Anunciado como o “julgamento do século”, o mensalão, um caso
de pouca expressão jurídica, galvanizou o Supremo Tribunal Federal (STF). Cada
ministro deslocou seus melhores quadros para, com lupa de aumento, não deixar
escapar uma vírgula dos autos. Isso quer dizer que o julgamento será técnico?
Difícil dizer, mas não é impossível. As duas mais poderosas forças vivas do
Brasil estão em confronto. No ataque, os mais importantes veículos de
comunicação, em campanha aberta, vocalizam e turbinam a opinião pública. Na
defesa, o pico da pirâmide do poder político, ou seja: o governo central do
país.
Nesta entrevista, um dos acusados, o deputado federal João
Paulo Cunha (PT-SP) mostra seu inconformismo com a pressão sobre os ministros
do STF — já chamada por um deles de “faca no pescoço”. Cunha, que já presidiu a
Câmara dos Deputados e a importante Comissão de Constituição e Justiça,
descarta qualquer comparação do processo em que ele é réu com o recente
escândalo que envolve o senador Demóstenes Torres e o eclético Carlinhos
Cachoeira. A diferença fundamental entre a acusação contra petistas e as
demais, diz o deputado, é que no seu partido ninguém é acusado de utilizar
dinheiro público para enriquecimento pessoal, mas para pagar despesas de
campanha.
O erro do PT, partido que Cunha ajudou a fundar em 1981 na
cidade de Osasco (SP), em sua visão, já foi admitido pela legenda e diz
respeito ao uso de recursos não contabilizados no financiamento de campanha, o
chamado “caixa dois”. Já as acusações de compra de apoio político na base
aliada para aprovação de projetos do governo, diz ele, não têm nenhuma
comprovação. “Como eu poderia participar de um esquema para votar com o governo
se eu era presidente da Câmara e nem votava?”, questiona. O deputado é
categórico em afirmar que não houve mensalão.
O caso de Demóstenes é emblemático para o deputado, uma vez
que o senador é conhecido por interpretar o papel de guardião da ética,
apontando o dedo a cada deslize do governo. O perfil é o mesmo que o PT
mostrava quando estava na oposição ao governo. Esse, na opinião do deputado, é
outro erro "reconhecido e superado pelo partido".
No STF, o deputado é acusado de receber R$ 50 mil reais para
favorecer uma empresa de comunicação em licitação da Câmara. Sua explicação é
que o dinheiro foi repassado pela direção do PT para pagar pesquisas eleitorais
em São Paulo, nas eleições municipais de 2002. Mas o mesmo clamor popular que
faz o político sentir-se julgado antes de apresentar sua defesa, elegeu-o como
deputado federal em 2010 e, segundo ele, torna os legisladores reféns da
demagogia ao criar e aprovar leis que sabem ser inconstitucionais, mas que
levam até o fim da tramitação para agradar seus eleitores.
Tais leis são, depois, enviadas ao Judiciário, que na maioria
das vezes as julga inconstitucionais. O motivo disso, na visão de Cunha, é que
a Justiça tem a incumbência e a capacidade de fazer análises frias das matérias
que julga, enquanto no congresso prevalece “o calor da irracionalidade”. O
deputado presidiu a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara em
2011, mas admite que a função de julgar a constitucionalidade das leis
propostas nem sempre é seguida com rigor pela comissão.
Apesar de afirmar ser favorável à Lei da Ficha Limpa (e ter
defendido sua aprovação na Câmara), Cunha diz que a lei comete um erro que será
revelado pela história ao impedir que pessoas condenadas em segunda instância
se candidatem. O trânsito em julgado seria a única opção válida, uma vez que
não existe a possibilidade de ressarcir o impedimento à eleição. Eleito pela
primeira vez como deputado federal em 1994, o petista deverá concorrer à
prefeitura de Osasco nas eleições de 2012. Presidiu o PT no estado de São Paulo
entre 1995 e 1997.
