domingo, 28 de agosto de 2011

Delfim Netto e Luiz Gonzaga Belluzzo: Fé e faca amolada

Na manhã da quarta-feira, 17 de agosto, a revista Carta Capital reuniu Delfim Netto e Luiz Gonzaga Belluzzo para um debate sobre a crise financeira mundial e os impactos no Brasil. Como era de se esperar, a conversa foi muito além e virou uma verdadeira aula de economia e história. Os principais trechos a seguir:
 
Luiz Gonzaga Belluzzo: Seria bom ter como ponto de partida o seu artigo de hoje na Folha. Você fala do ambiente político criado quando são tomadas as decisões econômicas e conclui que, na verdade, vivemos no mundo, ou ao menos nos Estados Unidos, mais uma questão de descoordenação política e miopia do que propriamente econômica.

Delfim Netto: Os Estados Unidos introduziram uma disfuncionalidade no sistema que não tem como decidir. O que acontece? Não adianta dar incentivos, que são necessários, mas insuficientes, se o sujeito que recebe os incentivos não acredita neles. Se o pessoal da produção não acredita que terá demanda lá na frente e se o pessoal do trabalho não se vê empregado no futuro. Nestes casos, o sujeito recebe um benefício e senta sobre ele, que é o que se passa neste momento. As empresas americanas têm 1,5 trilhão de dólares em caixa e não investem...

LGB: ...E os bancos têm 1,4 trilhão de reservas e não emprestam.

DN: Por quê? Porque falta confiança. O circuito econômico foi interrompido e está difícil fazer pegar outra vez. A sorte do Brasil foi ter conseguido engrenar com maior rapidez, mas, agora que estamos aqui nós dois, podemos contar até alguns fatos interessantes. Lembra daquela reunião que o Lula providenciou na segunda-feira trágica, após a quebra do Lehman Brothers. Estávamos eu, você, o Guido, o Lima, do Banco do Brasil, o Meirelles...Quem mais?

LGB: Eram estes. Foi na sede do Banco do Brasil.

DN: Naquele instante foi decidido que era preciso baixar a taxa de juros... Mas o governo depois afrouxou.

LGB: Foi decidido com a anuência do Meirelles.

DN: Juntamente com o Meirelles. Mas até entendo. Ele andava muito assustado com o que aconteceu com o pessoal que tinha feito o Proer. Estavam todos com os bens interditados. Ele, na verdade, não se sentia em condições de fazer o que tinha de ser feito. Para mim, Belluzzo, está claro que poderíamos ter reduzido os efeitos da crise no Brasil a quase nada. O País tinha musculatura para substituir o problema externo de financiamento,pois sabíamos que iria durar pouco. Se as medidas tivessem sido tomadas, hoje a gente ia discutir se a taxa de juros seria de 6,75% ou 7%, não 12,5%. Isso mostra como são falsas todas as teorias para explicar por que temos essa taxa de juros teratológica. Ela é resultado de equívocos que acumulamos ao longo do tempo.

LGB: Isso nos leva a questionar a forma como é exercida a independência do Banco Central. Você vive a dizer que é preciso estatizar o BC.

DN: Acho que está em processo agora (risos).

 CartaCapital: Façamos um paralelo entre a crise dos anos 1930 e a atual. Por que ninguém parece propenso neste momento a tomar as decisões corretas?

DN: É uma questão interessante. Seria ótimo que as pessoas pudessem ler o Relatório Pecora. Como de costume,no meio da crise financeira, corria um inquérito no governo dos Estados Unidos. Passaram-se dois anos sem conclusão alguma. Para não ficar muito feio, pegaram um pobre de um procurador de Nova York, o (Ferdinand) Pecora e lhe deram três meses para chegar a uma conclusão. Ele reuniu alguns procuradores e os mandou para os bancos, coisa que ninguém fazia naquela época porque o negócio antes era sentar e conversar. E, obviamente, ser enrolado pelos banqueiros. Depois de todo material reunido, ele chamou a turma. Resultado: um banqueiro saiu preso, o então presidente do Citibank. O JP Morgan saiu sem cuecas. O Pecora expôs toda a patifaria que tinha sido feita. E o mais inacreditável é que, se a gente lê o relatório do Congresso americano sobre a crise de 2008, feito quase 80 anos depois...

