Praticamente nenhuma
pessoa séria leva a revista Veja a sério. Sabe-se que é uma publicação
humorística. Faz um humor meio sem graça, apelativo, rasteiro, como é o humor
dominante na mídia brasileira atual. Mas há um traço de original nesse humor:
ele é ideológico. Nesta semana, porém, Veja caprichou no ridículo. O texto “Os
ossos do socialismo” é uma obra-prima de charlatanismo, de reacionarismo
delirante e de besteirol histórico. Segundo o repórter, que assina a matéria,
há uma relação direta entre canibalismo e comunismo. Em 1609, os primeiros
colonos ingleses instalados em Jamestown, na América, loucos de fome, comeram
os seus semelhantes.
Arqueólogos descobriram
os ossos de Jane, vítima do canibalismo dos seus parceiros de aventura no Novo
Mundo. A revista Veja não tem a menor dúvida: “Jane foi devorada por seus pares
como consequência do fracasso do modelo de produção coletiva implantado nos
primeiros anos da colonização dos Estados Unidos. A propriedade era comunitária,
e o fruto do trabalho era dividido igualmente entre todos. Era, portanto, uma
experiência que antecipava os princípios básicos do comunismo. Deu no que deu”.
Uau! A cadeia estabelecida é imperativa: o coletivismo levou à preguiça, que
levou à improdutividade, que levou à fome, que levou ao canibalismo. A saída
viria com a propriedade privada. É reportagem para prêmio Esso de estupidez.
Longe de mim defender o comunismo. O buraco é mais embaixo. Vejamos.
O autor tem a segurança
dos tolos encantados com o lugar que ocupam na escala social: “Se não fosse o
sistema fracassado, a situação dificilmente teria chegado a esse ponto”. Todos
os demais aspectos de adaptação e de conjuntura são desconsiderados. O
reducionismo ideológico surge como uma iluminação. A solução chega com um novo
administrador, que impõe à propriedade privada: “A decisão despertou os traços
hoje bem conhecidos do capitalismo americano: o empreendedorismo e a aptidão
para a competição”. Disso teria decorrido que, em 1775, os americanos “já eram
mais altos que os ingleses”. Tem gente batendo os dentes nos consultórios de
dentista, onde Veja é campeã de leitura, de tanto rir. É um riso nervoso.
Nem os primatas do
Pânico fariam melhor.
Para a pragmática
revista Veja, no coletivismo, entre trabalhar e comer seus semelhantes, as
pessoas escolhem a segunda opção. Um colono comeu a esposa grávida. Veja,
enfim, descobriu a origem da expressão “comunista comedor de criancinha”. Na
verdade, encontrou algo mais grave, o comunista comedor de feto. Sem contar que
Duda Teixeira chegou ao elo perdido, a origem sempre procurada do capitalismo,
o estalo: “Foi essa mudança, nascida do trauma de um inverno em que colonos
caíram na selvageria que permitiu aos Estados Unidos se tornar o maior gerador
de riqueza do planeta e o berço do capitalismo moderno”. O capitalismo nada
mais é que uma reação ao canibalismo comunista. Agora é científico.
Não fosse grosseiro, eu
diria: é a coisa mais idiota que li.
Juremir Machado
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