João Vicente Goulart
revela suspeitas envolvendo a morte do presidente deposto e de que agentes
secretos teriam se infiltrado em sua casa como empregados
Desde o enterro do ex-presidente
João Goulart, o Jango, no final de 1976, a família do presidente da República
deposto pelo golpe militar de 1964 levanta suspeitas sobre sua morte, já que o
caixão não pôde ser aberto “sob hipótese alguma” por ordem dos militares que
acompanharam toda a cerimônia, segundo relata João Vicente Goulart, filho de
Jango, em entrevista ao Terra. “A certidão de óbito não dizia nada com nada,
apenas ‘Muerte por enfermedad’ (morte por doença) e, o mais grave de tudo, que
não foi feita a autópsia dos restos mortais, nem na Argentina e, tampouco, em
nosso País”, afirma.
Recentemente, a
Comissão Nacional da Verdade (CNV) acatou o pedido da família de Jango de
exumar o corpo para investigar qual foi a verdadeira causa da morte. Para
conseguir indícios fortes de que seu pai foi assassinado, João Vicente chegou a
se disfarçar para conseguir arrancar a verdade do ex-agente do serviço secreto
uruguaio Mario Neira, preso no Rio Grande do Sul, na entrevista concedida para
um documentário produzido pela TV Senado, em 2006.
“(Ele) disse que a família não tinha motivos
de interesse pelo acontecido... Nesse momento eu disse a ele: ‘olha, Mario, eu
sou João Vicente, não sou repórter, e vim aqui para conhecer a verdade...’ Foi
nesse momento que ele abriu o verbo sobre sua atuação na operação que havia
culminado com a morte de meu pai”, diz, referindo-se a Operação Escorpião,
montada para matar Jango.
A exumação ainda não
tem data para acontecer, mas uma comissão com peritos brasileiros e
estrangeiros está sendo montada, para atender as condições feitas pela família,
para garantir a idoneidade do processo.
Família de Jango
acredita que ex-presidente foi envenenado.
Confira os principais
trechos da entrevista:
Terra
- Desde quando a família pleiteava a possibilidade da exumação do corpo de João
Goulart?
João Vicente Goulart -
As suspeitas se remontam aos primeiros dias após a morte de Jango. Em seu
enterro teve todo um aparato repressivo, soldados, seguranças à paisana, ordens
e contra ordens que vieram até a derrubar o coronel Solon, então chefe da
Polícia Federal em Uruguaiana, após autorizar a passagem do cortejo por terra
(a ordem era que só entraria por avião direto a São Borja com proteção militar
do aeroporto ao cemitério), a não autorização de abrir o caixão sob hipótese
nenhuma, certidão de óbito que não dizia nada com nada, apenas “Muerte por
enfermedad” e, o mais grave de tudo, que não foi feita a autópsia dos restos
mortais, nem na Argentina e, tampouco, em nosso País. Era um ex-presidente da
maior nação latino-americana, exilado, perseguido há 12 anos no exílio e
tentando voltar ao Brasil para forçar uma anistia e abertura.
A certidão de óbito não
dizia nada com nada, apenas ‘Muerte por enfermedad’ e, o mais grave de tudo,
que não foi feita a autópsia dos restos mortais, nem na Argentina e, tampouco,
em nosso País
Além do depoimento do
agente uruguaio, vocês tinham indícios de que a morte do presidente poderia ter
sido provocada pela repressão?
O depoimento de Mario
Neira só veio à tona em 2006. Fui a uma penitenciária de segurança máxima
(Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, no Rio Grande do Sul), pois
foi feito um convênio entre o Instituto Presidente João Goulart e a TV Senado,
para produzir o documentário Jango em 3 Atos. Eu fui disfarçado de jornalista
com a equipe para tomar o depoimento de Mario Neira. Foi quando em certo
momento ao dizer que sabia das circunstâncias da morte de Jango, pois havia
participado da operação (Escorpião) que o vitimou, disse que a família não
tinha interesse pelo acontecido... Nesse
momento eu disse a ele: “olha Mario, eu sou João Vicente, não sou repórter, e
vim aqui para conhecer a verdade...” Foi nesse momento que ele abriu o verbo
sobre sua atuação na operação que havia culminado com a morte de meu pai.
No
exílio, como estava a saúde de Jango? Exigia cuidados ou os problemas de saúde
estavam controlados?
Jango, no exílio, vivia
imerso nas suas saudades do Brasil. Dizia que o exílio era uma invenção do
demônio, pois matava a pessoa deixando-a viva a olhar dentro do desterro, à
distância, a Pátria amada deixada para trás, dos familiares e dos amigos...