LGB:...que é uma beleza...

DN:...é no fundo a reprodução do Relatório Pecora. Ou seja, os bancos produziram a crise de 1929. Criou-se então uma legislação que os controlou durante 50 anos, praticamente sem que ocorresse nenhuma grave crise,e que começou a ser desmontada lentamente, até que em1999, no governo Clinton, um democrata por sinal, chegou-se à conclusão de que aquelas leis estavam mortas, que o mercado é perfeito, se autorregula,e que o Kant tinha razão,existe um imperativo categórico aos banqueiros que os impede de roubar (risos). O que fica claro?Que o mercado precisa de regulação. O velho Adam Smith já avisava: não se pode juntar essa gente, senão eles casam os filhos entre si, fazem cartéis.
 
CC: Mas por que a Política não consegue reagir?

LGB: Porque,na verdade,ela foi capturada pelo sistema financeiro. Veja no Congresso dos Estados Unidos. Quase todos tiveram suas eleições financiadas pelo setor. Então criaram uma lei ineficaz..

DN: A lei (Dodd-Frank)é tão extensa que ninguém tem a menor esperança de que ela venha a ser posta em prática...

LGB: Parece as Ordenações Afonsinas...

DN: É um processo muito grave, com consequências funestas até para o sistema de economia de mercado. Para funcionar, a economia de mercado precisa de um Estado indutor forte e suficientemente independente para controlá-la. Se, por esse mecanismo, que é visível, o sistema financeiro em um primeiro momento se apropria da economia real e depois do Legislativo, a democracia fica em risco.

LGB: A democracia e a estabilidade do sistema também.

DN: O sistema perdeu a estabilidade e a funcionalidade.

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Delfim: "Naquele instante (2008) foi decidido que era preciso baixar a taxa de juros... Mas o governo depois afrouxou"
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 LGB: Virou uma obsessão explicar para todo mundo,explicar não,pois seria uma pretensão, ao menos expor o meu ponto de vista sobre as políticas keynesianas.

DN: Pobre do Keynes... Está sofrendo o mesmo destino do Marx. Está sendo perseguido pelos keynesianos como Marx foi perseguido pelos marxistas (risos).

LGB: Ontem dei uma aula sobre Keynes. Disse aos meus alunos, todos meninos:"Vamos começar pelo fim". E falei da teoria geral O primeiro ponto, que o Delfim fala,é preciso que o Estado e seus corpos intermediários tenham um papel indutor e regulador. Isso está expresso na ideia de socialização do investimento. Como o Keynes usou a expressão socialização maioria das pessoas começou a ter erisipela. O cara fica nervoso e não consegue entender o que ele queria dizer. E o que o Keynes queria dizer? É preciso uma coordenação para guiar o principal elemento da demanda efetiva,a economia real,em uma trajetória de crescimento e de relativo equilibrio. Ele não acreditava no equilíbrio.

DN: o equilíbrio não existe. O equilíbrio é a morte.

LGB: O segundo ponto era evitar a eutanásia do rentista.Ou seja, dirigiro sistema financeiro, impedir que ele produza a escassez de capital. O terceiro é ter um sistema fiscal progressivo, de modo que se mantenham as classes com maior propensão ao consumo menos oneradas do que aqueles de topo, que recebem renda não decorrente do trabalho. E o quarto, que ele esboça na teoria geral e viria a desenvolver mais profundamente em Bretton Woods,é a necessidade de coordenação internacional acertada entre os países.