ConJur Qual é a diferença de paradigma entre as acusações que
o envolvem no caso do mensalão e as que envolvem o senador Demóstenes Torres?
João Paulo Cunha É o paradigma da lei: do Código Eleitoral
para o Código Penal. O erro cometido — e corrigido — pela direção do PT no
episódio do mensalão foi, fundamentalmente, um erro político já admitido pelo
PT por conta do sistema de financiamento de campanha que nós temos no Brasil. O
erro político foi utilizar recursos não contabilizados, ou “caixa dois”, para
fazer campanha eleitoral ou preparação de processos eleitorais. A diferença
entre este caso e o do Demóstenes ou as crises que invariavelmente envolvem
outras pessoas e outros partidos é que, no PT, não houve enriquecimento
pessoal. Não há dinheiro público transferido para contas privadas. Não há,
entre todos os réus do mensalão, um acusado de apropriação particular de
recurso. O único caso, que, por causa disso, está fora do processo, é o caso do
Silvio José Pereira, o Silvinho, acusado de ter recebido uma Land Rover de um
construtor da Bahia. Em resumo: cometemos infrações de caráter administrativo e
eleitoral. No caso Demóstenes/Cachoeira parece que não é a mesma coisa.
ConJur O senhor é acusado de participar do mensalão. Um
esquema para arrecadar fundos e repassar isso para comprar o apoio de uma base
política. Qual é a sua explicação?
João Paulo Cunha Isso não faz sentido. Como eu poderia
participar de um esquema para votar com o governo se eu era presidente da
Câmara e não votava? Outra coisa é que seria ridículo se eu tivesse que receber
dinheiro do Lula para votar nele. Em relação aos partidos da base, não há
nenhum corte linear nas votações havidas entre 2003 e 2004, quando disseram que
havia o mensalão. Nas grandes matérias votadas, nós tivemos apoio majoritário
no PSDB e no Democratas, que era PFL. Por que precisaria pagar? Os partidos
votaram porque era matéria de conteúdo, de interesse de Estado, como Reforma da
Previdência e Reforma Tributária. Por que o processo só envolve líderes e
presidentes dos partidos PL, PT, PTB? Porque era um acordo partidário. Não
tinha nada a ver com votação, não há nenhuma disparidade nos votos dos
deputados dos respectivos partidos. Pode consultar os anais da Câmara. Para
valer a tese do "mensalão" o comportamento do voto teria que ter
mudado naquele período.
ConJur Não existiu mensalão?
João Paulo Cunha Claro que não. Se as pessoas prestassem
atenção nas contradições, entenderiam. A jornalista Eliane Cantanhêde aponta,
no livro que escreveu sobre a vida do ex-vice-presidente José Alencar, um
acordo feito entre PT e PL como uma coisa altiva de Alencar. Ela conta que, em
um apartamento em Brasília, o PT combinou que ia passar um valor para o PL, e o
José Alencar estava em outra sala com o Lula. No livro é apresentado como algo
positivo, um acordo. No processo do mensalão, no entanto, isso serve como
argumento para condenar os envolvidos.
Veja: o procurador, ao fazer a denúncia, separou o meu caso —
que não tem nada a ver com o mensalão. Ele sustenta a denúncia baseado em um
contrato feito entre a Câmara dos Deputados e a agência de publicidade. Quando
eu tomei posse, em 2003, já estava em vigência um contrato com a agência. Logo,
no primeiro ano, foi utilizada a agência que o ex-presidente da Câmara Aécio Neves
tinha contratado. Para 2004, foi aberta uma nova licitação, autorizada pelo
primeiro secretário da mesa. Era um contrato de R$ 10 milhões, em que R$ 7
milhões foram gastos só com veiculação. A Globo recebeu R$ 2 milhões, a Veja
ficou com outra parte, assim como a Folha de S.Paulo, o Correio Braziliense, o
Estado de S. Paulo, a IstoÉ, a Época, e outros veículos, pois compramos espaço
para publicidade em que tentamos dar um tom universal para divulgar na imprensa
tradicional as matérias que votamos na Câmara.
