Por Maurício Colares
Las Madres fueron como una luz en el cielo negro.
Osvaldo Bayer
Na semana passada, em uma discussão na Universidade de Buenos
Aires sobre a questão da luta contra a minimização e esquecimento dos crimes
contra a ditadura militar, dizíamos que a diferença entre Brasil e Argentina, o
que poderia se estender a todas as outras nações da América do Sul quando
comparadas nos termos desta questão, era muito simples e chamava-se: Mães da
Praça de Maio. Como disse recentemente o poeta Juan Gelman: “Elas foram a única
resistência sólida e constante ao largo de todos estes anos. As Mães não
permitiram que este tema [da memória e da justiça] caísse no esquecimento”.
Desde aquele 30 de abril de 1977, no qual Azucena Villaflor
propôs reunirem-se na Praça de Maio para forçar que o genocida Videla as
recebesse, quando ainda acreditavam “que ele era um homem”, até hoje, toda
semana, sem exceção, todas as quintas à tarde estão lá com seus lenços brancos
na cabeça numa luta incaudiclável contra o genocídio, contra o esquecimento,
contra a tortura e a morte, contra o desaparecimento de 30 mil cidadãos durante
a ditadura cívico-militar argentina (1976-1983).
Nessa singular trajetória na luta contra o “Gran Olvido”,
quando Villaflor, Esther Ballestrino e Maria Ponce de Bianco, entre muitas
outras, numa hedionda covardia dos ditadores, se juntaram aos seus filhos na
lista dos desaparecidos, as Mães da Praça de Maio venceram o próprio medo e se
converteram no mais ativo grupo de oposição à ditadura. E, se como diz
Montalbán, “a primeira vítima de uma guerra é a verdade”, o que pode ser
estendido às ditaduras, massacres e genocídios, enquanto Clarín, La Nación e La
Razón, respaldados pelos empresários e pela própria Igreja, massacravam a
realidade, com audácia, coragem e astúcia, elas souberam criar redes de
informação, investigação e comunicação e fizeram saber ao mundo os crimes de
lesa humanidade cometidos na Argentina.
Com a democratização do País, as Mães seguiram e, sempre com
independência e posição firme, rechaçaram a minimização da CONADEP (Comisión
Nacional sobre la Desaparición de Personas) que apresentou, em 1984, como sendo
somente 8 mil o número de desaparecidos durante a ditadura. Vibraram com a
condenação de Videla e Massera a prisão perpétua, em 1985, no governo de Raúl
Alfonsín. Se indignaram com a promulgação das leis de Obediência Devida e Ponto
Final, em 1987, no governo do mesmo Alfonsín, que deixava os chamados
participantes intermédios dos crimes hediondos livres de julgamento.
E depois, durante o imoral retrocesso nos famigerados tempos
de Menem, não se desanimaram e continuaram sem trégua o combate pela Memória,
pela Verdade e pela Justiça a partir dos Julgamentos Populares. A tradicional
Marcha da Resistência, que era organizada anualmente desde a ditadura, só foi
finalizada em 2006, durante o governo de Néstor Kirchner, quando as Mães e Avós
da Praça de Maio viram que não era mais necessário o combate, mas uma parceria
com um governo democrático que as ouvia sempre e que estava também interessado
em intensificar a busca pelos desaparecidos, em levar a julgamento os militares
acusados e investigar as mãos civis nos crimes praticados durante a ditadura,
mesma linha e parceria em que veem assumir hoje a presidenta Cristina Kirchner.
Depois de tanto retrocesso, o impulso dado por Néstor ao
declarar a nulidade das leis de Ponto Final e Obediência Devida, seguida da
promulgação pela Corte Suprema do País da imprescritibilidade dos crimes de
lesa humanidade, da consideração aos indultos de Menem como inconstitucionais
pela Câmara de Cassação Penal e, finalmente, a instituição do dia 24 de março
como Dia Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça, tudo no mesmo ano de
2006, foi fundamental para pôr em prática a consigna das Mães e Avós de
julgamento e condenação para todos os envolvidos em crimes de lesa humanidade
durante a ditadura cívico-militar. Na atualidade, existem 1.589 imputados entre
militares e civis envolvidos em crimes durante o período, destes 753 estão
sendo processados e 82 já foram condenados. 14 julgamentos estão transcorrendo
hoje no País.
