Relatório do Conselho Federal de Psicologia registra desrespeito reiterado aos direitos humanos nas comunidades terapêuticas que internam usuários de drogas. É a reedição dos manicômios, mas para "tratar" dependentes, inclusive crianças e adolescentes. "Há claros indícios de violação dos direitos humanos em todos os relatos. De forma acintosa ou sutil, esta prática tem como pilar a banalização dos direitos dos internos", diz o relatório. O artigo é de Maria Inês Nassif.
Maria Inês Nassif
As comunidades terapêuticas destinadas ao tratamento (por internação) de usuários de drogas, em geral, não passam pelo crivo do artigo 5° da Constituição, que enumera exaustivamente os direitos fundamentais da pessoa humana. A começar pelo direito de credo. Das 68 instituições visitadas em inspeção realizada em setembro do ano passado pelo Conselho Nacional de Psicologia, 29 de declararam evangélicas, 9 católicas, 1 espírita e 13 se declararam religiosas, sem especificar, contudo, qual a religião abraçada. No total, 35 assumiram que a religião é a base do tratamento para usuários de álcool e outras drogas. "A maioria adota a opção pelo credo, pela fé religiosa como recurso de tratamento", conclui o Conselho.
Segundo o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos - locais para internação dos usuários de drogas -, a violação dos direitos humanos nessas instituições é uma regra. "Há claros indícios de violação dos direitos humanos em todos os relatos. De forma acintosa ou sutil, esta prática tem como pilar a banalização dos direitos dos internos", diz o relatório. A lista é extensa: "interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o anti-HIV, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória dos familiares, violação da privacidade, entre outros, são ocorrências registradas em todos os lugares".
No caso das instituições com vínculos religiosos, existe contrangimento para que os internos participem das atividades religiosas. Existem, em regra, poucos profissionais de Saúde; nas instituições declaradamente religiosas, os internos ficam aos cuidados de religiosos, "obreiros" ou ex-usuários convertidos.
Segundo relato colhido nas instituições visitadas, há um vasto histórico de maus-tratos físicos e humilhações. "Encontra-se registrada a adoção de métodos de tortura como, por exemplo: internos enterrados até o pescoço; o castigo de beber água de vaso sanitário por haver desobedecido uma regra ou, ainda, receber refeições preparadas com alimentos estragados, além do registro de internos que apresentavam, no momento da inspeção, ferimentos e sinais de violência física?.
Um dos relatos mais impressionantes é sobre a instituição católica Comunidade Terapêutica Marta e Maria, no Rio Grande do Sul. Lá, no caso de uma interna, com filho, resolver interrromper a internação, é simplesmente suprimido o direito de guarda da mãe e a criança é dada em adoção. Outro relato contundente é sobre a técnica terapêutica da Clínica La Ravardiere: há o uso de eletrochoques em pacientes com crises de abstinência.
Aliás, o descaso com a abstinência do usuário de droga é outro problema generalizado. "A regra" é "esperar passar" ou "convocar a família para buscar socorro", diz o relatório. "Tal posição deixa os internos expostos ao risco de morte, pois a situação exige, nos casos mais graves, intervenção e cuidados rápidos".
A "laborterapia", parte do tratamento de usuários declarado por essas instituições, na interpretação do CFP, "assume caráter análogo ao trabalho escravo". "A suposta laborterapia resurge como conceito que justifica a utilização de mão de obra não remunerada, tornando mais lucrativa a atividade institucional". No entendimento do Conselho, "trabalho é direito e, como tal, deve ser respeitado. Caso contrário, é violação de direito, não tratamento".
A outra restrição do relatório ao tratamento dado pelas instituições aos usuários de drogas é a prática de afastamento de crianças e adolescentes de suas famílias, em função da internação. "Ao afastá-los de seus vínculos, a sociedade contribui para a fragilização dos laços afetivos e, consequentemente, reforça a institucionalização como saída".
Por fim, o CFP chega à conclusão de que a única vantagem para os ricos submetidos a esse tipo de tratamento, em relação aos pobres, é a hotelaria. "Mas, para ambos, pobres e ricos, o pressuposto da exclusão e do banimento da vida coletiva como regra, além, é claro, da reificação da saúde, já que tais práticas se propõem a ser cuidado de saúde, em objeto mercantil".
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