O Ministério Público pegou a análise provisória desse
contrato, feita pelo Tribunal de Contas em agosto de 2005, e sustentou que
havia algumas irregularidades na licitação e na execução do contrato. Essas
alegadas irregularidades foram usadas na denúncia para suscitar três crimes:
peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Veja bem: uma suposição
feita em cima de um relatório provisório. O relatório definitivo saiu e não
aponta nenhuma irregularidade. Ora, se a base da denúncia deixou de existir,
porque o TCU superou a suspeita, do que estamos tratando então?
ConJur O senhor disse que não existiu o mensalão. O que
existiu?
João Paulo Cunha Foi um financiamento irregular de campanha
do PT e dos aliados. Funcionou com recursos não contabilizados, não declarados,
para o PT e para os partidos aliados. Não tem nenhuma prova do mensalão [como
esquema de compra de apoio no Congresso]. Ninguém aponta onde entrou o dinheiro
e onde ele influenciou em alguma votação. Isso não foi mostrado. Sobre a
premissa fundamental da tipificação dos crimes, que é onde está a fragilidade
jurídica do caso, ninguém quer falar. Fora dos autos, fomos impedidos de
exercer nosso direito de defesa. Acusados e condenados por um vagalhão
emocional em que a vida real ficou em segundo plano.
ConJur Impedidos por quem?
João Paulo Cunha Por parte da imprensa. No episódio do
empréstimo do Banco Rural, o [José] Genoíno e o Delúbio [Soares] diziam que
pegaram dinheiro emprestado do banco e que o banco estava acionando o PT para
pagar. O PT pagou mês a mês e, quando quitou a dívida, disseram que o partido
estava querendo enganar a Justiça, o que não é verdade. É como diz o advogado
Mariz de Oliveira: "A mídia não se limita a informar: acusa. Não admite
defesa: condena. Não quer processo: pune. E o faz com provas, sem provas ou
contra as provas".
ConJur E o saque de R$ 50 mil que foi feito pela sua mulher?
Não foi recebimento de verbas ilícitas?
João Paulo Cunha Absolutamente. O procurador sustenta que,
para dar o contrato à empresa de publicidade, eu teria recebido R$ 50 mil. Mas
onde já se viu mandar a própria mulher para sacar um recurso irregular sabendo
que ela vai apresentar RG e tirar Xerox dos próprios documentos? Esses R$ 50
mil foram disponibilizados pela executiva nacional do PT para quatro pesquisas
na região Oeste de São Paulo, que é uma coisa muito natural em época de
eleição. O diretório nacional mandou o dinheiro para pagar as pesquisas. Eu
apresentei o recibo desse material e a tesouraria confirmou que mandou esse
recurso. Que crime pode haver nisso? Eu era da executiva nacional até 2002.
ConJur No processo do mensalão, as acusações são individuais,
e isso faz parecer que, para se defender, tenha ido cada um para um lado. Ou
seja, o grupo se desarticulou. Isso aconteceu?
João Paulo Cunha O processo criminal traz imputações
individuais. Então, cada réu responde por determinadas acusações. A defesa
pessoal é exigência do processo. Há também um arcabouço político que envolve o
episódio do mensalão, que é uma defesa coletiva. Eu e todos os réus insistimos
que não tem dinheiro público envolvido. Nesse processo, até a minha esposa teve
o sigilo fiscal quebrado, montaram um link de TV na porta da casa da minha mãe,
reviraram o meu sigilo telefônico, porque diziam que eu tinha relação estreita
com o Marcos Valério.
ConJur O senhor contratou a IFT e a empresa do publicitário
Marcos Valério para a sua campanha?
