Doze anos atrás, um colega, que - por razões mais do que
óbvias - preferiu ficar no anonimato, entregou todo esquema de manipulação da
Revista Veja já àquela época. O caso teve alguma repercussão na incipiente internet,
mas logo, como tudo nesta vida, caiu no esquecimento. É com a memória do
brasileiro que a Editora Abril conta mais uma vez para se safar da mais nova
safadeza. Se depender da blogosfera progressista e dos sujinhos, acho que muito
há a ser lembrado. Para nós, a brincadeira está só começando... Veja a riqueza
de detalhes do texto abaixo:
"Talvez o fato de
trabalhar para a empresa que se acusa me faça cúmplice. No entanto, algum
lampejo de honestidade me ilumina a razão e, por isso, vos narro o que sei. Há
anos vivo os melindres da profissão e da filiação ao império Abril. É pena que
o colega Mário Sérgio (1) tenha contado tão pouco do que lá se passa. É pena
que tenha omitido detalhes importantes das trapaças arquitetadas pelos
arrogantes senhores do resumo semanal. A revelação de tais fatos certamente
macularia sua já arranhada reputação. Mas se a disputa se dá no campo da falta
de ética, é certo que será superado pelos senhores Tales Alvarenga e Eurípedes
Alcântara. (2)
De Mário Sérgio Conti tudo se pode dizer. Que é bruto com as
mulheres, que fuma demais e que obriga seus subordinados a coletar argumentos
para justificar falsidades. Dos outros dois, pode-se esperar ainda empáfia e
ignorância. O primeiro é capaz de recorrer ao Dedoc (3) para descobrir se
Vinícius de Moraes está vivo ou morto. O segundo, dublê de cientista e Don Juan
da casa, é capaz de fundir boi e tomate numa fantástica e exclusiva descoberta.
(4) Diagnóstico: a arrogância é tanta que não lhes cabe mais perder tempo com a
aquisição de conhecimento.
O garoto de recados da
Camorra editorial é o sr. Eduardo Oinegue. (5) Veja bem: Oinegue ao contrário
quer dizer Eugênio. O que significaria a eugenia para o império dos Civita?
Oinegue foi criado no laboratório da casa. Nunca trabalhou em qualquer outro
órgão de imprensa. Saiu diretamente dos bancos escolares para Veja. Mantinha os
contatos sujos com Cláudio Humberto (6), no ínicio da década. Hoje, chafurda na
lama das matérias plantadas, dos panfletos encomendados pelo governo.
No dia 2 de maio, Alvarenga recebe um telefonema do
"chefe supremo". O "filho do pato", alguém diz. Não, a
secretária é quem lhe passa a senha. É do "mata-ratos", diz. (7). O
diretor de redação está distante da sede naquele momento. O contato, no
entanto, é feito rapidamente. Um homem de confiança do presidente Fernando
Henrique Cardoso pede uma contrapartida. Afinal, a revista teria
"batido" indiretamente no governo ao espicaçar a festa dos 500 anos.
Alvarenga defende-se. Segundo ele, a revista "livrou a barra do governo"
ao insistir na teoria "Dinamarca". Trata-se da informação de que o
governo deu tantas Dinamarcas aos índios e beneficiou um mar de famílias com
novas doações de terra. O diretor afirma que o governo saiu
"limpinho" da história e que sobrou mesmo só para o
"paranaense", numa referência ao ex-ministro Greca. (8)
Do outro lado da linha, o senhor Matarazzo pede novamente uma
contrapartida. Alvarenga lembra que já se produz uma matéria sobre o MST, mas
que não sabe quando será publicada. "Agora", diz o emissário
governista, afirmando que "tudo já está acertado com o dono".
Alvarenga ri e pergunta se há qualquer encomenda. "Bota aí esse negócio da
Dinamarca. É um país titica, mas dá impressão boa". (9) Alvarenga dialoga
com Alcântara e decidem convocar "Oinegue-boy" para executar o
serviço sujo.
Começa rapidamente a
operação. Durante a semana, Oinegue repreende duramente um repórter que não
estaria "cooperando" para rechear o trabalho contra o MST. Discute-se
a capa. Dois ou três editores executivos oferecem sugestões. Oinegue fala em
"baderna", palavra sempre utilizada para desqualificar adversários de
Veja. Os iluminados do semanário não sabem, mas "baderna" era termo
freqüentemente utilizado pelo sociólogo Oliveira Viana e pelo pensador católico
Jackson Figueiredo, ideólogos do Integralismo, movimento de inspiração
nazi-fascista da década de 30. Usavam-no para caracterizar a "anarquia
liberal". Decidem que "tática" é palavra importante na chamada
"porque lembra futebol e fala fundo ao espírito brasileiro".
