quinta-feira, 26 de abril de 2012

Não mata ninguém


Uma minúscula tributação sobre as grandes fortunas em nada incomodaria o sono dos mais ricos e poderia ser um grande reforço para a saúde pública e o combate à miséria

Por: Maurício Thuswohl

Bandeira histórica dos partidos de esquerda no Brasil, a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) está prevista na Constituição Federal de 1988, mas, subordinado à aprovação de uma lei complementar para entrar em vigor, até hoje não se tornou realidade. O debate sobre a taxação das grandes fortunas no país, no entanto, voltou à tona no segundo semestre de 2011, com a mobilização do Congresso Nacional em torno da regulamentação da Emenda 29, que fixou os percentuais mínimos que União, estados e municípios devem investir no setor de saúde. Defensores e críticos dessa modalidade de tributação, praticada em outros países, voltaram a tornar públicos argumentos de uma discussão que deve ganhar corpo.
Em 1989, o Senado aprovou um projeto de lei complementar (PLC), de autoria do então senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), que determinava a imediata entrada em vigor do IGF, mas continha imperfeições aos olhos da esquerda. Por exemplo, permitir que os valores pagos fossem deduzidos do imposto de renda. Na Câmara, o projeto acabou substituído por outro, elaborado por deputados do PSOL, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em junho de 2010 e pronto para ir a voto em plenário. No entanto, dorme em alguma gaveta da Mesa Diretora à espera de uma decisão política que destrave a discussão.
Paralelamente, no âmbito do debate sobre a Emenda 29, a ideia de tributar grandes fortunas como forma de garantir recursos à saúde se materializou em 2011 em outro PLC, nº 48, do deputado Dr. Aluizio (PV-RJ), que cria a Contribuição Social das Grandes Fortunas (CSGF). Relatora do projeto na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou emenda para que toda a arrecadação proveniente da CSGF seja direcionada exclusivamente a ações e serviços relacionados à saúde e os valores recolhidos encaminhados ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) para financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo a deputada, a CSGF atingiria cerca de 56 mil contribuintes com patrimônio superior a R$ 4 milhões.
O relatório de Jandira prevê nove alíquotas para a CSGF, a serem pagas anualmente: 0,4% (entre R$ 4 milhões e R$ 7 milhões); 0,5% (acima de R$ 7 milhões a R$ 12 milhões); 0,6% (de R$ 12 milhões a R$ 20 milhões); 0,8% (de R$ 20 milhões a R$ 30 milhões); 1% (de R$ 30 milhões a R$ 50 milhões); 1,2% (de R$ 50 milhões a R$ 75 milhões); 1,5% (de R$ 75 milhões a R$ 120 milhões); 1,8% (de R$ 120 milhões a R$ 150 milhões); e 2,1% para aqueles com patrimônio acima de R$ 150 milhões.
A deputada ressalta que as alíquotas podem produzir um efeito considerável sobre a arrecadação e de baixíssimo impacto para os contribuintes atingidos face à evolução patrimonial: “A Receita Federal informa que ao longo de 2009 – ano de crise – o patrimônio das pessoas que superava a casa dos R$ 100 milhões elevou-se de R$ 418 bilhões para R$ 542 bilhões – 30% de crescimento em um único ano. Nesse contexto, uma tributação adicional de 2% representa muito pouco para esse diminuto segmento social, mas representará um significativo aporte de recursos para a saúde pública, que atende 190 milhões de brasileiros”, diz Jandira.
Se for aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família, o projeto da CSGF ainda terá de passar por outras duas comissões antes de ir a votação em plenário, em um trâmite que provavelmente se estenderá pelo primeiro semestre de 2012. O objetivo dos parlamentares defensores da proposta é evitar que se repita a situação do outro PLC, aquele a hibernar na gaveta da Mesa Diretora. 