João Paulo Cunha O PT contratou e pagou a DNA para fazer a
minha campanha para presidente da Câmara. A IFT, que se chama Ideias, Fatos e
Textos, do jornalista Luís Costa Pinto, foi subcontratada em 2003 para prestar
consultoria de comunicação da Câmara, pelo valor de R$ 20 mil por mês. O Luís
Costa Pinto é um jornalista conceituado em Brasília e foi chefe de redação de
várias publicações. Era preciso ter alguém que ajudasse a fazer a ponte entre o
trabalho da Câmara dos Deputados e a imprensa e ele foi escolhido em uma
licitação da agência de publicidade que prestava serviços à Câmara. Por causa
dessa contratação, eu sou acusado de peculato, mas está provado que ele
trabalhava na Câmara dos Deputados. A própria imprensa é testemunha do trabalho
dele. É até ridículo falar que ele recebia e desviava o serviço para mim.
ConJur Disso, somos testemunhas. Falamos diversas vezes com
ele na Câmara. O acusacionismo tem alavancado carreiras. No entanto, parece que
esse modelo vem perdendo força. Muitos daqueles que apareceram como
celebridades fazendo acusações têm sido pegos atuando fora da lei. Esse é o
destino de quem segue o padrão “justiceiro”?
João Paulo Cunha O ex-ministro do STF, Sepúlveda Pertence,
certa vez, citou um jurista italiano chamado [Francesco] Canelutti, que dizia:
“O dramático do processo penal é que saber se se deve aplicar a pena é preciso
o processo. Mas o processo, pelo estigma que acarreta e os constrangimentos que
gera já é, em si mesmo, uma pena. Assim, com o processo começa-se por punir
aquele de quem se pretende saber se merece ser punido". Instaurado o
processo, o acusado já vira condenado aos olhos da multidão. É quando surgem as
aves de rapina.
Esses acusadores brincam com a reputação das outras pessoas
como se fossem descartáveis. Gostam de empurrar quem está no contrapé. Disparam
acusações contra pessoas e instituições sem nenhuma análise da consequência que
isso pode ter. Somente para se vangloriar ou por qualquer outra razão, para
conseguir dez minutos de glória em uma entrevista na imprensa.
ConJur O senhor concorda que o PT cresceu com isso?
João Paulo Cunha Eu concordo que o PT, em muitos momentos,
ajudou a alimentar esse tipo de relação. Mas isso não significa que o PT
precisa concordar com isso. Podemos ter errado em uma época, mas não podemos
continuar no caminho errado. O problema seria permanecer no caminho errado. Nós
[do PT] já corrigimos isso, que foi um erro, causado pela busca exacerbada pelo
holofote, pela aparição fácil, da nossa sociedade do espetáculo. Nós vivemos em
um mundo de muita aparência.
ConJur Esse sistema que autoriza o candidato a buscar
dinheiro para financiar a sua campanha é que gera essas situações?
João Paulo Cunha Não são todas as situações, mas nós temos um
problema de fato no nosso sistema eleitoral. Fora do Brasil, quando se fala
sobre esse sistema, as pessoas de outros países riem, porque é uma coisa
singular. Sistema de lista aberta com financiamento privado de campanha é uma
coisa única no mundo.
ConJur Se os parlamentares sabem que esse sistema é fadado a
dar problemas como esses, por que não mudá-lo?
João Paulo Cunha Há quem se oponha por convicção e quem se
opõe por conveniência. Essa composição de interesses ou de opiniões impedem que
uma mudança prospere. Há uma visão conservadora de que o cidadão precisa votar
em um candidato, precisa escolher o seu candidato, o que sustenta a ideia de
uma lista aberta. Esse sistema obriga o próprio candidato a captar recursos.
Depois, há a demonização da política, pela qual o cidadão não pode permitir que
o político seja financiado com a verba do Estado, à bordo da visão de que o
mundo da política é uma coisa suja e os políticos desonestos. Mas talvez a
maioria esteja apenas acomodada e não vê motivos para mudar.