Alguém cita uma matéria sobre a Coréia do Norte. Oinegue
manda utilizar os termos "Coréia Comunista" e "morta de
fome". A revista precisa reforçar subliminarmente a mensagem contra o MST.
Escolhe-se uma foto de agricultores para ilustrar a matéria. A legenda é
"agricultura fracassada e crianças subnutridas: o país mais isolado".
Num telefonema à redação, Alcântara sugere o uso da palavra "fracasso e
fracassado". "Dá sempre certo. A Globo não cansa de usar o termo para
avacalhar com greves gerais. Desmobiliza os caras e fode tudo".
A baixaria continua. Nova reunião é marcada entre os chefes.
Uma repórter participa. A idéia é pintar o "vilão" da história. Não
existe fantasma sem cara. Stedile é o preferido. Alguém sugere colocá-lo no
"corpo de Guevara", outro sugere o corpo do cangaceiro Corisco.
Resolvem, por fim, realizar uma montagem em que o líder do MST aparece com uma pistola na mão. É um suposto James
Bond do mal. Alguém alega que "pode dar processo". "O dr. Civita
(10) diz que pode mandar bala", afirma Alvarenga. O chefe da arte morre de
rir ao ver o resultado. "Ficou bem bandido mesmo". Na página
anterior, o compenetrado Fernando Henrique Cardoso aparece em foto de gabinete.
Sério, parece zelar pela segurança dos brasileiros.
Pede-se a um repórter
que ouça vozes da condenação. "Ouve lá o Celso Bastos. (11) Pra tacar pau
na esquerda ele é ótimo, e sempre atende". O clima na redação não é dos
melhores. Arranja-se uma foto da Folha Imagem, com um suposto sem-terra
chutando uma porta. A matéria vai sendo escrita e reescrita. Há uma frase
encomendada, introduzida de última hora: "(Cria-se) assim um mundo em que
o MST desempenha o papel do Bem, num cenário maniqueísta em que o governo FHC é
o Mal".
Dois repórteres são
muito elogiados pelo editor executivo pelo empenho. Um deles afirma que o termo
"baderna" caiu muito bem na história. É uma pena que não tenha se
divertido antes. Baderna é o nome de uma dançarina que despertou paixões em sua
passagem pelo Rio, em 1851. Os rapazes da época faziam ruído durante suas
apresentações. Baderna, doce baderna. Dizem que era linda.
Veja o a Globo tratou o MST no Abril Vermelho
do ano seguinte
Notas:
* Esta carta, redigida
por um funcionário da Editora Abril que prefere se manter anônimo, por razões
óbvias, circulou na Internet no mês de maio de 2000.
1 - Mario Sergio Conti
foi diretor de redação da revista Veja entre 1991 e 1997 e é autor de Notícias
do Planalto - A imprensa e Fernando Collor, Companhia das Letras, São Paulo,
1999
2 - Tales Alvarenga é o atual diretor de redação de Veja e
Eurípedes Alcântara é o seu redator chefe
3 - Departamento de Documentação da Editora Abril
4 - Barriga histórica de Veja, baseada em falsa matéria
científica que "demonstrava" a possibilidade de fusão genética de
animais com vegetais. A matéria, copiada de uma revista estrangeira, havia sido
publicada como brincadeira de 1º de abril.
5 - Eduardo Oinegue é um dos cinco editores executivos de I
6 - Cláudio Humberto Rosa Silva foi o porta-voz do presidente
Fernando Collor
7 - Ministro Angelo Andrea Matarazzo, chefe da
Secretaria-Geral de Comunicação de Governo da Presidência da República
8 - Ex-ministro do Esporte e Turismo Rafael Valdomiro Greca
de Macedo, coordenador dos festejos oficiais dos 500 anos
9 - O trecho publicado, na página 47, ficou assim:
"Depois de receber 22 milhões de hectares de terra, área equivalente a
cinco Dinamarcas, o MST acrescentou um item novo ao seu tradicional discurso.
Agora, a tônica das reivindicações dos sem-terra deixou de ser a distribuição
de terras e passou a ser distribuição do dinheiro público - daí a invasão dos
prédios do Ministério da Fazenda e da sede do BNDES, no Rio de Janeiro"
10 - Roberto Civita, presidente e editor de Veja
11 - Celso Bastos é professor de Direito Constitucional em
São Paulo
Obs: O resgate deste
texto foi feito por Ester Alves
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