Cao Hamburger exalta obra dos sertanistas que
ajudaram a criar o Parque do Xingu e a salvar milhares de vidas, mas nunca
negaram a ambiguidade de sua ação
Por: Joana Moncau
Nascido em São Paulo à beira do golpe militar, em
1962, Carlos Império Hamburger teve desde criança o incentivo de seus pais para
as artes. Antes de chegar ao cinema, ainda na escola, tentou ser músico e até
formou, com Nando Reis, a banda Os Camarões.
Depois do
Parque do Xingu começaram a existir as grandes reservas indígenas. Não teve na
Segunda Guerra, no Holocausto, alguém como os Villas Bôas. Schindler salvou
quantas vidas? Pouco mais de mil? Eles salvaram milhares
Mas não dava para a coisa, diria. A porta de
entrada para o mundo do cinema estava na animação: seu curta Frankenstein Punk
foi premiado no Festival de Gramado, em 1987. A fama veio com o programa
infantil Castelo Rá-Tim-Bum, sucesso da década de 1990 na TV Cultura. A série
rendeu-lhe o primeiro longa-metragem, homônimo, em 1999.
Em 2006, Cao conquistou espaço também no universo
adulto: criou e dirigiu a série Filhos do Carnaval, exibida no canal a cabo
HBO, e lançou seu segundo longa, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias
(2006). Ambientado na ditadura, é um filme para adultos narrado sob a
perspectiva de um garoto de 12 anos que acompanha a Copa do Mundo de 1970 e
cujos pais estão fugindo da repressão.
Além de indicado ao Urso de Ouro no Festival de
Berlim, em 2007, foi candidato brasileiro a uma vaga no Oscar 2008. Seu
terceiro longa, Xingu, narra a saga do irmãos Villas Bôas e tem lançamento
nacional neste mês de abril. Com ele, Cao esteve pela segunda vez na Berlinale,
o festival internacional de cinema de Berlim, integrando a seção Panorama. Em
entrevista exclusiva à Revista do Brasil, o diretor fala sobre o país do século
21, a experiência de gravar um filme em meio às intempéries e o que aprendeu da
nossa história com essa obra.
Deixa também um convite irresistível para o
público: “É um filme muito gostoso de ver. Quem gosta de filme de aventura vai
gostar, quem gosta de filme que emociona vai gostar. Podem ir que não vai ter
decepção, não é programa de índio”.
Durante um bom tempo, sua carreira esteve associada
ao universo infantil. Como foi a transição para o público adulto?
Não vejo muita diferença em trabalhar para o
público infantil ou adulto. Os processos de criação e desenvolvimento são muito
parecidos. No momento estou produzindo, e não dirigindo, uma série para
crianças e adolescentes para o canal Futura e outra juvenil para a TV
Cultura.
A questão indígena é um tema bastante desvalorizado
no Brasil. O que o levou a aceitar o desafio de abordá-la?
Aceitei o desafio quando vi a chance de quebrar
esse tabu e fazer as pessoas entenderem os povos indígenas por meio da história
dos irmãos Villas Bôas. Eles são personagens com os quais é fácil se
identificar, são muito humanos, e a gente fez questão de tratá-los como homens:
com suas contradições, fraquezas e, nesse caso, com um heroísmo que nem é
preciso ficar dourando a pílula deles.
Esse também é seu primeiro filme baseado em vidas
reais. Como foi essa experiência?
Foi superdifícil. Primeiro, pela responsabilidade,
porque você está tratando de vidas que existiram. Depois porque, para o filme
ficar legal, você tem de ir mexendo na realidade, na História, com agá
maiúsculo. Fizemos uma pesquisa muito grande com a família dos Villas Bôas e as
pessoas que trabalharam com eles. E com os índios – a gente queria também o
ponto de vista deles. Quando percebi que é impossível mostrar em um filme 40
anos da vida de três pessoas, relaxei um pouco. O grande objetivo foi pegar a
essência dos irmãos, do meu ponto de vista. Enfim, é uma adaptação livremente
baseada na vida deles.
E por que a opção de contar a história dos Villas
Bôas como “saga”?
Trouxemos um ponto de vista que eu considero mais
uma fábula do que um filme épico, histórico. Porque através da história dos
irmãos Villas Bôas a gente trata do contato da civilização branca com os
indígenas. O mais importante atualmente talvez seja isto: percebemos que
estávamos tratando de uma história de 50 anos atrás, mas muito atual e urgente.
