domingo, 8 de janeiro de 2012

“O pensamento da esquerda não pode ser estático”

Por Mercedes López San Miguel e Natalia Aruguete – do jornal argentino Página/12

É músico e foi o auxiliar que mais tempo acompanhou o presidente Rafael Correa. Agora é o presidente da Aliança País (o partido governista do Equador). A partir desta posição, Galo Mora Witt analisa as políticas do seu governo e o novo contexto latino-americano, a Unasul (União das Nações Sul-americanas) e a recém criada Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos). A relação com a imprensa e a urgência da comunicação popular.

O que mudou a partir da tentativa de golpe de Estado contra o presidente Rafael Correa em 30 de setembro de 2010?
–A ameaça está latente. É uma espada de Dâmocles que pende sobre a democracia. O que fizemos foi fortalecer-nos na vontade do povo equatoriano. Foram três os fatores que impediram o golpe: a resposta da população, o comunicado das forças armadas respaldando Correa e a reunião dos presidentes da América Latina aqui, em Buenos Aires. Tudo isso convergiu. Talvez haja um quarto fator: o sequestro do presidente evitou a queda. A partir daí nos firmamos na radicalização do processo, para erradicar a pobreza extrema e fortalecer as instituições.

–O Informe Regional sobre Desenvolvimento Humano para América Latina e o Caribe (ONU) destacou no ano passado a alta desigualdade que havia no Equador, qual é o desafio do governo de Correa neste terreno?
–Tirar o povo da pobreza é a maior luta de uma esquerda renovada, nunca se há de esquecer, pelo fragor do debate doutrinário, que a razão fundamental está aí: a miséria não pode existir ao lado da ostentação. Baixamos em 10% a pobreza total nas comunidades indígenas. Esta é uma cifra imensa para nós. São as comunidades mais ultrajadas por todos os índices do racismo e da exploração. Logramos um feito que é muito complexo: baixar dois pontos no desemprego, quando a Espanha tem zonas em que o nível de desocupação chega a 40% e nos Estados Unidos a 15%. Então trazer a cidadania para a política está na força coletiva; do contrário continuará havendo um espírito corporativo entre as elites de cada sociedade.

–Como interpreta que uma potência mundial como Estados Unidos não logre sair da crise econômica?
–É paradoxal que o multimilionário Warren Buffet peça a (Barack) Obama que lhe cobre mais impostos. O governo de (George) Bush isentou os mais ricos do pagamento de impostos acentuando a contradição. Ante esse alerta, há uma resposta. Não é uma iniciativa do governo de Obama. Em boa hora existem metáforas históricas como esta. Aqui se necessita de justiça, e a justiça não pode estar diversificando sua vontade: para uns sim, para outros não. Os Estados Unidos vivem uma crise, a qual quer nos fazer pagar como antes: que os que não temos a culpa paguemos a crise aos que a provocam. Afortunadamente, a América Latina tem uma posição absolutamente diferente. Bolívia, Equador e Peru, por suas políticas anticíclicas suportaram melhor a crise de 2009, como assinalou o Banco Mundial. O Peru tinha um governo com outra orientação ideológica.

–Na área da comunicação, como define a relação entre o governo de Rafael Correa e a imprensa?
–É muito complexa, temos que admitir. Há pouco, a Justiça ratificou a condenação contra o jornal El Universo (de Guayaquil), o diretor e o editorialista (Emilio Palacio) que causou esta crise. Palacio está em Miami e se considera um exilado, para nós é um foragido porque a irresponsabilidade não pode acompanhar o suposto livre arbítrio da profissão jornalística sem informação veraz e investigada; sem responsabilidade ulterior não se pode falar.

–Não é excessivo que pela publicação desse artigo devam ir para a prisão ou pagar uma multa tão alta?
–O presidente Correa disse que eles tiveram seis meses e que o tempo do cavalheirismo já passou para se publicar uma desculpa. Correa propôs que com uma desculpa se acabava tudo, não haveria nem prisão nem multa. Na origem está uma injúria que pretende levar Correa a uma Corte internacional que o julgue por “ordenar disparar contra um hospital cheio de civis”. O presidente pediu que se retificasse a informação e o colunista Emilio Palacio não o fez. Foi uma injúria vergonhosa.
–Foi aplicada uma multa de 40 milhões de dólares.
–Vejam como reagiram os diretores do jornal: subterraneamente enviam mensagens de que querem se desculpar; por cima, vociferam. Onde está a dupla moral, em nós ou neles? Creio que a exigência de que as notícias sejam verazes e justificadas, como consta na Constituição, deve ser obrigação de todos os dias. Não se pode lançar injúrias sem que ninguém seja responsável. As vítimas desses ultrajes são seres humanos.

–Que avanços houve a partir da sanção da lei dos meios de comunicação?
–Essa é outra mostra da inutilidade de tanto esforço. Desde que foi aprovada, há dois anos, a lei de comunicação depende dos supostos interesses de parlamentares que decidem se há quórum ou não. Hoje estamos na reta final porque em 7 de maio o povo aprovou numa consulta ter uma lei de comunicação e aprovou pontos essenciais como que as corporações financeiras não podem financiar os órgãos de comunicação. A imprensa é a grande força porque a direita não tem voz.

