domingo, 22 de janeiro de 2012

OS MORTOS-VIVOS

DANIEL LIMA – Capital Social

Celso Daniel e Sérgio Gomes conheceram-se movidos pelos desvãos da violência eleitoral em 1988. Celso Daniel e Sérgio Gomes separaram-se 14 anos depois, em 18 de janeiro de 2002, traídos pelas armadilhas da violência urbana.

Tangidos pelo destino, Celso Daniel e Sérgio Gomes só tinham, aparentemente, a fonética dos nomes com um certo grau de encaixe de identidade. A discrição, a cautela e a reflexividade de um contrastava com o escracho, a ousadia e a impetuosidade do outro. Eles se completavam nas diferenças.

O homem que os sequestradores levaram para sempre naquela noite na área batizada de Três Tombos, em São Paulo, seria ministro de um governo federal que se definiria nove meses depois. A Carta do Recife, fundamentos sobre os quais se construiu o eixo do então idealizado governo petista de Lula da Silva, aprovada dois meses antes, ganhou temporariamente destino diferente do pretendido pelo seu autor, porque o PT acabou se dobrando às circunstâncias políticas e à conjuntura econômica até que, no segundo mandato do ex-metalúrgico, enveredou pela descoberta do consumo de massa que fez emergir uma classe social até então esquecida nos porões do mimetismo acomodatício.

O homem que os sequestradores deixaram em estado de desespero na Pajero preta que, na sequência dos acontecimentos, estimularia férteis controvérsias e contradições, entrou definitivamente na historiografia dos casos criminais de fuzilamento em vida. Massacrado pela mídia frequentemente pautada por promotores públicos convictos de que fora ele um dos mandantes do crime, Sérgio Gomes segue em vida assombrado com os desdobramentos do crime que o tornaram objeto de condenação popular. Até hoje ele sequer arrisca passeio em shopping.

Sérgio Gomes é um proscrito social que encontra na família e nos poucos amigos os únicos canais de diálogo para exercitar um magnetismo pessoal que tanto o fez sair da condição de segurança pessoal para a cúpula da Administração Celso Daniel como também para deixar nos presídios lições de alfabetização e evangelização.

A morte do prefeito do estafe do então principal partido de oposição nacional saltou às manchetes nos primeiros tempos como compulsório desenlace do caos na área de segurança pública da Região Metropolitana de São Paulo, até então infestada de sequestradores e de impunidade.

Não demorou, entretanto, para virar intrincadíssima peça de xadrez de disputas políticas e partidárias. Tudo começou quando apareceu em cena, respaldado pela força-tarefa do Ministério Público Estadual, um irmão que só se aproximava de Celso Daniel para pedir favores familiares, pessoais e de grupos econômicos de prestação de serviços públicos.

A partir da estrepitosa incursão de João Francisco Daniel e sua versão tardia e instrumentalizada de que a morte de Celso Daniel foi encomendada por suposta rede de irregularidades na Prefeitura de Santo André, o caso ganhou espiral de versões e especulações que embaralharam as conclusões policiais.

Prevaleceu na propagação da mídia o enredo do Ministério Público. Foram três anos seguidos de silêncio obrigatório das forças policiais, submetidas à censura do governo do Estado de São Paulo, enquanto os promotores criminais ocuparam os holofotes.

O assassinato de Celso Daniel deixara o terreno criminal e se instalara no campo político-partidário. Com direito a participações ambíguas como a do senador Eduardo Suplicy de patéticas intervenções para quem enxerga política com olhares mais qualificados, não um estuário de usufruto midiático.

As denúncias em 2005 do chamado mensalão, que atingia em cheio o governo petista em Brasília, jogaram combustível na fogueira de envolvimento da estrutura montada por Celso Daniel para financiamento de campanhas eleitorais. Atribuiu-se àquele que seria ministro de Lula da Silva a fonte de inspiração de sistêmica operação de financiamento de campanhas eleitorais petistas e aliados. Uma contradição que pegou de calças curtas os defensores da tese de crime de encomenda. Eles foram obrigados a mudar o discurso.

Nem mesmo o próprio irmão de Celso Daniel, João Francisco Daniel, notório adversário político dos petistas em Santo André, perdeu a oportunidade para manchar a memória do familiar. Em depoimento na CPI dos Bingos, variável da imensa árvore genealógica de gatunagem de que foi acusado o governo federal, João Francisco deu pontapés e sopapos na coerência.