Assim, depois da coragem e perspicácia necessárias para
atravessar os perigos das tormentas videlianas, se não sabiam antes, agora há
muito já tinham aprendido que, como diz Karl Marx no 18 Brumário, sempre
existem os “representantes políticos e literários de uma classe para a classe
que representam”, e que, nesse caso, continuaram – e continuam, sempre que
aparece alguma oportunidade – representando-a mesmo após decretado o fim da
ditadura.
As Mães e Avós seguiram fazendo uso de uma forma de linguagem
que leva uma fundamental concretitude às palavras. No magnífico filme de David
Blaustein, Botín de Guerra, uma das filhas de desaparecidos, encontrada pelas
Avós, se refere à “solidariedade” destas e faz uma observação: “o que essa
palavra significar hoje”. É isso, o que as Mães e Avós da Praça de Maio fazem é
não deixar que palavras como “liberdade”, “luta”, “solidariedade”,
“democracia”, “memória”, “verdade” e “justiça” tenham o sentido falseado pelo
mero uso do significante nas penas a serviço do despotismo e da tirania e
preservar-lhes o sentido numa luta prática pela vida que se atualiza e renova
todos os dias. Como ouvimos ontem no texto Blancos Pañuelos, do maestro Javier
Zentner num recital pela histórica data: “Esses lenços brancos, que sempre
tiveram problemas com as palavras.”
Um exemplo dessa linguagem corporificada são os discursos de
Hebe de Bonafini, presidenta das Mães. Como a descreveu Victor Heredia numa
carta pública a meados do ano passado: “Essa mulher simples, comum como minha
própria mãe, de língua rápida e popular nos mostrou o caminho a todos, aos
pusilânimes e aos indecisos, aos distraídos e aos inconscientes de toda consciência
cidadã, humana e solidária.” Numa continuação a Heredia, quando se fala com
Bonafini até parece que estamos conversando com uma velha tia politizada, que
não se quer um símbolo, um baluarte ou algo parecido, e que conversa com todos
que lhe dirijam a palavra sobre os temas reais e presentes, seja a expropriação
da YPF, seja a crise econômica mundial, seja os passos do Brasil na luta contra
a infame anistia aos torturadores. Com sua verve irônica, zombeteira e
perspicaz, aos 83 anos, até palavrões incorpora em seu discurso, como o fez na
quinta passada ao se referir ao passado, quando “o mundo se calava, quando
diziam que nossos filhos eram terroristas, quando a muitas Mães lhes
preguntavam e diziam ‘meu filho não fez nada’. Sim que fizeram, caralho, e
muito e por isso deram sua vida!”.
E assim se pode dizer que, se nem todas as Mães tinham uma
percepção ou envolvimento político, como tinham a maioria das 14 que iniciaram
tudo, se não era o comum de suas vidas cotidianas, por suas posturas éticas diante
da vida, se pode perceber porque deram origem a filhos tão atuantes e
comprometidos com os princípios que levaram a ditadura cívico-militar a
persegui-los, torturá-los, matá-los e fazê-los desaparecer. E por essa
eticidade, assim que tomaram consciência da situação hedionda em que o País
vivia, expandiram sua luta para além do luto e dor familiar, esgarçando uma
intempestiva potência de agir na luta pelos direitos humanos que hoje reverbera
para toda a América Latina e, se pode dizer, para todo o mundo.
