Uma minúscula
tributação sobre as grandes fortunas em nada incomodaria o sono dos mais ricos
e poderia ser um grande reforço para a saúde pública e o combate à miséria
Por: Maurício Thuswohl
Bandeira histórica dos
partidos de esquerda no Brasil, a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas
(IGF) está prevista na Constituição Federal de 1988, mas, subordinado à
aprovação de uma lei complementar para entrar em vigor, até hoje não se tornou
realidade. O debate sobre a taxação das grandes fortunas no país, no entanto,
voltou à tona no segundo semestre de 2011, com a mobilização do Congresso
Nacional em torno da regulamentação da Emenda 29, que fixou os percentuais
mínimos que União, estados e municípios devem investir no setor de saúde.
Defensores e críticos dessa modalidade de tributação, praticada em outros
países, voltaram a tornar públicos argumentos de uma discussão que deve ganhar
corpo.
Em 1989, o Senado
aprovou um projeto de lei complementar (PLC), de autoria do então senador
Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), que determinava a imediata entrada em
vigor do IGF, mas continha imperfeições aos olhos da esquerda. Por exemplo,
permitir que os valores pagos fossem deduzidos do imposto de renda. Na Câmara,
o projeto acabou substituído por outro, elaborado por deputados do PSOL,
aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em junho de 2010 e
pronto para ir a voto em plenário. No entanto, dorme em alguma gaveta da Mesa
Diretora à espera de uma decisão política que destrave a discussão.
Paralelamente, no
âmbito do debate sobre a Emenda 29, a ideia de tributar grandes fortunas como
forma de garantir recursos à saúde se materializou em 2011 em outro PLC, nº 48,
do deputado Dr. Aluizio (PV-RJ), que cria a Contribuição Social das Grandes
Fortunas (CSGF). Relatora do projeto na Comissão de Seguridade Social e Família
da Câmara, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou emenda para que
toda a arrecadação proveniente da CSGF seja direcionada exclusivamente a ações
e serviços relacionados à saúde e os valores recolhidos encaminhados ao Fundo
Nacional de Saúde (FNS) para financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo a deputada, a CSGF atingiria cerca de 56 mil contribuintes com
patrimônio superior a R$ 4 milhões.
O relatório de Jandira
prevê nove alíquotas para a CSGF, a serem pagas anualmente: 0,4% (entre R$ 4
milhões e R$ 7 milhões); 0,5% (acima de R$ 7 milhões a R$ 12 milhões); 0,6% (de
R$ 12 milhões a R$ 20 milhões); 0,8% (de R$ 20 milhões a R$ 30 milhões); 1% (de
R$ 30 milhões a R$ 50 milhões); 1,2% (de R$ 50 milhões a R$ 75 milhões); 1,5%
(de R$ 75 milhões a R$ 120 milhões); 1,8% (de R$ 120 milhões a R$ 150 milhões);
e 2,1% para aqueles com patrimônio acima de R$ 150 milhões.
A deputada ressalta que
as alíquotas podem produzir um efeito considerável sobre a arrecadação e de
baixíssimo impacto para os contribuintes atingidos face à evolução patrimonial:
“A Receita Federal informa que ao longo de 2009 – ano de crise – o patrimônio
das pessoas que superava a casa dos R$ 100 milhões elevou-se de R$ 418 bilhões
para R$ 542 bilhões – 30% de crescimento em um único ano. Nesse contexto, uma
tributação adicional de 2% representa muito pouco para esse diminuto segmento
social, mas representará um significativo aporte de recursos para a saúde
pública, que atende 190 milhões de brasileiros”, diz Jandira.
Se for aprovado na
Comissão de Seguridade Social e Família, o projeto da CSGF ainda terá de passar
por outras duas comissões antes de ir a votação em plenário, em um trâmite que
provavelmente se estenderá pelo primeiro semestre de 2012. O objetivo dos
parlamentares defensores da proposta é evitar que se repita a situação do outro
PLC, aquele a hibernar na gaveta da Mesa Diretora.