Quando em 2002 fez denúncias de supostas propinas na Prefeitura de Santo André para vincular a morte de Celso Daniel a interesses econômicos e financeiros de quem gravitava em torno do comando da Prefeitura, João Francisco disse que o irmão morreu porque se rebelou contra o suposto mecanismo de desvios de recursos públicos. Ou seja: o propalado esquema de caixa 2 não seria de conhecimento do prefeito.

Já em 2007 na CPI dos Bingos, João Francisco afirmou que Celso Daniel sabia do esquema, mas se teria revoltado porque descobrira desvios dos executores, os quais se locupletariam pessoalmente com parte dos recursos programados para encaminhamento ao que mais tarde viria a ser o chefe da Casa Civil, José Dirceu.

Tudo poderia ter sido diferente se Celso Daniel, em terceiro mandato na Prefeitura de Santo André, não houvesse ligado naquela tarde de quarta-feira, 16 de janeiro, para Sérgio Gomes.

"Não, Celso, não dá. Tenho muito o que fazer aqui em Fortaleza.

"O que é isso, Chefe? Temos muito o que conversar. Estou te esperando -- respondeu em tom afável do outro lado da linha.

Sérgio Gomes administrava pequena frota de ônibus na Capital de Pernambuco, estava afastado há tempos do dia a dia de Celso Daniel, mas era mais forte a amizade construída a partir do primeiro trimestre de 1988.

"Está bem, está bem, Chefe. Vou pegar o primeiro avião. Amanhã estarei aí, respondeu Sérgio Gomes.

Sérgio Gomes chegou a Santo André na quinta-feira à noite. Sabia que a sexta-feira à noite estaria reservada para um jantar no restaurante Rubaiyat, na Alameda Santos, em São Paulo.

Era um ritual sagrado de Celso Daniel às sextas-feiras em que se dirigia à Capital distante 20 quilômetros de Santo André, no ABC Paulista. O pedido seria o de sempre: rodízio de frutos do mar para Celso Daniel, e filé de carne vermelha para Sérgio Gomes.
Jantar em São Paulo é escapadela natural de quem mora no ABC Paulista e pretende fugir da rotina. Mais que isso: a gastronomia paulistana é muito mais rica em opções e qualidade. Jantar em São Paulo para quem mora no ABC Paulista tem um gosto de tranquilidade também porque os encontros ficam fora dos radares de especulações.  A cidade grande oferece salvaguarda ao anonimato.

A conversa seria divertidíssima, esperava Sérgio Gomes. Celso Daniel estava eufórico. Dois meses antes fora convidado pelo candidato presidencial petista Lula da Silva para comandar o programa de governo do partido que disputaria pela quarta vez seguida a Presidência da República.

Celso Daniel irradiava confiança. A escalada rumo a Brasília num momento em que as eleições estavam distantes o inebriava. Já havia convocado o secretário municipal de Santo André, Klinger Souza, seu preferido à sucessão municipal em Santo André, para providenciar a locação de um imóvel em São Paulo. Ali, pretendia fixar estacas de um quartel-general de inteligência programática distante da efervescência do cotidiano da disputa eleitoral.

Misturar a combustão da disputa por votos e a serenidade da costura do que poderia estruturar a administração de Lula da Silva era tudo que Celso Daniel pretendia evitar. Professor universitário e praticante de basquetebol rigorosamente disciplinado, Celso Daniel desenvolvera a paciência de ensinar em sintonia com a vocação a superar obstáculos.

"Então, Chefe, está preparado para ir comigo a Brasília?" -- provocou Celso Daniel ao entrar no utilitário Pajero de Sérgio Gomes por volta das 18h daquela sexta-feira fatídica, depois de descer do apartamento na Rua Santo André, no Centro de Santo André.
"Pare com isso, Celso, pare com isso. Poderei dar uma ou outra passada por lá, mas você sabe que tenho muito o que fazer -- respondeu Sérgio Gomes.

O tratamento de "Chefe" que Celso Daniel dedicava em tom amistoso a Sérgio Gomes escapuliu de forma incontrolável do gueto dos amigos dos tempos em que resolveram contrariar a ordem estabelecida de que a Prefeitura de Santo André não era assunto para esquerdistas que acenavam com um socialismo pré-Muro de Berlim a assustar os conservadores, donos do capital.