Cinco mil famílias

Elaborado pelos deputados do PSOL Chico Alencar (RJ), Ivan Valente (SP) e Luciana Genro (RS, atualmente sem mandato), o projeto do IGF busca regulamentar o inciso VII do artigo 153 da Constituição Federal e determina que o imposto incida sobre todo patrimônio superior a R$ 2 milhões. Para os contribuintes com patrimônio entre R$ 2 milhões e R$ 5 milhões, a taxação prevista é de 1%, progredindo para 2% (entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões), 3% (de R$ 10 milhões e R$ 20 milhões), 4% (de R$ 20 milhões e R$ 50 milhões) e 5% para fortunas acima de R$ 50 milhões.
Na elaboração dos projetos da CSGF e do IGF, os parlamentares utilizaram como base para seus cálculos os dados da Receita Federal de 2008. Segundo o órgão, o universo das grandes fortunas no Brasil estaria assim distribuído: são 26.206 contribuintes com patrimônio entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões; 10.168 (entre R$ 10 milhões e R$ 20 milhões); 5.047 (entre R$ 20 milhões e R$ 50 milhões); 1.327 (entre R$ 50 milhões e R$ 100 milhões) e 997 com patrimônio superior a R$ 100 milhões.
Um documento frequentemente usado como base para as discussões sobre a taxação de grandes fortunas no país é o estudo Atlas da Exclusão Social: os Ricos no Brasil, organizado por Marcio Pochmann, André Campos, Alexandre Barbosa, Ricardo Amorim e Ronnie Aldrin, de 2005. Segundo os pesquisadores, que analisaram o período de 1980 a 2000, apenas 5 mil famílias brasileiras possuem um estoque de riqueza equivalente a dois quintos de todo o fluxo de renda produzido pelo país ao longo de um ano. Essas famílias, de acordo com o Atlas, detêm um patrimônio equivalente a 42% do PIB brasileiro e dispõem cada uma, em média, de R$ 138 milhões. 

Combate à pobreza

Professor de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Bruno Macedo Curi recorre ao que classifica como “raiz ideológica da tributação das grandes fortunas” para lembrar que entre os objetivos da República explicitados na Constituição estão a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais: “O combate à pobreza, portanto, é algo caríssimo ao constituinte, a um ponto tal que se buscou um instrumento tributário próprio para tal fim. Por isso, toda a receita decorrente da arrecadação do IGF está previamente vinculada, também por norma constitucional, à constituição do Fundo de Combate à Pobreza”.
Em relação às iniciativas em trâmite na Câmara dos Deputados, Curi diz que são dois tributos sobre o mesmo fato gerador: “A Constituição não proíbe a identificação de fatos geradores entre imposto e contribuição, o que tecnicamente resolveria o problema. Mas, se já há resistência política por parte do Congresso Nacional para a instituição de um gravame sobre as grandes fortunas, problema maior ainda teremos ao se tratar de dois gravames distintos.
O especialista afirma que o ideal seria que o IGF prevalecesse sobre a CSGF: “Pela importância dada ao combate à pobreza, a prioridade é a instituição do imposto sobre grandes fortunas, em vez da contribuição. Até porque há correntes que entendem que a Previdência não existe para ser superavitária, sendo mesmo um ônus estatal. Já o combate à pobreza é unânime como um dever estatal e estabelecido pela Carta Magna como um objetivo a ser perseguido pela República”.
Segundo Curi, não representaria uma dupla tributação sobre o imposto de renda. “Ele não tributa a renda, mas sim o capital. Não há, portanto, duas incidências sobre o mesmo bem. São conceitos próximos, mas distintos: enquanto renda é a disponibilidade de acréscimo de patrimônio (tributável pelo IR), a grande fortuna é o patrimônio em si. Desse modo, se uma pessoa detentora de grandes fortunas não tiver acréscimo de patrimônio ao longo de um ano-calendário, não pagará imposto de renda, mas pagará o IGF. O tributo, portanto, atua diretamente sobre o patrimônio daquelas pouquíssimas pessoas físicas que, por concentrarem grande parte da renda nacional, dificultam a redução das desigualdades. Por isso é tão assustador”, diz.
E ser assustador para os detentores de grandes fortunas, segundo ele, revela o calcanhar de aquiles do IGF: a possibilidade de provocar fuga patrimonial do país. “Esse é um ponto crucial. O imposto não possui autorização constitucional para incidir sobre o patrimônio localizado fora do país, ao contrário do imposto de renda, que tem previsão constitucional para isso. Assim, é preciso haver uma emenda constitucional destinada a evitar a previsível evasão de divisas. Até porque, quanto maior o patrimônio do cidadão, tanto maior será sua mobilidade”, diz o professor, para quem uma alternativa possível, mas não ideal, seria a União aumentar o IOF sobre certas remessas de dinheiro para o exterior. “Mas isso, infelizmente, não é à prova de fraudes e demandaria maior esforço de fiscalização.”