ConJur De onde vem a percepção de que o mundo da política é
um mundo sujo?
João Paulo Cunha O advento da Sociedade do Espetáculo, da
década de 1980 para cá, e, no caso particular do Brasil, com o fim do
represamento das manifestações por parte da ditadura, com todo o glamour dado
às notícias negativas, acabou trazendo um olhar mais duro para a ação política.
A política é um mundo reduzido, uma vez que você escolhe 513 representantes de
190 milhões de pessoas. Nesse mundo reduzido, passou a ser, para a imprensa, em
particular, uma notícia bastante forte qualquer desvio de apenas uma dessas 513
pessoas. Qualquer desvio é uma notícia forte para o convívio da população, que
engatinha ainda no sentido de buscar os seus direitos. As notícias são
demasiadamente reduzidas quando apontam coisas positivas. A visão média é de
que na política não tem nada positivo e não é verdade. Aliás, na história da
humanidade não há saída que não seja pela política. Eu acho que uma parte da
mídia faz uma edição das crises, ela edita as crises.
ConJur Isso que a imprensa faz não é refletir a expectativa
da população?
João Paulo Cunha Nem sempre. Mas ainda que fosse, se formos
seguir o senso médio da população, ficaremos impedidos de apresentar ideias e
trabalhar para que essas ideias tornem-se majoritárias na sociedade. Se você
perguntar, a maioria da população é a favor da pena de morte. Só por isso eu
teria que concordar? Claro que não. A imprensa, por mais interesse comercial
que tenha, o papel da informação não é editar e trabalhar pelo senso comum, é
informar. Agir, deliberadamente, com o propósito de interferir na política do
lado de um partido ou de outro não é defensável. A menos que assuma
publicamente sua preferência partidária.
ConJur Mas os senhor não acha que o problema é o sistema e
não a mídia?
João Paulo Cunha Quase sempre, a ponta econômica envolvida
[em um escândalo] tem uma certa relação com o tipo de financiamento de campanha
que se estabelece. Em alguns casos, chega até a ser orgânico, como, por
exemplo, o suplente de um senador que praticamente financia a campanha e
adquire a primeira vaga de suplente. Isso acontece em diferentes momentos. Há,
de fato, um problema em nosso sistema eleitoral e partidário em relação ao
financiamento de campanha. Hoje é o Demóstenes, amanhã deve ter outro e depois
vai ter outro. Em outros lugares do mundo tem casos também, mas é mais raro. Na
década de 1990, o Helmut Kohl, que foi chanceler da Alemanha e responsável pela
reunificação da Alemanha, foi afastado por ter sido acusado de uso indevido de
US$ 3 milhões para financiamento de campanha. Como consequência, até os bens
pessoais dele foram penhorados para pagamento dessa dívida. É muito raro
acontecer isso naquele tipo de sistema, porque o parlamentar na Alemanha não se
envolve com finanças de campanha, o deputado e senador alemão não mexe com
dinheiro. O sujeito pode ser eleito por conta da relação que ele tem, por
exemplo, com os produtores da indústria química, mas, para a disputa eleitoral,
o financiamento é público. Ou seja, o problema mais sério é estrutural, mas é
evidente que a mídia às vezes age como torcida organizada de acordo com seus
interesses.
ConJur Pelo que o senhor falou, a manutenção desse sistema
parece ser ruim para o político, para a população e para o sistema político
brasileiro como um todo. Para quem é interessante a manutenção dele?
João Paulo Cunha Complementanfdo o raciocínio: deve ter uma
parte da classe política que se contenta e se beneficia com esse sistema. Acho
também que tem um setor da economia que não se interessa pela mudança, até
porque está mais ou menos assentado sobre essas bases, assim como uma parte da
mídia, que prefere esse sistema por interesse legítimo do ponto de vista
doutrinário ou por um sentimento de que esse sistema é um manancial de crise e
de chamadas de primeira página.