–Visto a partir da mudança que houve nos governos da região desde começos deste século, quais deveriam ser os desafios da nova esquerda?
–Propomos algumas posturas diferentes do que se conheceu como socialismo real, que na realidade acredito que era irreal, se conheceu também como socialismo do Leste. E muitos articulistas, editorialistas, escritores falaram do fracasso do comunismo, inclusive, com um absoluto desconhecimento histórico. Nem as comunidades primitivas nem o cristianismo, e muito menos os governos aos quais fiz referência, podem ser chamados comunismo porque esse é um estado absolutamente avançado da sociedade ao qual ninguém chegou ainda. Por outro lado, creio que a esquerda, para poder sintonizar com o século 21 e se aproximar dos grandes avanços da humanidade, deve entender que seu pensamento não pode ser estático, tem que voltar à dialética, porém não à dialética que a adormeceu devido à sua má interpretação.

–Que é que se interpretou mal?
–Fez-se uma redução da ideia de tese, antítese e síntese, e se ignorou que provavelmente a síntese podia ser menos transcendente do que a tese. Quer dizer que não há resultados de consequência lógica nas histórias porque a história não é matemática.

–Como concebe a história?
–A história tem demandas conjunturais, históricas e temporárias que as correntes revolucionárias devem observar em profundidade e entender que o que se está construindo se constrói com o aval da população.

–Quais acredita que sejam as novas demandas conjunturais?
–Vou citar um tema que aparecia permanentemente nos discursos: a ditadura do proletariado. Irresponsavelmente se o repetia em países onde não havia fase industrial, não havia operário industrial que é quem pode estar capacitado para entender esse processo. Creio que aí havia um erro de conceito e de eco, no sentido de gerar uma imitação do que havia ocorrido em algum lugar. Se as revoluções não são exportáveis, muito menos se podem exportar demandas que são características identificadas com determinado tempo, com determinada sociedade e cidadania. Precisamente este último termo nos leva a propor uma radicalização no processo de trazer a cidadania para a política onde os eixos não estejam determinados por cúpulas, mas que seja a cidadania que aponte o destino, independentemente de que seu exercício não esteja ligado ao poder, porque não é possível que toda a cidadania seja parte do Executivo ou do Legislativo.

–Como se concretizaria, então, o que podemos chamar de cidadanização?
–Através de suas reivindicações. Isto é, submeter os critérios da teoria e da doutrina à sua vontade, não à vontade dos que exercem a liderança.

–Que mecanismos propõe para isso?
–Fazer referendo quantas vezes seja necessário. Eu vivi na Suíça, ainda que não vou pregar sobre o Estado suíço, mas a Confederação Helvética e os cantões realizam referendos todas as semanas para decidir, inclusive, orçamentos. Há municípios moldados através da votação popular. Se a infraestrutura básica se necessita para hospitais, escolas, estradas é o povo quem deve decidir.

–A que outros mecanismos pode recorrer a cidadania para aprofundar o processo de politização?
–Por que não se confia na política? Porque se sentiu usurpada, usada e explorada e tantas ocasiões nas quais os políticos a visitavam para oferecer algo e não voltar nunca mais. Creio que essas falácias foram destruindo a fé e a confiança. Agora, recuperá-las devem ser metas fundamentais.

–De que forma?
–Logrando alternativas ao exercício do governo na vontade política de auto-organizar-se, superando os vícios do clientelismo e do assistencialismo. Mas para isso é necessário que se garanta que uma população que pode voltar ao espírito humanista e solidário não seja explorada, que os primeiros grandes benefícios das sociedades contemporâneas sejam para eles.

–Por exemplo?
–Yanacocha é um dos exemplos vivos da administração do presidente Rafael Correa. Por decreto específico – e agora por lei nacional –, os primeiros beneficiários da exploração petrolífica são as comunidades onde está o petróleo, enquanto que durante 40 anos haviam levado o petróleo e deixado o lixo. Por isso, a Constituição equatoriana é a primeira no universo que não é constituição de direito, mas sim de direitos, fundamentalmente, direitos à natureza. Dou outro exemplo: o parque nacional Yasuni tem garantias, numa faixa do mesmo, que é pequena afortunadamente, há uma grande quantidade de petróleo debaixo do solo. Esse petróleo pertence ao Estado equatoriano e ao povo equatoriano e tem sido o protesto mais radical em termos de não emissão de carbono rumo à atmosfera, em dar um passo rumo a uma nova geração, já não de poços de petróleo e sim de novas matrizes de petróleo.