Em todos esses anos, as Mães seguiram numa linha contínua de
atuação que se atualizava a cada momento, com posições advindas sempre da
integridade de sua trajetória, de um pensamento crítico e da percepção de que a
questão não é reparar o passado, mas potencializar um presente real. Como diz
Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio, os militares “já
haviam cumprido com o seu objetivo: a entrega econômica do País havia ocorrido
perfeitamente bem, havia sido implementado um crescimento enorme da dívida
externa e o País tinha caído numa deblaque econômica espantosa”. Assim, além
das questões ligadas diretamente aos crimes praticados no passado, se envolvem
nas lutas políticas e sociais do presente. E é com esse sentido que cerca de
dois meses atrás vimos o juiz Baltazar Garzón sentado entre Bonafini e Carlotto
na abertura dos trabalhos do Congresso argentino, da mesma forma que aplaudiram
a expropriação da YPF por Cristina, da mesma forma que, na quinta-feira dos 35
anos de marcha, levavam a faixa “Las Malvinas son Argentinas” e que no outro
dia no estádio do Velez Sarsfield, juntamente com as Avós, estavam presentes no
grandioso ato de Cristina pelo Dia dos Trabalhadores e pelo aniversário da
vitória de Néstor em 2003.
Ademais de serem conhecidas e respeitadas em todo o mundo,
como não pretendem ser reconhecidas apenas como um símbolo discursivo, há muito
que as Mães vêm se organizando como uma instituição atuante em setores
estratégicos. “As mulheres da Holanda nos escreveram e nos disseram 'estamos a
sua disposição', e elas juntaram o dinheiro para que tivéssemos a primeira
casa”, lembra Hebe de Bonafini sobre como aproveitaram o Mundial de 1978 para
fazer contato e expandir a luta. Desde essa casa, a Associación Madres de Plaza
de Mayo seguiu até a fundação de uma universidade popular, em torno do qual
passaram a ser incorporados e criados muitos outros projetos. “Nossos filhos
haviam nos ensinado o valor da solidaridade. O valor único da vida e o amor à
educação. Assim, pouco a pouco fomos plasmando a ideia de começar os cursos e
um pequeno café literário, para logo dar o passo de criar-parir uma
Universidade Popular”, conta Bonafini ao jornal Página 12. Junto a esta foram
criados também uma livraria, uma biblioteca, um periódico, uma editora, uma
rádio e, este corrente ano, um bar cultural, todos como espaço para uma
“quantidade incrível de projetos com os companheiros das organizações sociais”.
São 35 anos de vida, paixão e luta, e se se observa que
muitas dessas mulheres já eram velhas quando organizaram as primeiras marchas
na Praça de Maio, é impressionante a vivacidade com que estão lá hoje e como se
envolvem em todas as manifestações sociais. As Mães têm ligação com inúmeras
organizações sociais e ONG's de toda a Argentina e de outros países, tem
relação de amizade e parcerias com uma infinidade de artistas, políticos e
intelectuais de todo o mundo e a quantidade de teses, filmes, livros, músicas,
pinturas, todos os trabalhos sobre elas é hoje impossível de catalogar dada a
abrangência e grandiosidade. E sua luta hoje é pela Memória, a Verdade e a
Justiça dos que tombaram na luta durante a ditadura, assim como também carregam
nestas três palavras a luta dos trabalhadores, dos explorados e excluídos, a
luta pelos serviços públicos indispensáveis, por um mundo melhor. Como
sintetizou Inés Vásquez, reitora da Universidade Popular Madres de Plaza de
Mayo: “As Mães assumem o antimperialismo como prenda de unidade
latino-americana e o socialismo como modo de terminar com o sofrimento múltiplo
e máximo do sistema capitalista”.
Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari falam de que “há
casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude mas, ao contrário, uma
soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de
graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam
para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras”. A atuação das Mães e
Avós da Praça de Maio é uma visível e táctil realização desse enunciado na
vitalidade de existir. Como disse Cristina no ato de Velez: “Néstor está [no
estádio]. Los 30.000 também. Mas o mais importante é que estão vocês Mães e
Avós e milhares e milhares de jóvens que se envolvem na luta política”. E para
elas, que sempre estão envoltas com cantores e poetas, deixamos aqui mais uma
vez as palavras do poeta espanhol Antonio Gala: “Na Praça de Maio, porque lhes
deu seu nome, a liberdade sorri. Que a vida lhes bendiga Mães da Praça de
Maio.”
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