ConJur Até onde o senso comum alcança instituições como o
Ministério Público e o Judiciário?
João Paulo Cunha Esse senso comum começa a esbarrar no
Judiciário que, pela sua natureza, exige um ambiente mais frio para a análise
do que julga. A base de decisão do juiz são as leis e a sua própria
consciência. É claro que ele vive e interage no mundo, mas temos de resguardar
o Judiciário para que as decisões não sejam contaminadas pelas circunstâncias.
A história da humanidade mostra um número enorme de injustiças cometidas quando
os julgadores cedem ao clamor público. O Judiciário não pode correr o risco de
deixar seus julgadores serem contaminados pelos gritos das ruas. O Ministério
Público tem evoluído, mas ainda há quem ceda ao jogo fácil da mídia. O
Legislativo é mais aberto a isso, mas isso faz parte da sua vocação e do seu
papel. É até legítimo que tenha o calor das ruas, porque os legisladores são
representantes do povo. O Executivo também.
ConJur Qual é o maior defeito da política: a corrupção ou a
incompetência?
João Paulo Cunha Os dois problemas são reais. Evidente que a
corrupção é uma chaga que precisa ser combatida e precisa ser extirpada do
nosso sistema. É um combate permanente. A incompetência gera outro tipo de
corrupção, porque a incompetência paralisa uma obra que, por exemplo, terá seu
valor reajustado, o que, no fundo, chega à mesma posição. Os dois problemas são
graves e precisam ser combatidos no serviço público.
ConJur Está havendo um superdimensionamento da corrupção? Uma
overdose de falso moralismo?
João Paulo Cunha Às vezes, mais transparência confunde-se com
mais corrupção. Mas é certo que nós vivemos um momento conservador na história
do mundo. O Brasil reflete esse momento também. Os alunos da USP, por exemplo,
ficaram com uma imagem ruim perante a sociedade como fumadores de maconha que
queriam o terreno da universidade livre para se drogar. Lógico que não foi
isso. A imprensa transformou o episódio de um aluno que se recusou a ser
revistado em uma prova de que a USP é um antro de maconheiros e contrários ao
policiamento. A invasão da reitoria não era nem só sobre a maconha e nem só
sobre o policiamento, tinha a ver com verba para a USP e com um novo modelo de
administração. Era uma pauta de reivindicações, mas ficou reduzida à questão da
maconha.
ConJur Como o senhor, réu do mensalão, é afetado pelo grande
acesso à informação e o poder de mobilização da internet?
João Paulo Cunha Eu sofro muito desde o advento do chamado
mensalão, porque não há nada mais duro para o homem ser acusado por aquilo que
ele não deve. E os amigos e os familiares também são afetados porque eles sabem
que há uma injustiça. Mas eu não fico parado sofrendo, eu tenho que enfrentar,
pois sei da minha inocência. Eu enfrento via rede, primeiro mostrando que eu
faço, permanentemente, no meu site, no Facebook e no Twitter. As pessoas veem
que eu não fico parado. Às vezes eu passo horas e horas respondendo de próprio
punho questionamentos que eu vejo que são sinceros.
ConJur O senhor diz que a imprensa dá pulso à inflação
acusatória de uma população desinformada. O candidato, para se eleger, não faz
a mesma coisa? E, ainda, uma vez eleito, ele corteja a população desinformada
aprovando leis que, quando chegam ao STF, são consideradas sistematicamente
inconstitucionais. Um levantamento nosso de quase dez anos mostra que das leis
que foram analisadas pelo STF, 83% delas são consideradas inconstitucionais.