–Como é a relação atual entre o governo e os indígenas?
–Temos assumido de ambas as partes certas incompreensões. Tratamos de superar as relações de assistencialismo e clientelismo da época neoliberal. Há também uma influência ideológica através de organizações não governamentais no sentido de incentivar teses que supostamente seriam da ultra-esquerda, mas que afinal convergem na Assembleia Nacional com posições que representam a direita política do Equador. Nós estamos determinados a caminhar com uma nova direção, com as demandas reais dos povos originários. Quer dizer, não interessa ao povo indígena quantos parlamentares tem, mas sim quantos pobres menos há. Um é um poder de empoderamento, o outro é a realidade. Se têm que baixar os níveis de pobreza e de miséria com um trabalho fecundo.

–Que efeitos têm na percepção da sociedade equatoriana as decisões políticas de Rafael Correa?
–Um dos problemas maiores é poder divulgar. A verdade não é patrimônio de ninguém, mas no exercício político dizer a verdade é fundamental, inclusive, não aparentando que se ganhou quando se perde. Dizer a verdade custa muito e não o digo nem no sentido figurado nem no econômico.

–Em que sentido o diz?
–Se enfrentamos todos os dias atitudes rançosas de certo setor da imprensa, que ataca tudo o que se faz como em muitos outros países da América Latina, é difícil a comunicação. Uma das decisões mais avançadas, ainda que complexa e polêmica, foi confiscar as empresas dos que atentaram contra o Estado nacional. Através desses meios de comunicação confiscados há uma oportunidade de se chegar a certo setor da população. Mas é também justo reconhecer que não são os meios de comunicação maiores. Estes exemplos geram uma avaliação de com quem e para quem está este governo. O apoio popular de 79,6%, surgido de uma pesquisa não realizada para o governo, confirma que (Correa) não se equivocou, que esse era o caminho por onde caminhar. Mas não se pode fazer política através das pesquisas, as definições não se jogam por aí.

–Por onde se jogam?
–Pela ética e pela moral, através das decisões majoritárias do povo, do que consideramos política soberana. Essa é outra forma de comunicação e acreditamos que é um passo difícil e complexo. Nós não somos políticos de carreira, não nos graduamos em organizar nada, viemos de outros círculos. Eu venho da literatura e da música, sempre vivenciando os temas políticos. O presidente Correa vem de organizações populares, da academia, das lutas universitárias, foi o primeiro vencedor nas eleições da Federação das Universidades Católicas há 25 anos.

–Como analisa a situação atual da União das Nações Sul-americanas (Unasul) em termos de integração regional?
–A morte de Néstor (Kirchner) foi um golpe muito duro porque, em torno de sua figura ecumênica, se invocava uma projeção maior. Mas por dolorosa e dura que haja sido essa perda não pode frear este processo. Creio que o Banco do Sul, a Unasul e a Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos) são as grandes orientações atuais na região. O Banco do Sul se encarregará de criar esses fundos comuns e ir substituindo o Banco Mundial e o Fundo Monetário, instituições que exploraram os povos. A Celac deve ser uma entidade que outorgue uma soberania qualitativa e quantitativa, que vá desde o México até o Chile, formalizando a natureza desta libertação nas compras de armas, a dependência na tecnologia única. Creio que até lá há um caminho de diversificação e condução responsável da política internacional.

Por que Galo Mora Witt? A arte da política
Galo Mora Witt parece mergulhar na música quando fala de política. Compõe suas frases e em seguida as canta. Floridas. Escolhe frases célebres, nas quais faz convergir seu pertencimento político e seu compromisso com a cultura. É inevitável, foi músico profissional até 2007. Dois anos mais tarde, em 2009, se converteu no secretário pessoal do presidente do Equador, Rafael Correa. Não é o único auxiliar artista. Javier Ponce, atual titular do Ministério da Defesa, é poeta.
Se ufana de sua procedência e sua relação com a política a partir da arte e da academia. Além de músico, é graduado em Antropologia, com especialização em Gestão Cultural, pela Universidade Salesiana. E estudou Direito na Universidade Central do Equador e Literatura nas universidades Católica e Andina. “Nós não somos políticos de carreira, não nos graduamos em organizar nada, viemos de outros círculos”, se justifica.
Foi o auxiliar correísta que mais tempo permaneceu em seu cargo, desde ali defendeu com veemência a atual gestão de governo. Este ano (2011), o mandatário lhe pediu que assumisse o cargo de presidente da Aliança País, o partido governista do Equador.
Rafael Correa mantém cerca de 80% de apoio popular a pesar de ter enfrentado as corporações em diversos setores, dentro e fora do Equador, adverte em diálogo com Página/12 este artista admirador do poeta argentino Atahualpa Yupanqui e do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Sem dúvida, uma peça chave para os governistas se se candidata nas próximas eleições presidenciais de 2013.
Com convicção, Galo Mora pinta a figura do presidente do Equador: “Rafael exige o que dá. É imensamente exigente mas profundamente humano. Pode estourar rapidamente, ao mesmo tempo pode refletir e tem um grande senso de humor”.

(*) Entrevista traduzida originalmente pelo jornalista Jadson Oliveira, no blog Evidentemente.

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