
com a opinião da pauta, influência das agências de notícias internacionais
permeada pela visão neoliberal de mundo, tudo isso cria uma circularidade, com
os profissionais girando em torno de si mesmos, onde falta, naturalmente, uma
visão crítica, onde inexiste abertura para outras visões.
Constitui-se um
pensamento único, extravasado pelas páginas de jornais, pelas telas de tevê,
pelas ondas das emissoras de rádio, que no Brasil, como se sabe, são
controlados por algumas poucas famílias. Esse pensamento foi se construindo, a
batalha no plano das ideias foi sendo vencida pelos conservadores, o pensamento
neoliberal conquistou hegemonia nas redações – essa é uma conclusão que imagino
bastante razoável.
E se na última década
no Brasil, para além do fato de os jornalistas e editores estarem vinculados ao
pensamento neoliberal, a atividade da velha mídia voltou-se para o combate
sistemático ao projeto político que se iniciou em 2003, Lula à frente, seguido
agora por Dilma, aí as coisas se complicam ainda mais. O fenômeno da
partidarização ganhou caráter extremado, com graves consequências inclusive
para a qualidade do nosso jornalismo.
E esse fenômeno, que
não é incomum, que poderia ser normal se claramente revelado, que existe em
outros países, no caso brasileiro assume feições nunca dantes vistas, pela sua
capacidade de desconhecer fatos, de inventá-los, de desenvolver operações
sistemáticas de combate ao governo, não importando, como já dito, se há
correspondência com a realidade.
Com esse grau de
partidarização, fez-se letra morta até dos próprios manuais de redação, todos
eles preocupados, na teoria, a defender a natureza dos fatos e a
obrigatoriedade de ouvir os diversos lados. Ninguém desconhece que ao abordar
qualquer fato sempre haverá uma interpretação. Mas o jornalismo liberal, no
qual a partidarização não é tão escancarada e tão desonesta como no Brasil,
consegue tratar os fatos de forma menos obscena, menos manipuladora. E esse
jornalismo liberal insiste em ouvir os diversos lados, para ao menos cumprir um
dos preceitos que sempre advogou, para tentar garantir sua credibilidade, não
perder legitimidade. No Brasil, nos dias de hoje, não há essa preocupação.
Estamos no pior dos
mundos. Não há preocupação com os fatos. Não há preocupação em ouvir todas as
fontes envolvidas. Importa só confirmar a hipótese da pauta, não importando os
meios a serem utilizados, inclusive os ilegais, inclusive os chutes, inclusive
barrigadas incríveis, inclusive os grampos, inclusive invasões de domicílios, o
que seja.
Aqui, já fomos além de
Rupert Murdoch. E a massa de jornalistas não tem nada a ver com isso? Trata-se
apenas de uma cruel ditadura dos patrões?
Não creio. Mais do que
nunca, impõe-se uma discussão profunda sobre isso. Para que não se transfiram
responsabilidades ou, noutra hipótese, para que se assuma de peito aberto um
modelo de jornalismo, se é possível defender esse modelo. Se for, que seja. Mas
que não se vista de jornalismo objetivo e imparcial, como sempre pretenderam os
manuais de redação.
Sabemos que o jornalismo chamado objetivo e imparcial é
uma impossibilidade, ao menos se tomado ao pé da letra. Mas, levado a sério,
praticado com os padrões éticos que advoga, contribui para a sociedade, e
contém muito mais verdade que o praticado pela velha mídia no Brasil.
Será que as entidades
sindicais dos jornalistas não se dispõem a discutir a cláusula de consciência?
Será que não é possível reclamar alguma autonomia, alguma que seja, de uma
atividade tão especial como é a do jornalista?
Será que não se exige a
discussão sobre a responsabilidade social e política dos que lidam com uma
mercadoria tão importante como a notícia, com sua extraordinária
especificidade?
Será que não poderíamos
ao menos pensar na ética do marceneiro, a que se referia Cláudio Abramo? O que
quer dizer simplesmente a ética do cidadão que tem responsabilidades políticas
com o país e sua gente?
Será que de fato ao
jornalista, ao que escreve, ao que produz, não cabe discutir o que vai ao ar, o
que se imprime, o que transita pelas ondas das emissoras de rádio? Será que aos
jornalistas cabe apenas a tarefa de expressar a ideologia dos monopólios da
comunicação no Brasil?
São indagações que
deveriam tirar o sono de nossos profissionais, mas eu temo – e rezaria, pudesse
rezar, para estar enganado –, que eles durmam o sono dos justos. Temo que eles
acreditem que “estão fazendo jornalismo” ao cumprir a pauta que recebem, com a
orientação que ela traz, vinda de seus editores.
Se erro, se ouvir
protestos diante dessa análise, se ouvir vozes que contrariem essa visão
fundada no pessimismo da inteligência, faço uma autocrítica tranquila, e com
muito gosto.
Se estiver certo, vou
torcer para que nossas entidades sindicais se movimentem, debatam, provoquem
nosso reportariado, se é possível fazer isso. Se estiverem se movimentando, que
insistam. Que se discuta a necessidade da cláusula de consciência. Porque sei
que, às vezes, as entidades sindicais falam, propõem, e a mídia faz aquele
costumeiro silêncio ensurdecedor.
A cláusula de consciência, ao menos, daria o direito de
recusa de uma pauta que contrariasse os princípios do profissional, reafirmaria
o princípio da liberdade numa profissão em que liberdade devia ser palavra
sagrada. Podia não bastar para mudar o modelo, e certamente não bastaria, mas
seria um passo, pequeno que fosse, na luta por uma nova hegemonia nas redações.
Evidente, muito evidente, que a luta é muito mais ampla, mas na guerra de
posições, à Gramsci, é sempre bom ir conquistando e consolidando trincheiras, à
medida que avançamos. Se avançamos.
Emiliano José é
professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela
Universidade Federal da Bahia, jornalista e escritor, integrante do Conselho de
Redação de Teoria e Debate
Referências
bibliográficas
ABRAMO, Cláudio. A
Regra do Jogo: o Jornalismo e a Ética do Marceneiro. Prefácio Mino Carta. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
ABRAMO, Perseu. Um
Trabalhador da Notícia. Prefácio de Ricardo Kotscho e Marco Aurélio Garcia. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.
GRAMSCI, Antonio.
Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1976.
_________________.
Obras Escolhidas, volumes I e II. Lisboa: Editorial Estampa, 1974.
JOSÉ, Emiliano.
Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Salvador: Edufba, Assembleia
Legislativa da Bahia, 2010.
KUCINSKI, Bernardo. A
Síndrome da Antena Parabólica: Ética no Jornalismo Brasileiro. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.
KUSHNIR, Beatriz. Cães
de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2004. (Valho-me do livro, neste caso, pela referência à
fala de Daniel Aarão Reis Filho, que está no livro dele, citado por ela,
Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade, p. 10. A citação, em Kushnir, está à
p. 154).
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