quinta-feira, 26 de abril de 2012

Entrevista - O veneno e o antídoto


Cao Hamburger exalta obra dos sertanistas que ajudaram a criar o Parque do Xingu e a salvar milhares de vidas, mas nunca negaram a ambiguidade de sua ação 

Por: Joana Moncau 

Nascido em São Paulo à beira do golpe militar, em 1962, Carlos Império Hamburger teve desde criança o incentivo de seus pais para as artes. Antes de chegar ao cinema, ainda na escola, tentou ser músico e até formou, com Nando Reis, a banda Os Camarões. 
Depois do Parque do Xingu começaram a existir as grandes reservas indígenas. Não teve na Segunda Guerra, no Holocausto, alguém como os Villas Bôas. Schindler salvou quantas vidas? Pouco mais de mil? Eles salvaram milhares
Mas não dava para a coisa, diria. A porta de entrada para o mundo do cinema estava na animação: seu curta Frankenstein Punk foi premiado no Festival de Gramado, em 1987. A fama veio com o programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, sucesso da década de 1990 na TV Cultura. A série rendeu-lhe o primeiro longa-metragem, homônimo, em 1999. 
Em 2006, Cao conquistou espaço também no universo adulto: criou e dirigiu a série Filhos do Carnaval, exibida no canal a cabo HBO, e lançou seu segundo longa, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006). Ambientado na ditadura, é um filme para adultos narrado sob a perspectiva de um garoto de 12 anos que acompanha a Copa do Mundo de 1970 e cujos pais estão fugindo da repressão. 
Além de indicado ao Urso de Ouro no Festival de Berlim, em 2007, foi candidato brasileiro a uma vaga no Oscar 2008. Seu terceiro longa, Xingu, narra a saga do irmãos Villas Bôas e tem lançamento nacional neste mês de abril. Com ele, Cao esteve pela segunda vez na Berlinale, o festival internacional de cinema de Berlim, integrando a seção Panorama. Em entrevista exclusiva à Revista do Brasil, o diretor fala sobre o país do século 21, a experiência de gravar um filme em meio às intempéries e o que aprendeu da nossa história com essa obra. 
Deixa também um convite irresistível para o público: “É um filme muito gostoso de ver. Quem gosta de filme de aventura vai gostar, quem gosta de filme que emociona vai gostar. Podem ir que não vai ter decepção, não é programa de índio”.
Durante um bom tempo, sua carreira esteve associada ao universo infantil. Como foi a transição para o público adulto? 
Não vejo muita diferença em trabalhar para o público infantil ou adulto. Os processos de criação e desenvolvimento são muito parecidos. No momento estou produzindo, e não dirigindo, uma série para crianças e adolescentes para o canal Futura e outra juvenil para a TV Cultura. 
A questão indígena é um tema bastante desvalorizado no Brasil. O que o levou a aceitar o desafio de abordá-la? 
Aceitei o desafio quando vi a chance de quebrar esse tabu e fazer as pessoas entenderem os povos indígenas por meio da história dos irmãos Villas Bôas. Eles são personagens com os quais é fácil se identificar, são muito humanos, e a gente fez questão de tratá-los como homens: com suas contradições, fraquezas e, nesse caso, com um heroísmo que nem é preciso ficar dourando a pílula deles.
Esse também é seu primeiro filme baseado em vidas reais. Como foi essa experiência? 
Foi superdifícil. Primeiro, pela responsabilidade, porque você está tratando de vidas que existiram. Depois porque, para o filme ficar legal, você tem de ir mexendo na realidade, na História, com agá maiúsculo. Fizemos uma pesquisa muito grande com a família dos Villas Bôas e as pessoas que trabalharam com eles. E com os índios – a gente queria também o ponto de vista deles. Quando percebi que é impossível mostrar em um filme 40 anos da vida de três pessoas, relaxei um pouco. O grande objetivo foi pegar a essência dos irmãos, do meu ponto de vista. Enfim, é uma adaptação livremente baseada na vida deles. 
E por que a opção de contar a história dos Villas Bôas como “saga”? 