Cinco mil famílias
Elaborado pelos
deputados do PSOL Chico Alencar (RJ), Ivan Valente (SP) e Luciana Genro (RS,
atualmente sem mandato), o projeto do IGF busca regulamentar o inciso VII do
artigo 153 da Constituição Federal e determina que o imposto incida sobre todo
patrimônio superior a R$ 2 milhões. Para os contribuintes com patrimônio entre
R$ 2 milhões e R$ 5 milhões, a taxação prevista é de 1%, progredindo para 2%
(entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões), 3% (de R$ 10 milhões e R$ 20 milhões), 4%
(de R$ 20 milhões e R$ 50 milhões) e 5% para fortunas acima de R$ 50 milhões.
Na elaboração dos
projetos da CSGF e do IGF, os parlamentares utilizaram como base para seus
cálculos os dados da Receita Federal de 2008. Segundo o órgão, o universo das
grandes fortunas no Brasil estaria assim distribuído: são 26.206 contribuintes
com patrimônio entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões; 10.168 (entre R$ 10 milhões
e R$ 20 milhões); 5.047 (entre R$ 20 milhões e R$ 50 milhões); 1.327 (entre R$
50 milhões e R$ 100 milhões) e 997 com patrimônio superior a R$ 100 milhões.
Um documento
frequentemente usado como base para as discussões sobre a taxação de grandes
fortunas no país é o estudo Atlas da Exclusão Social: os Ricos no Brasil,
organizado por Marcio Pochmann, André Campos, Alexandre Barbosa, Ricardo Amorim
e Ronnie Aldrin, de 2005. Segundo os pesquisadores, que analisaram o período de
1980 a 2000, apenas 5 mil famílias brasileiras possuem um estoque de riqueza
equivalente a dois quintos de todo o fluxo de renda produzido pelo país ao
longo de um ano. Essas famílias, de acordo com o Atlas, detêm um patrimônio
equivalente a 42% do PIB brasileiro e dispõem cada uma, em média, de R$ 138
milhões.
Combate à pobreza
Professor de Direito
Tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Bruno Macedo Curi recorre
ao que classifica como “raiz ideológica da tributação das grandes fortunas”
para lembrar que entre os objetivos da República explicitados na Constituição
estão a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das
desigualdades sociais: “O combate à pobreza, portanto, é algo caríssimo ao
constituinte, a um ponto tal que se buscou um instrumento tributário próprio
para tal fim. Por isso, toda a receita decorrente da arrecadação do IGF está
previamente vinculada, também por norma constitucional, à constituição do Fundo
de Combate à Pobreza”.
Em relação às
iniciativas em trâmite na Câmara dos Deputados, Curi diz que são dois tributos
sobre o mesmo fato gerador: “A Constituição não proíbe a identificação de fatos
geradores entre imposto e contribuição, o que tecnicamente resolveria o
problema. Mas, se já há resistência política por parte do Congresso Nacional
para a instituição de um gravame sobre as grandes fortunas, problema maior
ainda teremos ao se tratar de dois gravames distintos.
O especialista afirma
que o ideal seria que o IGF prevalecesse sobre a CSGF: “Pela importância dada
ao combate à pobreza, a prioridade é a instituição do imposto sobre grandes
fortunas, em vez da contribuição. Até porque há correntes que entendem que a
Previdência não existe para ser superavitária, sendo mesmo um ônus estatal. Já
o combate à pobreza é unânime como um dever estatal e estabelecido pela Carta
Magna como um objetivo a ser perseguido pela República”.
Segundo Curi, não
representaria uma dupla tributação sobre o imposto de renda. “Ele não tributa a
renda, mas sim o capital. Não há, portanto, duas incidências sobre o mesmo bem.
São conceitos próximos, mas distintos: enquanto renda é a disponibilidade de
acréscimo de patrimônio (tributável pelo IR), a grande fortuna é o patrimônio
em si. Desse modo, se uma pessoa detentora de grandes fortunas não tiver
acréscimo de patrimônio ao longo de um ano-calendário, não pagará imposto de
renda, mas pagará o IGF. O tributo, portanto, atua diretamente sobre o
patrimônio daquelas pouquíssimas pessoas físicas que, por concentrarem grande
parte da renda nacional, dificultam a redução das desigualdades. Por isso é tão
assustador”, diz.
