Grande ironia da
história: o capitalismo brasileiro emula regime stalinista e caminha para
“imprensa única”
Quando o tema é
comunicação, o governo Dilma, tão progressista em algumas áreas, converte-se no
Dr.Jekyll de si mesmo. Se a metáfora de “O Médico e o Monstro” pode ser
aplicada a qualquer indivíduo ou instituição, em virtude da inevitável
dialética do ser, o problema das políticas públicas de comunicação social é que
elas agem sobre o que há de mais nobre e mais duradouro numa sociedade: o
espírito, a cultura, os valores, a moral.
A noção de que o Estado
não deve participar do complexo processo político da comunicação embute a
grande farsa liberal do Ocidente, que protege (hoje, nem tanto) as liberdades
domésticas mas patrocina guerras e golpes em outros países para impor sua
própria agenda de comunicação.
É
o caso do Brasil.
O golpe de Estado de
1964 foi preparado com recursos financeiros, apoio logístico, suporte político
e diplomático, do governo americano. Os estudos sobre seus preparativos junto à
opinião pública, como o que fez René Armand Dreifuss (em “1964, A Conquista do
Estado”), incluem sempre, além disso, as agências de publicidade
norte-americanas.
Terminado o golpe, as
empresas de mídia, pequenas, médias e sobretudo, as grandes, que o apoiaram,
estavam mais fortes, mais ricas, mais influentes, e com grande público. As que
se insurgiram contra a ditadura, destruídas. A mesma coisa vale para o
concentrado setor de publicidade. As agências que protegiam os interesses
norte-americanos expandiram-se durante a ditadura. As que não o defenderam,
deixaram de existir.
Daí vem a democracia,
trazendo com ela uma profunda crise econômica. Os anos 80 foram chamados, no
Brasil, de década perdida. Os anos 90, por sua vez, começam num pesadelo e
terminam com uma ilusão. A “estabilidade” do Plano Real vem junto com explosão
dos juros, da dívida pública, da carga tributária, do desemprego; redução
brutal das exportações; e desmantelamento da indústria. Um ambiente não muito
propício, como se vê, para o florescimento de novos empreendimentos de mídia.
Em virtude desse
histórico, é uma afronta ao bom senso que a Secretaria de Comunicação da
Presidência da República (Secom) pretenda instaurar critérios puramente
“técnicos” na distribuição dos recursos federais. Ou seja, todos aqueles
gigantes que se deram bem na ditadura, silenciaram sobre a tortura e sambaram
sobre o cadáver da nossa democracia, ganham um troféu do governo.
É como se, terminada a
II Guerra, o governo alemão resolvesse distribuir suas verbas publicitárias
para o canal com maior público, ou seja, independente se fosse nazista ou não.
Não quero rechaçar os
critérios técnicos. Entendo perfeitamente que a Secom precise deles. Mas eles
precisam ser equilibrados pelo bom senso, pela compreensão das circunstâncias
históricas, e pelo princípio do pluralismo. É preciso entender qualquer órgão
de mídia como um agente político. O mito da imparcialidade deve ser enterrado
bem fundo, porque é a maior mentira do pós-modernismo brasileiro.
Não é justo que o
governo direcione mais da metade dos recursos publicitários para as
Organizações Globo. E não só isso. É uma questão de acúmulo. Se uma empresa
recebe R$ 500 milhões num ano, isso a ajuda a se fortalecer e se posicionar no
mercado, facilitando a captação de anúncios privados. Se a mesma empresa recebe
R$ 500 milhões durante um longo período de tempo, ela se torna uma potência,
com poder de engolir seus concorrentes menores. A própria Secom informa que a
Globo recebeu mais de R$ 6 bilhões em publicidade federal apenas nos últimos 10
anos.
Eu moro no Rio de
Janeiro, onde o Globo, além de quebrar seus concorrentes locais, também engoliu
todos os jornais de bairro. Ou seja, a segunda maior cidade do país vive o mais
absoluto monopólio midiático no segmento de jornalismo de opinião, o que
evidentemente nos causa um enorme dano cultural. Mesmo São Paulo vive uma
situação melhor, porque tem dois jornais. Os dois são conservadores, mas são
dois, concorrentes entre si, e um sempre pode divulgar uma atividade cultural
com receio de que o outro o faça antes. Aqui no Rio, nem isso.
As maldades na área de
comunicação, porém, vão além do cínico tecnicismo da Secom. Um amigo que
trabalha no Senado me liga para pedir auxílio numa quixotesca luta para salvar
a Voz do Brasil, o programa radiofônico público mais antigo do país. Senado e
Câmara aprovaram a flexibilização do seu horário, o que, na prática, o jogará
para as horas mais vazias da noite, esvaziando-o completamente. Mais uma vez, o
lobby dos grandes grupos de mídia venceu. O meu amigo informa, contudo, que há
uma chance: a equipe do senador Roberto Requião (sempre ele) escreveu um
Projeto de Lei “tombando” a Voz do Brasil, incluindo aí o seu horário. Essa lei
anularia a outra. O projeto foi parar nas mãos da senadora Ana Rita (PT-ES),
mas esta foi orientada, segundo meu amigo, pelo Ministério das Comunicações, a
bloquear o projeto como inconstitucional. A equipe do Requião insiste com ela
de que o projeto é perfeitamente constitucional, e a situação agora está nesse
impasse. Segundo minha fonte, a maioria dos deputados, sobretudo do baixo
clero, é a favor da Voz do Brasil, porque é o único meio pelo qual podem expor
seus projetos ao grande público nacional, mas têm medo de se manifestar em virtude
do lobby dos grandes grupos. Mas se o projeto – de tombamento da Voz do Brasil
– for a votação, ele tem chances de ser aprovado, e teremos salvo um bem
público.
Por fim, há ainda uma
outra “maldade” em curso: o Ministério das Comunicações tenta acabar com as
rádios AM. Como todas as rádios serão digitalizadas, Paulo Bernardo defende a
conversão de todas para FM, ao invés de criar também uma faixa digitalizada
para AM, como existe em tantos lugares do mundo. A medida, porém, significaria
o fim da maioria das pequenos rádios AM, em função da necessidade de
equipamentos mais caros. Será mais um golpe contra a pluralidade informativa no
país.
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