‘Está certo, chefia, vamos lá então, Chefe -- disse Sérgio Gomes num dia qualquer do primeiro trimestre de 1988 para um Celso Daniel candidato pela segunda vez à Prefeitura de Santo André.

Filho de classe média tradicional cujo pai, Bruno Daniel, vereador e secretário municipal, fez relativo sucesso como corretor de imóveis, Celso Daniel não engoliu o tratamento.

"Chefe, então vamos Chefe, porque estamos atrasados. Temos muito o que fazer, Chefe" -- respondeu Celso Daniel sem alterar o tom de voz sempre suave, sempre firme.

"Chefe? Chefe é você, respondeu Sérgio Gomes.

"Não, Chefe é você, completou Celso Daniel.

Dali em diante, durante 14 anos, Sérgio Gomes sempre foi Chefe em todos os ambientes em que Celso Daniel contava com aquele que se tornaria seu principal amigo. Muito mais próximo dele do que qualquer um dos irmãos.

A esperteza de Celso Daniel em atribuir ao autor a própria etiqueta hierárquica foi um contragolpe certeiro. Celso Daniel não pretendia abdicar nem informalmente da marca registrada de uma família tradicional.

Mais que isso. Num ABC Paulista que fervilhava sindicalismo, Chefe significaria opção funcional estigmatizada em chãos de fábricas em que os embates entre capital e trabalho ultrapassavam os limites do razoável.

Além disso, num País que leva tão a sério insígnias familiares, herança dos colonizadores, desprezar a logomarca Daniel teria efeitos insatisfatórios, mesmo que restritos aos bastidores do mundo político.

Que adiantaria a Celso Daniel o apoio da periferia de uma classe média e popular de raízes industriárias se perdesse o filão dos conservadores? Por isso Celso Daniel eram nome e sobrenome indissociáveis.

É verdade que aquele jovem esguio que andava por todos os cantos num velho Fusca causava certo desconforto nos moradores mais antigos e de estrato econômico e social mais elevado. Chamavam-no de comunista. Ele seria a ponta-de-lança sofisticada de um partido que pretendia acabar com o capitalismo -- disseminava-se esse temor entre eleitores do centro e do centro expandido de uma Santo André ainda fortemente manufaturadora de produtos menos ebulitivos que os veículos das montadoras da vizinha São Bernardo do então presidenciável pela quarta vez Lula da Silva.

Por conta disso os amigos sussurravam aos ouvidos de Celso Daniel que o melhor era cuidar da segurança pessoal.

"Mas quem vou colocar para me vigiar o dia inteiro" – perguntou um incrédulo Celso Daniel à cúpula de um PT municipal sem recursos financeiros para despesas básicas.

"Precisamos dar um jeito porque os caras estão apertando, estão prometendo represálias, dizem que vão te matar" -- exagerou um militante mais incendiário numa noite no comitê de campanha.

 “Estou aqui para colaborar, pronto para o que der e vier. Só que quem dirige o carro sou eu. Você, Celso, fica do meu lado. Eí, vocês aí, podem sair do banco traseiro. Como posso garantir a segurança do Celso nesse Fusca velho e lento com vocês quatro todos aí?".

Foi assim que Sérgio Gomes conheceu Celso Daniel em 1988. A cena causou certo constrangimento. Celso Daniel tentou, discretamente, chamando Sérgio Gomes num canto, relaxar a proposta:

 "Mas eles sempre me acompanham, como posso ficar sem eles?"

"Você não vai ficar sem a companhia deles. Só que eles vão ter que ir em outro carro, só isso".

O diálogo entre Celso Daniel e Sérgio Gomes foi afável. E ajuda a explicar por que se deram tão bem ao longo de 14 anos. Sérgio Gomes descobrira, de imediato, que Celso Daniel dava autonomia a quem tinha tarefas a cumprir. Mas foi logo explicando ao então candidato de oposição à Prefeitura de Santo André:

"Eu fico no volante, mas você tem que me orientar sobre os novos caminhos que vamos percorrer todos os dias. Se você não me disser para onde tenho de ir, dançamos" -- explicou.

Naquela noite do jantar no Rubaiyat, o último encontro entre Celso Daniel e Sérgio Gomes, o caminho mais conveniente para chegar à Alameda Santos foi definido por Sérgio Gomes, que estava ao volante. Ele não precisou de orientações de Celso Daniel. Sair de Santo André, tomar a Via Anchieta, ingressar na Rua Vergueiro, chegar à Avenida Paulista e dali ao restaurante era roteiro familiar demais a Sérgio Gomes. Voltar praticamente pelo mesmo caminho também. Era assim que sempre fez. Não seria diferente naquela noite.