João Paulo Cunha São leis das três esferas: municipal,
estadual e federal. O Legislativo no Brasil é sensível ao que acontece na
sociedade. Há uma necessidade de considerar que vivemos um momento conservador
e deseducador. A nossa Constituição é de 1988, tem 339 artigos e, em 24 anos,
já tem 70 emendas. A Constituição americana tem sete artigos, cerca de 230 anos
e só 27 emendas. Nós temos mais de 15 mil projetos de lei e, aproximadamente,
1.500 propostas de emenda à Constituição tramitando. O legislativo não foi sempre
assim. Agora há uma cobrança demasiada para que o deputado apresente projeto de
lei. Qualquer acidente que aconteça no Brasil, por uma coisa singular, vira
três ou quatro projetos de lei no dia seguinte. Há uma ideia de que todos os
problemas do Brasil podem ser resolvidos através da lei, mas não é. Alguém já
disse uma ocasião que o problema não é só ter lei boa, o problema é ter a
execução correta da lei. Ulysses Guimarães passou vários e vários anos na
Câmara e apresentou poucos projetos de lei.
ConJur Quando o Judiciário decide sobre temas caros ao
legislador, como a união civil entre homossexuais, rouba bandeiras de
candidatos ao Legislativo?
João Paulo Cunha O Judiciário está certo ao tomar algumas
posições que o Legislativo não tomou. Porque, se ele é provocado, tem que tomar
posição e, às vezes, a posição do Judiciário é mais importante, porque ele está
mais imune à pressão que está na rua. A Câmara não tomou posicionamento para
permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo porque a pressão conservadora
sobre os deputados os impediu de tomarem essa decisão. A decisão do Judiciário
é fria e reflete a Constituição.
ConJur Não seria papel do legislador colocar isso em votação?
João Paulo Cunha Nesse momento conservador, retrógrado, que
nós estamos vivendo, a opção do legislador, às vezes, é não decidir para não
piorar a situação.
ConJur Então o Judiciário pode representar melhor o povo que
o Legislativo? Porque, para chegar ao Legislativo você precisa estar apoiado em
uma ONG, uma associação ou um Partido. É preciso convencer uma massa de
pessoas. No Judiciário, qualquer um que ajuiza uma ação pode ter um direito
reconhecido.
João Paulo Cunha Não concordo, porque quem escuta mais o
cidadão são o Legislativo e o Executivo. O Judiciário não deve ser analisado só
sob esse ponto de vista, porque o acesso ao Judiciário era uma coisa muito
elitizada e se popularizou de 20 anos para cá. O conceito de busca no
Judiciário pelos seus direitos é muito recente para a maioria do povo. O
Judiciário deve continuar sendo provocado e isso não o leva à condição de
representante do povo, porque ele não pode fazer a lei ou executar uma
determinada demanda do povo. Isso continua sendo papel do Executivo ou do
Legislativo.
ConJur O Tribunal Superior Eleitoral, na regulamentação da
lei eleitoral, às vezes impõe regras que passam a valer “no meio do jogo”. Como
o senhor vê isso?
João Paulo CunhaEstá errado. O Tribunal Eleitoral não pode
tomar essas medidas, porque lei eleitoral tem um preceito constitucional que
tem que ser aprovada um ano antes da eleição. Não pode interferir na disputa
eleitoral, até para evitar casuismos. As normas que o Tribunal tem que expedir
em véspera de eleição são normas para organizar a eleição, não para interferir
na disputa.
ConJur O senhor é favorável à lei da Ficha Limpa?
João Paulo Cunha Não vou me posicionar contrário à lei da
Ficha Limpa, mas a forma encontrada é um erro que a história vai mostrar. Se um
homem que quer ser candidato tem uma condenação na segunda instância e prova
que aquela condenação está errada na terceira instância, não há como reparar o
dano que ele sofreu por não ter sido candidato. Seria como executar uma pena de
morte e depois descobrir a inocência do condenado. Prefiro aquele princípio que
diz ser preferível um culpado sem punição a um inocente preso. Não digo que
culpados devam ficar impunes, mas acabar com a vida de inocentes com esse
pretexto não condiz com o estágio civilizatório que pretendemos.
ConJur Como se aprovou isso? O Legislativo fez uma lei para
atender o clamor popular e jogou para que o Judiciário declarasse descabida?