DN: Para Keynes, a economia era uma ciência moral.É algo importante que se perdeu, tudo foi mecanizado, como se uma ciência pudesse ter totalmente matematizada. A matemática é instrumento importantíssimo, mas terrível, pois se apropria das pessoas.Você pensa que está fazendo matemática, mas não, a matemática é que está fazendo você.É tão apaixonante... o que não se pode é acreditar ser possível tirar recomendações concretas de um modelo abstrato. Agora mesmo, volta e meia ouço a respeito das distorções que a política econômica no Brasil produz na economia. Quais distorções? Até a Suíça está intervindo, quer atrelar o seu franco ao euro. A Inglaterra, quando estourou a crise, interveio brutalmente. A Bélgica, exemplo de liberalismo, está até hoje com as mãos sujas, juntamente com a Itália e a França. Essa rapaziada no Brasil vê a Vênus de Milo e acha que aquilo é o padrão de beleza. Aí, encontram uma mulher na rua com um nariz um pouco torto e acusa:é uma distorção.A distorção está na cabeça deles.
 
CC : É crença pura e simples ou cinismo?

DN: Pura religião. Eles se reúnem, têm centros,inclusive.O templo maior é o Banco Central (risos).

LGB: A crença elimina a possibilidade da crítica. O que se tem frequentemente são essas convicções que viram força material, como diria o Marx. E tudo pesa na definição dos modelos de risco e precificação de ativos, pois construíram esses modelos a partir de pressupostos que acabaram afetando o comportamento dos mercados. O (investidor George) Soros tem razão. Na economia, sobretudo nas finanças, os comportamentos são reflexivos e há uma interação entre as concepções e o funcionamento efetivo dos mercados.
 DN: Isso tudo nasceu de uma tese do (matemático Louis) Bachelier, que analisava o funcionamento da Bolsa de Paris. Ele fez um modelo matemático a partir da ideia de que nós, seres humanos, somos partículas que, quando reunidas, produzem aquela distribuição normal. A tese foi analisada pelo maior matemático do século XIX, o (Henri) Poincaré. Ele não deu a nota máxima ao Bachelier e este não pôde ser professor em Paris, teve de lecionar em outro lugar, sei lá, Lyon. E por quê? Poincaré disse o seguinte: os homens são como os carneiros de Panárgio. Se um se joga no mar, os outros vão atrás. Quer dizer, a imitação é mais forte. Poincaré, no fundo, concluiu que a tese do Bachelier era brilhante, mas não valia nada. Foi o (economista Paul) Samuelson quem redescobriu o Bachelier. E aí se matematizou tudo de novo, esquecendo o fundamental, a crítica do Poincaré. Todos esses são pequenos matemáticos metidos a grandes economistas. O Poincaré era um grande matemático e um pequeno economista.

LGB: As convenções se formam pela interpretação que um faz da ação do outro. O Keynes usou o exemplo de um concurso de beleza. Segundo ele, os julgadores provavelmente não vão escolher o rosto mais bonito, mas aquele que eles acham que os outros consideram mais bonito.

 CC: Europa e Estados Unidos. O que deve acontecer?

DN: Caminhamos para um período de crescimento muito lento. A Europa vai ter de escolher se quer mesmo ser uma federação ou se racha. O custo de desfazer a União Europeia seria muito alto, mas sabemos que, quando as coisas não funcionam, desmonta mesmo. Seria uma tragédia política. Quanto aos Estados Unidos, acho que vai demorar um pouco menos para eles saírem dessa situação. Eles já estão construindo uma nova economia, menos dependente do petróleo.

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Belluzzo: "A ideia de que é preciso retirar o Estado da economia, esmagar a Besta... Isso, nos EUA, é muito pior do que as dificuldades econômicas reais"
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LGB: Um artigo de hoje do Financial Times é bastante sensato. No curto prazo é preciso se avançar na unificação da emissão de um bônus europeu, para tirar a pressão das dividas de cada um dos países. E sugere que, caso a Alemanha não queira, os demais devem seguir nesse caminho. Isso, provavelmente, provocaria uma redução na taxa de juros, o que é fundamental. No caso dos Estados Unidos, a taxa de dez anos está em 2,12%, uma das mais baixas de todos os tempos, o que mostra que os mercados estão dispostos a financiar por ao menos uma década o governo para que realize o que quiser. E o que impede? Do lado fiscal há o governo dos idiotas, que não surgiu por acaso, nasceu da longa construção vinda da era Reagan. A ideia de que é preciso tirar o Estado da economia, é necessário esmagar a Besta..