Esse assunto da agressividade, da onipotência e do poder destruidor da
civilização branca é o que há de mais atual.
O irmão que ficou mais conhecido para o público em
geral foi Orlando Villas Bôas, mas você optou por destacar o Cláudio, tomando-o
como narrador do filme. Por quê?
O Cláudio era um mistério. Na nossa pesquisa e na
nossa composição, é o cara que está enfiado lá no mato, enquanto o Orlando
fazia a retaguarda, a imprensa, a política toda. Quando descobrimos o Cláudio,
foi realmente uma paixão, uma vontade de entender esse cara tão complexo. Foi
irresistível desvendar aquele sujeito que era o menos conhecido, tão culto,
aparentemente tão frágil, de óculos, pequeno, e ao mesmo tempo tão forte e
corajoso, um pensador sagaz, um cara do mato (ele era o que melhor andava no
mato), que levava mochilas de livros, enfim, um cara muito interessante. O
Orlando também era um cara incrível, com o poder da comunicação e da
articulação, não só com os brancos, mas com os índios também.
E o Leonardo?
O Leonardo morreu muito cedo, em 1961, ano em que
foi inaugurado o Parque Indígena do Xingu. O que a gente sabe dele a gente pôs
no filme, mas não é um cara de quem tenhamos muitos depoimentos. (A família
teve ainda o caçula Álvaro Villas Bôas, 1926-1995, envolvido na questão
indígena. Álvaro chegou a presidir a Funai por um curto período, em 1985.)
Por que vocês optaram por gravar a maior parte do
filme fora do Parque Indígena do Xingu?
A aproximação com os povos do Xingu começou três
anos antes da filmagem, com a pesquisa para saber a versão deles da história.
Nessas idas, fomos entendendo o funcionamento daquele lugar. Conhecendo muito
bem como uma equipe de cinema se comporta – não por falta de educação, mas pela
própria natureza da atividade –, a gente achou que seria muito invasivo uma
equipe de 200 pessoas ficar dez semanas lá dentro. Optamos por filmar a maior
parte em um lugar muito parecido, que fica no estado do Tocantins. As cenas nas
aldeias, nos interiores das ocas e algumas em volta das aldeias, além das
aéreas, foram feitas no Xingu. Com isso, conseguimos ter o Xingu no filme sem
invadir e atrapalhar a vida dos xinguanos.
Filmar na mata e no cerrado os aproximou da
história dos Villas Bôas e do mundo indígena?
Acho que sim, mas ainda somos muito ignorantes, a
gente estaria no primeiro dia de aula do pré-primário dessa visão de mundo.
Antes de fazer minha primeira viagem ao Xingu, visitei dona Marina Villas Bôas
para “pedir” a bênção dela. Estávamos conversando e comentando mais ou menos
como tínhamos armado a viagem, e ela disse: “Fiquem tranquilos, no Xingu nada é
por acaso”. Essa frase nos acompanhou por toda a pesquisa, no roteiro e durante
a viagem. É realmente um novo jeito de encarar a filmagem: se você tentar
controlar, fica estressado e acha que o mundo está contra você, fica dando
murro em ponta de faca. (Marina foi para o parque trabalhar como enfermeira por
uma semana. Casou-se com Orlando em 1969 e por lá ficou até 1975.)
Como foi essa experiência de não poder controlar o
ambiente de filmagem?
Precisa ter muito jogo de cintura durante a
filmagem. Tivemos muitos contratempos com os carros, os equipamentos, as
locações. Várias vezes chegamos para filmar em um lugar que tínhamos escolhido
e tudo estava mudado, ou queimado, ou a água tinha subido, e tínhamos de
procurar outro lugar. Se você não estiver com o espírito aberto, pode se dar
mal. Fomos nos adaptando e sendo levados. O roteiro teve também algumas
mudanças e adaptações durante as filmagens, o que costuma ser muito perigoso,
porque, se você não estiver muito atento, pode se perder. Mas a gente conseguiu
chegar até o final sem se perder no caminho (risos).
E a relação com os atores indígenas, como foi
vê-los interpretar histórias tão próximas às que tinham vivido?
Eles compraram a ideia de fazer o filme quando
confiaram que o ponto de vista deles estaria lá. No momento em que eles
acreditaram nisso, a gente sentiu sua determinação em fazer o melhor possível.