Trouxe a ele também, junto as suas amarguras, as feridas no coração, um enfarte
produzido pela distância e pela saudade de seu povo. Mas ele se cuidava,
periodicamente ia à França fazer tratamento com seu cardiologista, professor
Fremont, em Lyon. Estava com a saúde em dia, dentro dos cuidados que um
cardiopata necessitava. Agora, permitam abrir aqui um parênteses sobre o que
alguns “opinicionistas” de plantão falam a esse respeito. Dizem eles: “Jango
era um cardiopata, fumava, bebia, pelo que, é claro, morreu de enfarte”. Só por
que era portador de uma enfermidade, não pode ter sido alvo de um assassinato?
Das 40 mil vítimas do terrorismo de Estado praticado pelas ditaduras latino-americanas
vocês acham que todos eram atletas de saúde impecável? Ninguém desse
contingente será que tinha uma doença pré-existente? Nosso grande poeta Neruda
tinha câncer na próstata quando foi conduzido sob escolta a uma clínica, após o
golpe, e eliminado em circunstâncias a serem investigadas, exumado
recentemente. O ex-presidente Frei Montalva, estava em um hospital para uma
cirurgia simples, de uma doença pré-existente, quando foi transferido de andar
no hospital, trocaram os médicos, proibiram visitas e, uma semana depois,
morreu de uma gravíssima infecção. Exumado e comprovado o seu envenenamento por
agentes estranhos. Hoje, a investigação conduz a pegadas brasileiras: o
composto teria sido produzido no Instituto Butantã. Ora, convenhamos, esse tipo
de afirmação de que pessoas com patologias pré-existentes não podem ser vítimas
de atentados é história para boi dormir, como dizemos no Rio Grande do Sul.
Jango, no exílio, vivia
imerso nas suas saudades do Brasil. Dizia que o exílio era uma invenção do
demônio, pois matava a pessoa deixando-a viva a olhar dentro do desterro, à
distância, a Pátria amada deixada para trás
No
exílio, seus pais haviam relatado desconfiança ou medo de estarem sendo
espionados pelos militares?
Sim, sem dúvidas sabiam
desse monitoramento. Em Montevidéu, onde fomos exilados, aconteceu o
laboratório da maior vergonha ocorrida no nosso diplomático Itamaraty. Lá,
através da criação do Ciex (Centro de Informações do Exterior), invenção
perversa de nada menos que Manoel Pio Correa, embaixador que atuava no Uruguai
monitorando os exilados brasileiros, a diplomacia brasileira foi transformada
em um centro de colaboração com a ditadura, que depois veio a fazer parte da
Operação Condor, que trocava pessoas para morrerem nos países de origem sem
extradição, sem Justiça, sem nada. Em nossa casa havia empregadas do SNI
(Serviço Nacional de Informações), agente “B” da ditadura brasileira, que
subtraía documentos de forma clandestina (hoje comprovado pelos documentos
desclassificados em poder do Instituto João Goulart) e que se subtraíam esses
papéis da gaveta do quarto de meu pai. Tranquilamente poderiam ter substituído
um comprimido do coração por um comprimido de cianeto de potássio, não
poderiam?
Hoje, a investigação
(sobre a morte do presidente chileno Eduardo Frei Montalva) conduz a pegadas
brasileiras: o composto teria sido produzido no Instituto Butantã
Quando
vocês tiveram acesso a informações que deixaram evidente a hipótese de
envenenamento? Existem documentos que indicariam que isso aconteceu?
As informações não
param de chegar... As evidências vêm sendo liberadas e dão veracidade às
suspeitas após o depoimento do agente uruguaio. Por que não houve autópsia, por
que não deixaram abrir o caixão, por que o agente “B” estava dentro do nosso
apartamento subtraindo documentos, por que Kissinger (Henry Kissinger,
diplomata americano), através de telegrama, enviado da África, dava instruções
precisas ao seu embaixador (Harry) Schlauderman de que o Departamento de Estado
Americano tinha conhecimento das operações de assassinatos seletivos envolvendo
o Brasil, Uruguai e Argentina, e que tinha ordenado a ele (embaixador) que não
se metesse nesses assuntos, deixando acontecer. São inúmeros os documentos que
fornecem indícios. É lamentável que vários deles ainda estejam tarjados de preto escondendo nomes ,
principalmente de agentes do Estado brasileiro.
Quem
teria sido a pessoa que ordenou a morte de Jango no exílio?
O relato do agente, é
claro. Houve uma reunião em Montevidéu, em princípios de agosto de 1976, na
Jefatura General de La Policía, no porão do edifício situado nas ruas San José
y Yí, onde estariam presentes o general (Luis Vicente) Queirolo, chefe da
inteligência das forças armadas uruguaias, Frederick Latrash, chefe da CIA no
Uruguai, Carlos Milles, médico patologista do Uruguai e colaborador do serviço
secreto uruguaio, que detinha o codinome Capitán Adonis, e o delegado Sergio
Paranhos Fleury, já conhecido no Uruguai por suas incursões em Montevidéu anos
antes, para monitorar os movimentos dos brasileiros que colaboravam com o MLN
Tupamaros nas eleições. Fleury, portanto foi quem teria levado a ordem para que
a operação de monitoramento exercida sobre Jango (chamada de La Gaviota) se
transformasse na eliminação física do ex-presidente, através da Operação
Escorpião.