João Paulo Cunha Estabeleceu-se que votar contra a lei
implicaria advogar em causa própria ou defender a impunidade. Mas é verdade
que, pressionado, o Legislativo decidiu mal. Nessas situações, o legislador
fica em uma situação delicada, porque não tinha como se colocar contrário à
lei. Não há ambiente para reflexão. Mas é fato que o Parlamento cedeu,
inclusive eu.
ConJur A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania não é
o órgão do Legislativo para impedir isso?
João Paulo Cunha Sim, e ela tenta fazer o máximo possível,
mas quando a matéria chega ao plenário, nem sempre prevalece a opinião da CCJ.
Prevalece o calor da irracionalidade. Dos 80% de leis que são consideradas
inconstitucionais pelo STF, cerca de 20% devem ser de iniciativa do poder
executivo.
ConJur Existem várias reformas sendo analisadas pelo
Congresso. Reforma política, tributária, do Código de Processo Civil e do
Código Penal, por exemplo. Há chances de essas reformas acontecerem?
João Paulo Cunha A reforma política eu acho difícil, porque
não há um ambiente nem no Congresso e nem fora do Congresso para sustentar a
opção por uma reforma na política. É um paradoxo. Mesmo quem critica o sistema,
quando você sugere mudar, fica contra a mudança. Gente que diz achar absurda a
relação obscura entre políticos e empresários são contra a mudança no sistema
que cria essa relação. Há dificuldade em formar maioria no Congresso e na
sociedade para sustentar isso. Mas tenho fé que isso vai mudar.
As outras reformas eu acho que nós vamos ter. Apresentaremos
um novo arcabouço de mudanças no Código de Processo Civil, que já está em
andamento bastante acelerado. O Código do Processo Penal também terá grandes
mudanças. Vamos fazer grandes mudanças na lei de licitações que já está muito
defasada. Nós tivemos que juntar quase 70 projetos que incidiam sobre a lei de
licitações. Já a reforma tributária tem sempre um conflito: o estado quer
receber mais do que o município, que quer receber mais do que a União, que quer
continuar centralizando os impostos, enquanto o cidadão e o empresário querem
pagar menos imposto. Não tem como fechar a conta, mas tem algumas coisas
urgentes, como a unificação de ICMS. Eu acho que nesse ano seremos muito
prejudicados por causa da atipicidade do ano, é um ano que tem eleição, a
Câmara tem uma atividade muito intensa até julho, depois suspende por causa das
eleições.
ConJur Algumas Propostas de Emenda à Constituição também
estão tramitando, como a PEC da Bengala, a PEC dos Recursos e a PEC que cria
mais TRFs. O senhor tem notícia da tramitação delas?
João Paulo Cunha Essas PECs são polêmicas. A PEC da Bengala
sofre uma pressão muito grande dos juízes de instâncias inferiores para manter
os 70 anos na aposentadoria compulsória. É um tema que mais cedo ou mais tarde
nós vamos ter que enfrentar, porque a expectativa de vida do brasileiro está
aumentando muito, muitos profissionais quando chegam aos 70 anos ainda estão
produzindo com um vigor da juventude, principalmente professores.
Sobre a PEC dos Recursos nós vamos ter muito debate ainda. É
uma tese que não é assimilada pelo conjunto do mundo jurídico, pois muda a
matriz da estrutura do direito do Brasil. Ainda não vejo sinais de votação
dela. Quanto à PEC que cria mais TRFs é preciso levar em conta que não basta
criar novos TRFs na Constituição. Tem que ter uma programação combinada com o
Judiciário e com o Executivo para você dar sequência a isso, para não parecer
demagogia do Legislativo.
Participaram da entrevista os jornalistas Alessandro Cristo,
Márcio Chaer, Marcos de Vasconcellos e Maurício Cardoso.
Por: Revista Consultor Jurídico
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