Muitas vezes, durante todo o processo de pesquisa, e até nas filmagens,
adaptamos cenas, porque uma pessoa lembrava de uma história nova, ou um detalhe
que o pai contou sobre determinado episódio. Eles têm um poder de concentração
grande e entenderam muito bem o jogo de encenação da câmera. Acho que a força
deles veio da ideia de que estavam contando uma história que queriam contar.
Em um trecho do filme, Cláudio Villas Bôas diz que
eles eram “o veneno e o antídoto” e afirma não saber o que seria pior. Como
você lidou com essa ambiguidade?
Essa contradição foi uma das coisas que mais nos
encantaram como cineastas e roteiristas: essa ambiguidade, para a dramaturgia,
é muito boa. Os Villas Bôas passaram a vida inteira como veneno e antídoto. Nas
entrevistas que dão ao final da vida, seguem dizendo que toda a vida deles foi
para retardar um processo inevitável, mas, ao mesmo tempo em que chegavam,
estavam trazendo o mal que tinham de combater. Acabaram se colocando em um
lugar muito difícil, sempre na fronteira de uma guerra. No fim das contas,
estavam satisfeitos com a obra que construíram, mas é muito angustiante porque
não tem muita saída, é uma luta meio inglória.
Como você avalia essa contradição 50 anos depois da
formação do parque?
Pode haver críticas atualmente, mas, sem dúvida,
foi uma obra que salvou milhares de vidas e mudou o paradigma da política
indigenista do Brasil. Antes deles, antes do Parque Indígena do Xingu, a
política encabeçada por Rondon (com toda a boa intenção) era fazer reservas
pequenas e transformar o índio em mão de obra. Você imaginar e fazer um parque
daquele tamanho, naquela época que não tinha essa ideia, é muito visionário.
Depois do Parque do Xingu é que começaram a existir as grandes reservas
indígenas como as que existem atualmente. Nesse sentido, foi uma obra
definidora, que salvou milhares de vidas. Acho que não teve na Segunda Guerra,
no Holocausto, alguém como os Villas Bôas. Schindler (Oskar, empresário alemão)
salvou quantas vidas? Pouco mais de mil? Eles salvaram milhares.
E a relação com a cultura indígena?
O que mais me chamou a atenção é como a gente
menospreza e desperdiça a cultura indígena. A cultura dos povos do Brasil é um
tesouro que a gente simplesmente joga fora, não presta atenção, não quer nem
saber. Somos totalmente analfabetos, selvagens, ignorantes e cegos em relação à
cultura deles. O grande desafio do Brasil de hoje é transformar essa sabedoria,
essa cultura e filosofia indígenas em alguma coisa que o branco consiga
entender e seja útil para a gente. Isso seria o pulo do gato, o Brasil entraria
no século 21 com uma vantagem e um tesouro para dividir com o mundo. É quase
como se pudéssemos ter a fórmula para salvar o mundo.
No entanto, chegamos ao século 21 com um sem-número
de situações de preconceito e agressão contra os povos indígenas...
O problema é que o Brasil de hoje é um país que
pensa no progresso com a mentalidade do século 19: criar indústria, produção,
ter operários, camponeses, exportação. Os Villas Bôas são sujeitos do século 20
com a cabeça no século 21. Nós estamos no século 21 com a cabeça no 19, então
realmente é desanimador. Por outro lado, tem muita gente pensando e há uma
urgência: tem de acontecer alguma coisa, porque o negócio está sério.
E qual é seu próximo projeto?
É o filme “Isolados”, uma ficção em que os índios
que ainda vivem isolados são um elemento, mas não é sobre eles. Eu queria
tentar entender, primeiro, e tentar fazer com que o público entendesse um pouco
essa visão de mundo dos índios.
Foi Xingu que o sensibilizou para a
temática indígena?
Eu me sensibilizei a partir do Xingu, totalmente.
Será meu segundo filme na selva, quem sabe seja suficiente para eu aprender
alguma coisa.
Seus filmes têm tido destaque em festivais
e premiações mundo afora. Como você percebe que o cinema nacional está sendo
visto fora do país?
O cinema brasileiro é respeitado fora e desperta
grande interesse no público e no mercado. À medida que vamos equilibrando
novamente a produção nacional, o interesse só aumenta.
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