Sanha oposicionista, controle frouxo e apuração capenga formam combinação ideal para atazanar governos – ou determinados governos. Isso é bom para a democracia?
Por: Vitor Nuzzi
A corrupção foi o assunto do ano na política brasileira, porém o debate foi raso. Ministros foram derrubados, mas pouco se falou sobre os mecanismos de controle – que existem – e sobre o combate ao problema feito por algumas instituições públicas criadas com esse fim. Também passou ao largo, por exemplo, a discussão sobre reforma política. Para Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), houve empobrecimento do debate. “Quase toda a crítica ao governo se concentra na corrupção, real ou imaginária”, escreveu. “Não vejo os tucanos irem além de defender a privatização do pré-sal ou de atacar o Bolsa Família. O Brasil merece mais. Merece pelo menos duas coisas: debates sobre políticas para o país e um combate, sem uso partidário, à corrupção.” Mas ele também critica o governo, notando certo “feudalismo” no ministério. “Uma coisa é ter coligação, outra é o partido ser aceito sempre.”
Em seu blog, o jornalista Ricardo Kotscho observa que nada que possa ser feito vai satisfazer a imprensa que hoje abriga o que sobrou da oposição depois das últimas eleições. “Dilma pode demitir todos os ministros e fazer uma faxina geral na máquina do governo que eles ainda vão querer mais, e continuarão ‘convocando o povo’ nas redes sociais. Valentes de internet, não estão habituados a enfrentar o sol e a chuva da vida real”, diz Kotscho.
Depois das trocas de ministros ao longo do ano, o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Augusto de Queiroz, acredita que vem aí um tempo de relativa calmaria. “O escândalo tem a importância de revelar as falhas de representação, e a presidenta Dilma tem feito uma ação cirúrgica”, avalia. Além disso, destaca a criação da lei geral de acesso à informação, “um instrumento de transparência da maior importância”. Outra medida relevante está prevista para o início do ano, quando Dilma deverá fazer uma reforma ministerial – devido às eleições municipais – tendo o cuidado de remover alguns possíveis focos de problema.
O professor de História Luiz Carlos Soares, da Universidade Federal Fluminense (UFF), critica o fato de as notícias de escândalos pautarem a agenda política. “Muito dessa tentativa de pôr o governo contra a parede vem de interesses contrariados. Estamos com um problema muito sério no Brasil, que é a falta de uma imprensa realmente independente. A política não pode ser pautada por ‘acusacionismo’”, diz.
A ombudsman da Folha de S.Paulo, Suzana Singer, notou afobação durante o processo que terminou na queda do ministro Orlando Silva, do Esporte. “No afã de dar o último tiro, atropelou-se várias vezes o bom jornalismo”, escreveu em sua coluna de 30 de outubro. No final, recomenda: “É preciso cuidado com a cultura do escândalo. Acusação baseada em uma só fonte, sem documentos, é o início do trabalho do repórter, não o seu fim – mesmo no noticiário político, onde, infelizmente, se atira a esmo e se acertam mais corpos do que se esperava”.
Um dos signatários de manifesto de apoio a Orlando Silva, assinado por intelectuais e políticos, o professor da UFF avalia que a iniciativa serviu para dar um basta à “rede de ‘denuncismo’” que cercou o caso. “Claro que toda ação de corrupção tem de ser apurada. O governo precisa ter o controle da situação, fazer pente-fino. Mas, por mais complicada que seja a base aliada, o que está em pauta é o desgaste do governo”, diz Luiz Carlos Soares.
O cientista político Fabiano Santos, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), afirma que as instituições de controle estão muito mais preparadas, mas ainda há questões culturais em jogo. “O tratamento não ortodoxo da coisa pública é uma prática muito arraigada no Brasil, que foi acentuada pelos governos militares.” Para ele, o fato de os episódios estarem vindo a público com maior frequência mostra que os órgãos de controle ganharam força.
As denúncias e quedas de ministros não resultaram em instabilidade, nem no Congresso, nem na composição partidária, nem nas políticas de governo. “Do ponto de vista político, é uma semana de manchete; depois, acaba”, disse Fabiano Santos ao jornal Valor Econômico. Segundo ele, Dilma talvez esteja experimentando uma situação mais aguda do que seus antecessores Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso.
Renato Rabelo, presidente nacional do PCdoB, bombardeado pela crise no Esporte, diz que isso já vinha ocorrendo no ministério. Oito meses atrás já havia sido tomada a decisão de suspender convênios com ONGs até uma redefinição de critérios. Mas, para ele, a origem da atual crise é outra. “A lógica dessa grande mídia é a oposição ao governo. Tem sido assim desde Lula. E essa oposição não apresenta alternativas de governo, não tem bandeira, nem resolveu qual é a sua liderança”, afirma.