Celso Daniel se regalou com frutos do mar e Sérgio Gomes com o filé bovino. Foram mais de duas horas de jantar praticamente monotemático. Celso Daniel falou o tempo todo sobre os planos para o comando do programa de governo de Lula da Silva. Bebeu pelo menos meia dúzia de Coca Cola.

"Essa é uma gordinha de que você mais gosta hem, Celso?"-- brincou Sérgio Gomes depois de o garçom servir uma das garrafinhas do refrigerante de rótulo à antiga, em letras brancas.

Celso Daniel estava tão entusiasmado com os planos de governo petista que preferiu não responder à brincadeira. Apenas lamentou a ausência de Ivone Santana, socióloga que o acompanhava havia muitos anos, mãe de Liora, a filha que conceberam quando Celso Daniel estava casado com Miriam Belchior, a primeira namorada e mais tarde uma das principais assessoras na Prefeitura de Santo André e hoje ministra do governo Dilma Rousseff.

"Queria tanto que a Ivone estivesse aqui, mas que posso fazer se ela arrumou trabalho para uma sexta-feira à noite – lamentou Celso Daniel.

"Esquenta não, Celso, esquenta não. Fizemos o que tínhamos de fazer. Você não quis trazê-la? Não passamos no apartamento dela? Você não insistiu? Se ela quis ficar, paciência – respondeu Sérgio Gomes no tom certeiro de quem conhecia suficientemente o velho amigo para aliviá-lo de eventual sentimento de culpa.

A retomada da conversa não deixou dúvidas a Sérgio Gomes de que Celso Daniel fizera o comentário sobre Ivone Santana num momento de reflexão sobre a própria vida pessoal que pretendia ver resolvida. Pretendia Celso Daniel morar de vez com Ivone. Falara com Sérgio Gomes sobre a possibilidade de mudar-se para apartamento maior.

"Você está certo, Celso. A Ivone é boa moça, mãe de sua filha, vocês se casam muito bem em ideologia, em filosofia de vida, em objetivos pessoais, vocês têm mesmo é mais que se juntarem de vez. Só não venha com a proposta de mudar as regras do jogo quando estivermos no mesmo carro: eu e eventualmente você dirigimos, você e eu ficamos no banco da frente e a Ivone vai atrás" -- brincou Sérgio Gomes ante um Celso Daniel que não conteve uma gargalhada mais aberta do que permitia o estilo discreto. Nada que agredisse o ambiente fino, num jogo mágico em que o introspectivo se soltava e o ruidoso se jactava.

Ninguém poderia imaginar que chegassem a tanto e em tão pouco tempo. Quando foi apresentado a Celso Daniel, Sérgio Gomes ouviu de um e outro militante petista da cúpula da campanha eleitoral municipal em 1988 que se preparasse para conviver com um homem de poucas palavras, tímido, de difícil relacionamento.

Sérgio Gomes não se deixou levar pela possibilidade de tornar aqueles meses pré-eleitorais sucessão de diálogos monossilábicos com o acompanhante daquele Fusca barulhento. Imaginou, é verdade, que caíra numa enrascada quando lhe foi sugerido que contribuísse voluntariamente com a campanha de Celso Daniel.

Sérgio Gomes era professor de Geografia e História de funcionários e atletas do Clube Atlético Pirelli, em Santo André. O emprego lhe fora sugerido por Marilene Nakano, mulher de Bruno José Daniel Filho, irmão de Celso Daniel. Marilene e Bruno eram seus amigos. De Celso Daniel apenas ouvira falar.

"As ameaças ao Celso são cada dia mais graves, por isso você precisar dar uma ajuda -- sugeriu Marilene, conhecedora das habilidades de Sérgio Gomes em lutas marciais.

Marilene Nakano tornou-se mais tarde, como secretária de Educação na primeira gestão de Celso Daniel na Prefeitura de Santo André, entre 1989 e 1992, o pivô do afastamento dos dois irmãos mais próximos na família Daniel, Celso e Bruno Filho. Ela pretendia instalar espécie de gestão paralela na Secretaria de Educação. Celso Daniel já abandonara o radicalismo pró-soviético e substituiu a titular da pasta. Os laços familiares romperam-se para sempre. Sobrou apenas formalidade.

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