Trouxemos um ponto de vista que eu considero mais uma fábula do que um filme épico, histórico. Porque através da história dos irmãos Villas Bôas a gente trata do contato da civilização branca com os indígenas. O mais importante atualmente talvez seja isto: percebemos que estávamos tratando de uma história de 50 anos atrás, mas muito atual e urgente. Esse assunto da agressividade, da onipotência e do poder destruidor da civilização branca é o que há de mais atual. 
O irmão que ficou mais conhecido para o público em geral foi Orlando Villas Bôas, mas você optou por destacar o Cláudio, tomando-o como narrador do filme. Por quê?
O Cláudio era um mistério. Na nossa pesquisa e na nossa composição, é o cara que está enfiado lá no mato, enquanto o Orlando fazia a retaguarda, a imprensa, a política toda. Quando descobrimos o Cláudio, foi realmente uma paixão, uma vontade de entender esse cara tão complexo. Foi irresistível desvendar aquele sujeito que era o menos conhecido, tão culto, aparentemente tão frágil, de óculos, pequeno, e ao mesmo tempo tão forte e corajoso, um pensador sagaz, um cara do mato (ele era o que melhor andava no mato), que levava mochilas de livros, enfim, um cara muito interessante. O Orlando também era um cara incrível, com o poder da comunicação e da articulação, não só com os brancos, mas com os índios também. 
E o Leonardo? 
O Leonardo morreu muito cedo, em 1961, ano em que foi inaugurado o Parque Indígena do Xingu. O que a gente sabe dele a gente pôs no filme, mas não é um cara de quem tenhamos muitos depoimentos. (A família teve ainda o caçula Álvaro Villas Bôas, 1926-1995, envolvido na questão indígena. Álvaro chegou a presidir a Funai por um curto período, em 1985.)
Por que vocês optaram por gravar a maior parte do filme fora do Parque Indígena do Xingu? 
A aproximação com os povos do Xingu começou três anos antes da filmagem, com a pesquisa para saber a versão deles da história. Nessas idas, fomos entendendo o funcionamento daquele lugar. Conhecendo muito bem como uma equipe de cinema se comporta – não por falta de educação, mas pela própria natureza da atividade –, a gente achou que seria muito invasivo uma equipe de 200 pessoas ficar dez semanas lá dentro. Optamos por filmar a maior parte em um lugar muito parecido, que fica no estado do Tocantins. As cenas nas aldeias, nos interiores das ocas e algumas em volta das aldeias, além das aéreas, foram feitas no Xingu. Com isso, conseguimos ter o Xingu no filme sem invadir e atrapalhar a vida dos xinguanos. 
Filmar na mata e no cerrado os aproximou da história dos Villas Bôas e do mundo indígena? 
Acho que sim, mas ainda somos muito ignorantes, a gente estaria no primeiro dia de aula do pré-primário dessa visão de mundo. Antes de fazer minha primeira viagem ao Xingu, visitei dona Marina Villas Bôas para “pedir” a bênção dela. Estávamos conversando e comentando mais ou menos como tínhamos armado a viagem, e ela disse: “Fiquem tranquilos, no Xingu nada é por acaso”. Essa frase nos acompanhou por toda a pesquisa, no roteiro e durante a viagem. É realmente um novo jeito de encarar a filmagem: se você tentar controlar, fica estressado e acha que o mundo está contra você, fica dando murro em ponta de faca. (Marina foi para o parque trabalhar como enfermeira por uma semana. Casou-se com Orlando em 1969 e por lá ficou até 1975.)
Como foi essa experiência de não poder controlar o ambiente de filmagem?
Precisa ter muito jogo de cintura durante a filmagem. Tivemos muitos contratempos com os carros, os equipamentos, as locações. Várias vezes chegamos para filmar em um lugar que tínhamos escolhido e tudo estava mudado, ou queimado, ou a água tinha subido, e tínhamos de procurar outro lugar. Se você não estiver com o espírito aberto, pode se dar mal. Fomos nos adaptando e sendo levados. O roteiro teve também algumas mudanças e adaptações durante as filmagens, o que costuma ser muito perigoso, porque, se você não estiver muito atento, pode se perder. Mas a gente conseguiu chegar até o final sem se perder no caminho (risos). 
E a relação com os atores indígenas, como foi vê-los interpretar histórias tão próximas às que tinham vivido?