Experiências internacionais

A prática de tributar grandes fortunas já existe ou existiu em outras partes do mundo. As experiências mais marcantes são as de Alemanha e França, países que, coincidentemente, estão na linha de frente da tentativa europeia de salvar sua moeda única. Centralizadas pelo governo federal a partir de 1922, as tributações na Alemanha tinham como base as declarações de patrimônio global dos contribuintes, válidas por três anos, com alíquotas entre 0,7% e 1%: “Na Alemanha, o tributo sobre o patrimônio atinge contribuintes que dispõem não apenas de bastante dinheiro, mas também de poder econômico e político. Sua compreensão original era de um complemento do imposto de renda, incluindo posteriormente as pessoas jurídicas”, afirma o advogado e pesquisador Ueren Domingues de Souza no estudo Imposto sobre Grandes Fortunas.

Como seria a CSGF

Apesar de suas virtudes, esse tipo de imposto foi considerado “confiscatório” na Alemanha e declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em 1995. De lá para cá, o órgão aguarda o processo de regulamentação de novas regras, por parte do governo, para que volte a ser cobrado. Na França, o sistema ainda em vigor, conhecido como Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna, tem alíquotas progressivas de 0,5% a 1,5% e incide sobre o patrimônio líquido de pessoas físicas, residentes ou não no país. Nesse modelo, que existe em sua forma atual desde que foi recriado pelo então presidente François Mitterrand em 1988, o próprio contribuinte declara seus bens para que o imposto seja cobrado.
(incide apenas sobre bens considerados “luxuosos”), está sujeito a um teto de 77% da renda tributável e tem uma extensa lista de isenções. Outros países europeus que adotam algum tipo de tributação sobre fortunas são Áustria, Suécia, Finlândia, Islândia, Luxemburgo, Noruega e Suíça. Países como Holanda (2001) e Dinamarca (1996) o aboliram em um passado recente e, há mais tempo, Itália (1947) e Irlanda (1978) o deixaram de lado.
Nos países anglo-saxões, de tendência mais liberal, a taxação sobre grandes fortunas nunca pegou. Na Inglaterra, as discussões sobre a criação se estenderam no Parlamento de 1960 a 1974, quando foi formada uma comissão especial para decidir sobre o tema: “A comissão constatou que a instituição de um imposto sobre grandes fortunas viria a substituir imposto sobre patrimônio já existente, o que impediu sua adoção”, afirma Domingues de Souza. Nos Estados Unidos e no Canadá, esse tipo de debate foi abandonado na primeira metade do século 20, mas ambos possuem sistemas próprios de impostos (conhecidos como property tax) que incidem a propriedade e não sobre o patrimônio global dos contribuintes.
Entre os principais países emergentes, a África do Sul e a China não contam com tributação de grandes fortunas. Na Índia, existe desde 1957 um imposto anual sobre o patrimônio líquido com alíquotas que variam entre 1% e 5% sobre os bens das pessoas físicas e jurídicas que excedam um limite estabelecido pelo governo. O modelo indiano, no entanto, isenta da cobrança do imposto propriedades agrícolas, obras de arte, bens de uso pessoal e até um imóvel do contribuinte, desde que comprovadamente habitado por ele.

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