E ser assustador para
os detentores de grandes fortunas, segundo ele, revela o calcanhar de aquiles
do IGF: a possibilidade de provocar fuga patrimonial do país. “Esse é um ponto
crucial. O imposto não possui autorização constitucional para incidir sobre o
patrimônio localizado fora do país, ao contrário do imposto de renda, que tem
previsão constitucional para isso. Assim, é preciso haver uma emenda
constitucional destinada a evitar a previsível evasão de divisas. Até porque,
quanto maior o patrimônio do cidadão, tanto maior será sua mobilidade”, diz o
professor, para quem uma alternativa possível, mas não ideal, seria a União
aumentar o IOF sobre certas remessas de dinheiro para o exterior. “Mas isso,
infelizmente, não é à prova de fraudes e demandaria maior esforço de
fiscalização.”
Experiências internacionais
A prática de tributar
grandes fortunas já existe ou existiu em outras partes do mundo. As
experiências mais marcantes são as de Alemanha e França, países que,
coincidentemente, estão na linha de frente da tentativa europeia de salvar sua
moeda única. Centralizadas pelo governo federal a partir de 1922, as tributações
na Alemanha tinham como base as declarações de patrimônio global dos
contribuintes, válidas por três anos, com alíquotas entre 0,7% e 1%: “Na
Alemanha, o tributo sobre o patrimônio atinge contribuintes que dispõem não
apenas de bastante dinheiro, mas também de poder econômico e político. Sua
compreensão original era de um complemento do imposto de renda, incluindo
posteriormente as pessoas jurídicas”, afirma o advogado e pesquisador Ueren
Domingues de Souza no estudo Imposto sobre Grandes Fortunas.
Como seria a CSGF
Apesar de suas
virtudes, esse tipo de imposto foi considerado “confiscatório” na Alemanha e
declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em 1995. De lá para cá,
o órgão aguarda o processo de regulamentação de novas regras, por parte do
governo, para que volte a ser cobrado. Na França, o sistema ainda em vigor,
conhecido como Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna, tem alíquotas
progressivas de 0,5% a 1,5% e incide sobre o patrimônio líquido de pessoas
físicas, residentes ou não no país. Nesse modelo, que existe em sua forma atual
desde que foi recriado pelo então presidente François Mitterrand em 1988, o
próprio contribuinte declara seus bens para que o imposto seja cobrado.
(incide apenas sobre
bens considerados “luxuosos”), está sujeito a um teto de 77% da renda
tributável e tem uma extensa lista de isenções. Outros países europeus que
adotam algum tipo de tributação sobre fortunas são Áustria, Suécia, Finlândia,
Islândia, Luxemburgo, Noruega e Suíça. Países como Holanda (2001) e Dinamarca
(1996) o aboliram em um passado recente e, há mais tempo, Itália (1947) e
Irlanda (1978) o deixaram de lado.
Nos países
anglo-saxões, de tendência mais liberal, a taxação sobre grandes fortunas nunca
pegou. Na Inglaterra, as discussões sobre a criação se estenderam no Parlamento
de 1960 a 1974, quando foi formada uma comissão especial para decidir sobre o
tema: “A comissão constatou que a instituição de um imposto sobre grandes
fortunas viria a substituir imposto sobre patrimônio já existente, o que
impediu sua adoção”, afirma Domingues de Souza. Nos Estados Unidos e no Canadá,
esse tipo de debate foi abandonado na primeira metade do século 20, mas ambos
possuem sistemas próprios de impostos (conhecidos como property tax) que
incidem a propriedade e não sobre o patrimônio global dos contribuintes.
Entre os principais
países emergentes, a África do Sul e a China não contam com tributação de
grandes fortunas. Na Índia, existe desde 1957 um imposto anual sobre o
patrimônio líquido com alíquotas que variam entre 1% e 5% sobre os bens das
pessoas físicas e jurídicas que excedam um limite estabelecido pelo governo. O
modelo indiano, no entanto, isenta da cobrança do imposto propriedades
agrícolas, obras de arte, bens de uso pessoal e até um imóvel do contribuinte,
desde que comprovadamente habitado por ele.
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