DN:...O 666...

LGB: Isso, nos EUA,é muito pior do que as dificuldades econômicas concretas. DN: Na eleição de 2012 haverá uma decisão. Ou segue um rumo de melhora ou...

LGB:...Confio na estupidez dos candidatos republicanos. Acho que ela é maior do que a dos eleitores.
 
CC: E o Brasil no meio de tudo isso?

DN: Temos uma política bastante razoável.Acho que o governo tem a clara noção de que estamos em um ambiente hostil e que precisamos providenciar um crescimento nosso. Existe recurso, tecnologia e imaginação. Parece existir a compreensão clara de que não podemos continuar com um modelo agromineral exportador. Vamos continuar a aproveitar nossas vantagens,mas elas precisam ser revertidas para a construção de um desenvolvimento apoiado no mercado interno.

LGB: Temos de seguir o exemplo dos Estados Unidos do fim do século XIX, inicio do XX, que era exportador de alimentos e matéria-prima e construiu sua industrialização.

DN: Aliás, o Brasil de hoje tem a população dos Estados Unidos dos anos 1970 e a renda dos anos 1930. Possui, portanto, um mercado interno com condições de se autoalimentar e continuar a funcionar, obviamente usando o setor externo como complemento.

LGB: Não podemos imaginar que, nos próximos anos, todos os países emergentes serão capazes de reproduzir o modelo puxado pela exportação. Temos de usar a política cambial para proteger a indústria e garantir o seu desenvolvimento. Esse modelo agroexportador é fundamental para nos prover de recursos de moedas estrangeiras suficientes para que possamos desenvolver o mercado interno. Temos de subir a participação do investimento público. No fim dos anos 1960 e início dos 1970, a participação do investimento público no PIB era de 11%. Havia uma sinergia importante, incluindo as estatais. Foi o nosso liberal Roberto Campos quem deu fôlego para as empresas públicas investirem. Criou-se um modelo em que o investimento das estatais coordenava o investimento privado.

DN: É que, antes de ser liberal, o Roberto Campos era inteligente (risos).

 CC: Já seria hora de pensar em redução da taxa de juros?

DN: Não me precipitaria, melhor esperar, as coisas estão acontecendo no mercado mesmo.

LGB: Concordo, não se pode fazer algo precipitado, sobretudo em um momento de incertezas enormes. Eu apostaria que, daqui até a eleição nos EUA, o (presidente do Fed, Ben) Bernanke vai fazer o quantitative easing 3 (grande emissão de dólares). Se assim for, o Brasil terá de baixar mais rapidamente a taxa de juros.

DN: Quando ele fizer, teremos de mudar a política. Sabemos o seguinte:não devemos esperar nada do mundo e vamos fazer o que é preciso fazer aqui.

LGB: Não sei se o Delfim concorda,mas o anúncio de que os Estados Unidos vão manter a taxa de juros perto de zero até2013jáé, para mim,um sinal de que precisamos responder. As pessoas falam da integração nos mercados financeiros e a nossa situação atual mostra que essa integração, para o bem ou para o mal, funciona. Em minha opinião, mais para o mal. De qualquer maneira, se houver uma ampliação da liquidez internacional, ocorrerá um novo rearranjo dos portfólios. E é claro que o dinheiro será atraído mais por um juro de 12,5% do que por um de 5%.

DN: Temos um sistema financeiro hígido e extremamente eficiente. O mercado de capitais do Brasil está em altíssima qualidade e temos de cooptá-lo, e não brigar com ele. O governo age em legitima defesa, contra a sobrevalorização do câmbio, e tem tomado as medidas necessárias.
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Delfim: "Acho que o governo tem a clara noção de que estamos em ambiente hostil e que precisamos providenciar um crescimento nosso"

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