Em relação à queda de Orlando Silva, o presidente do partido vê má-fé para “desmoralizar a esquerda e, em última instância, desestabilizar o governo”. “Estamos trabalhando para que a denúncia seja arquivada, porque nem indício tem. E a mídia, que fez todas essas denúncias, não vai dizer nada.”
Não falem de mim
Um bom teste para a liberdade de expressão brasileira está no lançamento do livro Crime de Imprensa, dos jornalistas Mylton Severiano e Palmério Dória, que criticam a cobertura da mídia em vários episódios das eleições de 2010, quase sempre tentando favorecer determinado candidato ou bombardeando determinada candidata. Para o prefácio, recorreram a um texto de Lima Barreto (1881-1922). O autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma escreveu que “nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno”. Além da dificuldade de conseguir uma editora (o livrou saiu pela Plena Editorial), não se viu nem ouviu nada a respeito do lançamento, diferentemente do que ocorre com publicações laudatórias sobre donos de meios de comunicação. E o lançamento não ocorreu em nenhuma livraria, mas em uma banca de jornal.
A discussão sobre a mídia também passou em branco em 2011, com exceção de alguns debates pontuais, igualmente ignorados na maior parte do tempo. E se trata de uma discussão urgente, afirma o ex-ministro da Comunicação Social Franklin Martins. “É necessário criar um novo ambiente. O que vivemos hoje é de inexistência de marco regulatório, em um processo de convergência de mídias”, diz.
Ele ressalta que o anteprojeto de regulação que deixou pronto não configura nenhum risco à liberdade de imprensa. “A imprensa publica o que quer, opina sobre o que quer, diz o que bem entende.” A regulação é necessária para, entre outras coisas, evitar o risco de uma concentração maior no país. “Se deixarem como está, as telecomunicações vão jantar a radiodifusão”, afirma, ao lembrar que o faturamento anual da primeira foi de R$ 180 bilhões e o da segunda, R$ 13 bilhões. “Vamos aproveitar a entrada da convergência de mídia para fazer uma nova pactuação no país, para que a sociedade tenha seu espaço.”
Entrevista
Os escândalos e a política
Para o pesquisador argentino Manuel Balán, da Universidade McGill, do Canadá, coalizão governista é fator determinante
Por que alguns governantes parecem mais expostos aos escândalos e outros menos? Em alguns casos, a popularidade é atingida severamente e em outros não é sequer arranhada.
A corrupção é um fenômeno relativamente estrutural, e portanto existem atos de corrupção (em maior ou menor medida) em todos os governos e administrações. Em meu estudo sobre escândalos de corrupção na Argentina, Chile e Brasil, o que encontro é que o nível de escândalos depende da composição política da coalizão governante. Coalizões ou partidos com maior conflito interno têm maiores níveis de escândalos de corrupção. Isso ocorre bastante no caso brasileiro, em que as coalizões são complexas, diversas e ideologicamente heterogêneas. Agora, isso não exclui outros fatores. A simpatia que diversos meios de comunicação podem ter ou não ter pelo governo ou por suas políticas levam a níveis maiores ou menores de exposição de escândalos de corrupção. Na Argentina, até não tanto tempo atrás, o jornal Clarín raramente publicava escândalos de governo. Hoje é um veículo claramente opositor, e não deixa passar oportunidade para criticar.
E em relação à popularidade?
É difícil determinar. Dilma tomou o caminho de remover os ministros que se veem envolvidos em escândalos. Nestor Kirchner, na Argentina, desconsiderou as denúncias que atingiam figuras-chave de seu gabinete e as manteve no poder. E se deu bem. Creio que em muitos casos a capacidade de sobreviver aos escândalos também depende do contexto econômico. Se as coisas vão bem, passam sem maior pena nem glória. Se não vão, podem ter consequências difíceis de consertar.
O senhor diz que os veículos de comunicação não são inocentes. Nesse caso, eles também refletem interesses próprios ou uma tentativa de minar um governo? Pergunto porque às vezes, após a queda de um ministro, por exemplo, o escândalo sai do noticiário e deixa de ser investigado.
Os escândalos de corrupção são notícias atraentes para a audiência, “vendem”, o que faz com que os veículos, em alguns casos, deem ao fato dimensão maior do que merece. Isso pode se dar por inimizade ou antipatia do veículo para com o governo. Ou simplesmente para atrair maior audiência. Em muitos casos, um pouco de ambas as coisas. Por fim, creio que é até lógico que os veículos deixem de prestar atenção a um escândalo uma vez removido o ator considerado responsável – um ministro, por exemplo. Essa resposta política de algum modo “mata” a notícia, e faz com que audiência – e os meios – perca o interesse.
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