Eles compraram a ideia de fazer o filme quando confiaram que o ponto de vista deles estaria lá. No momento em que eles acreditaram nisso, a gente sentiu sua determinação em fazer o melhor possível. Muitas vezes, durante todo o processo de pesquisa, e até nas filmagens, adaptamos cenas, porque uma pessoa lembrava de uma história nova, ou um detalhe que o pai contou sobre determinado episódio. Eles têm um poder de concentração grande e entenderam muito bem o jogo de encenação da câmera. Acho que a força deles veio da ideia de que estavam contando uma história que queriam contar.
Em um trecho do filme, Cláudio Villas Bôas diz que eles eram “o veneno e o antídoto” e afirma não saber o que seria pior. Como você lidou com essa ambiguidade?
Essa contradição foi uma das coisas que mais nos encantaram como cineastas e roteiristas: essa ambiguidade, para a dramaturgia, é muito boa. Os Villas Bôas passaram a vida inteira como veneno e antídoto. Nas entrevistas que dão ao final da vida, seguem dizendo que toda a vida deles foi para retardar um processo inevitável, mas, ao mesmo tempo em que chegavam, estavam trazendo o mal que tinham de combater. Acabaram se colocando em um lugar muito difícil, sempre na fronteira de uma guerra. No fim das contas, estavam satisfeitos com a obra que construíram, mas é muito angustiante porque não tem muita saída, é uma luta meio inglória. 
Como você avalia essa contradição 50 anos depois da formação do parque?
Pode haver críticas atualmente, mas, sem dúvida, foi uma obra que salvou milhares de vidas e mudou o paradigma da política indigenista do Brasil. Antes deles, antes do Parque Indígena do Xingu, a política encabeçada por Rondon (com toda a boa intenção) era fazer reservas pequenas e transformar o índio em mão de obra. Você imaginar e fazer um parque daquele tamanho, naquela época que não tinha essa ideia, é muito visionário. Depois do Parque do Xingu é que começaram a existir as grandes reservas indígenas como as que existem atualmente. Nesse sentido, foi uma obra definidora, que salvou milhares de vidas. Acho que não teve na Segunda Guerra, no Holocausto, alguém como os Villas Bôas. Schindler (Oskar, empresário alemão) salvou quantas vidas? Pouco mais de mil? Eles salvaram milhares. 
E a relação com a cultura indígena? 
O que mais me chamou a atenção é como a gente menospreza e desperdiça a cultura indígena. A cultura dos povos do Brasil é um tesouro que a gente simplesmente joga fora, não presta atenção, não quer nem saber. Somos totalmente analfabetos, selvagens, ignorantes e cegos em relação à cultura deles. O grande desafio do Brasil de hoje é transformar essa sabedoria, essa cultura e filosofia indígenas em alguma coisa que o branco consiga entender e seja útil para a gente. Isso seria o pulo do gato, o Brasil entraria no século 21 com uma vantagem e um tesouro para dividir com o mundo. É quase como se pudéssemos ter a fórmula para salvar o mundo. 
No entanto, chegamos ao século 21 com um sem-número de situações de preconceito e agressão contra os povos indígenas... 
O problema é que o Brasil de hoje é um país que pensa no progresso com a mentalidade do século 19: criar indústria, produção, ter operários, camponeses, exportação. Os Villas Bôas são sujeitos do século 20 com a cabeça no século 21. Nós estamos no século 21 com a cabeça no 19, então realmente é desanimador. Por outro lado, tem muita gente pensando e há uma urgência: tem de acontecer alguma coisa, porque o negócio está sério. 
 E qual é seu próximo projeto? 
É o filme “Isolados”, uma ficção em que os índios que ainda vivem isolados são um elemento, mas não é sobre eles. Eu queria tentar entender, primeiro, e tentar fazer com que o público entendesse um pouco essa visão de mundo dos índios. 
 Foi Xingu que o sensibilizou para a temática indígena?
Eu me sensibilizei a partir do Xingu, totalmente. Será meu segundo filme na selva, quem sabe seja suficiente para eu aprender alguma coisa. 
 Seus filmes têm tido destaque em festivais e premiações mundo afora. Como você percebe que o cinema nacional está sendo visto fora do país? 
O cinema brasileiro é respeitado fora e desperta grande interesse no público e no mercado. À medida que vamos equilibrando novamente a produção nacional, o interesse só aumenta. 

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