Como
foi a vida da família após deixar o Brasil? Quais eram os planos dos filhos e
de Jango para quando voltassem?
No começo foi muito
tranquilo. O Uruguai, para onde rumamos no começo, tinha uma tradição
democrática enorme, não tinha tradição golpista há muito tempo. Começamos a
viver uma vida normal no âmbito familiar. Os uruguaios tinham orgulho de terem
recebido Jango, “El presidente democrático Del Brasil”. O que se supunha em
1964 é que, o golpe no Brasil era transitório, como em outras quarteladas
acontecidas na história republicana de nosso País. Mas as contrário do que se
supunha, foi um golpe planejado, executado milimetricamente com orientação do
Departamento de Estado Americano, que, pelo Brasil, começaria o planejamento
para derrubada da democracia em todos os países latino-americanos, e é
exatamente na década posterior que nenhum país da América do Sul tem governos
democráticos; todos são ditaduras impostas! É aí, então, que a coisa mudou de
figura para aqueles exilados que lutavam pelo retorno do Estado de Direito, da
liberdade, e pela democracia. Na verdade, o exílio é uma luta constante para o
retorno à Pátria, mas o retorno para aqueles lutadores não era somente
atravessar a fronteira para submeter-se ao regime que os havia deposto, era a
volta para a reconquista da liberdade e da justiça social, o não entreguismo
das instituições aos interesses internacionais. Por isso representavam perigo
para os ditadores. Não eram apenas homens, eram transportadores de ideais
libertários e democráticos.
Essa
investigação que está sendo feita pela Comissão Nacional da Verdade trás, ao
menos, algum tipo de conforto para a família por investigar o que realmente
possa ter acontecido?
Para nós, que, do
exílio, nos acostumamos a esperar, é um primeiro grande passo. Depois de seis
anos em que o Instituto Presidente João Goulart entrou com o pedido de abertura
de ação civil pública para que o Estado brasileiro investigasse a morte de seu
ex-presidente, é um primeiro grande passo, ou seja, o Estado concordou;
tardiamente ou não, não vem ao caso. Devemos fazer o dever de casa para que
outros não venham a fazer nossas obrigações. É uma obrigação da família, que
tem lutado, em uma desproporcionalidade gigantesca, no que tange os meios de
investigação. Como por exemplo, os pedidos de oitivas de agentes americanos,
como Michael Townley, que vive sob a proteção de testemunhas do governo
americano (apesar de ter detonado uma bomba nas avenidas de Washington,
produzindo o primeiro ato terrorista antes do 11 de Setembro, matando o
ex-chanceler chileno Letellier), Frederick Latrash e outros. Sabemos que só um
juiz pode fazer esse pedido com uma petição especial através do governo
brasileiro pelo Itamaraty, pois só ele teria essa prerrogativa. Estamos
esperando. Na verdade, não existe conforto enquanto existam dúvidas a respeito
da morte de nosso pai, por parte da família; a respeito da morte do presidente
constitucional derrubado pelo golpe, entendo ser uma questão de Estado, e aí a
vontade é política do governo, que determina a ato de fazer.
Por
que a família fez essa exigência da participação de peritos de fora na exumação
de Jango? Existe o medo de que alguém possa influenciar nos resultados, ou é
por uma questão de conhecimento técnico e tecnologia?
É uma preocupação de
mostrar à sociedade brasileira, que acompanha o caso, em outorgarmos nesse
procedimento a maior transparência possível. Já temos outros exemplos nada
confiáveis em nosso País, quando nos referimos a peritos individuais contratados
para um caso específico, Alagoas, São Paulo etc. Quando se trata de uma ação
supostamente executada pela Operação Condor, por uma ação em conjunto com a
“cooperativa do terror”, que havia se instalado na época, e que teria sido
executada pelos serviços secretos de trás das cortinas de três ditaduras, é
lógico que os peritos desses países, que também investigam o mesmo caso, sejam
convidados a participar dessa investigação. Até por que Jango morreu na
Argentina, e nós não queremos, amanhã ou depois, passar novamente por essa dor
ao receber outro pedido de exumação da Argentina por não ter participado. E
melhor ainda, termos três ou quatro laudos independentes dando mais
credibilidade e independência à investigação, nos trará mais certeza na credibilidade
e sucesso técnico na divulgação desses resultados.
Existem
preocupações da família sobre a saúde da dona Maria Teresa com a exumação?
Ela sofreu demais
durante todos estes anos, mas é uma lutadora incontestável. Depois de tanto
sofrimento, ela quer passar por isso mais uma vez, mostrando sua têmpera diante
do seu destino... estar mais uma vez ao lado de Jango e da história deste País.
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