Por Mauro Santayana, em seu blog
Quando usamos o termo “corrupção”, quase sempre o associamos ao peculato. Corruptos, no entendimento comum, são os que roubam do patrimônio público. Mas a corrupção do Estado não se restringe aos subornos, à lavagem de dinheiro, ao superfaturamento das obras. Nem mesmo aos crimes maiores, de transferência do patrimônio nacional aos grupos privados, nacionais e estrangeiros, como ocorreu no caso das privatizações.
Corrupção, antes de ser vocábulo assumido pelo léxico político, significava infecção, putrefação dos organismos vivos. Assim, qualquer perversão dos grupos sociais – e, principalmente das instituições políticas – pode ser entendida como infecção e putrefação – enfim sintomas de gangrena que, sem a rápida intervenção cirúrgica nos órgãos atingidos, evolui para septicemia.
A violência policial é um tipo de corrupção, esteja (o que costuma ocorrer) ou não associada às propinas e subornos. O grande problema das forças policiais é o da falta de seu controle efetivo pelas autoridades políticas e judiciárias. O parlamento é um poder desarmado. Desarmada é a Justiça.
A supremacia do poder desarmado sobre o poder dos homens, armados e pagos com os recursos tributários dos cidadãos que trabalham, é convencional. Ele deriva da credibilidade dos governos e de respeito ao Estado, sobretudo de parte dos homens armados, que devem ser educados a fim de acatar as leis e obedecer às autoridades constituídas pelo povo – em lugar de ser adestrados e instigados para matar.
A polícia sempre foi violenta. Mas havia, no passado, um sistema de pluralidade dos organismos de repressão que representava, mal ou bem, certa garantia contra os excessos. O policiamento ostensivo urbano estava a cargo da Guarda Civil, quase sempre dotada apenas de cassetetes.
No Rio de Janeiro havia a Polícia Especial, de origem não muito elogiável, desde que fora criada por Filinto Strubing Muller, Chefe de Polícia do Distrito Federal, cujo nome germânico, naquele tempo de nazismo ascendente, tinha perigoso significado. Esse corpo se destinava a conter as manifestações populares a porretadas, enquanto a polícia política, sob o comando do mesmo homem, torturava e matava.
A Guarda Civil, apesar de atos esporádicos de violência, era mais ou menos “civil”, e normalmente respeitada pelas pessoas. Em um dos sambas de Noel Rosa, essa simpatia se expressa nos versos de “O orvalho vem caindo”, quando o morador de rua canta que seu despertador “é o senhor guarda-civil, que salário ainda não viu”.
Nos Estados, a Polícia Militar, nos grandes centros urbanos, quase não era vista. Limitava-se a proteger os edifícios públicos, a garantir a segurança dos presídios e, eventualmente, a intervir nos distúrbios de rua, em que agia com violência generalizada, em que raramente havia mortes.
O vídeo que a Folha de São Paulo está divulgando, em sua edição on-line, é um murro na cara de todos os homens decentes neste país. O escárnio dos policiais, diante de um homem, supostamente baleado por eles mesmos, que agoniza, e diante do outro, ferido aparentemente com menos gravidade, com as frases abjetas: “estrebucha, filho da p.”, e “ainda não morreu, não, tomara que morra antes de chegar ao hospital” horroriza os homens de bem.
Tal como a corrupção dos meios políticos, essa corrupção nos organismos policiais – em que há também dinheiros sujos – deve ser combatida por toda a sociedade. A ousadia desses policiais arbitrários e insanos, que torturam e matam, não tem limites e, se não houver a mobilização nacional, em breve eles que se acham senhores do bem e do mal, associados ao crime organizado, assumirão o poder de fato no país.
O assassinato da juíza Patrícia Acioly, que, pelos indícios reunidos, foi executada por homens da Polícia Militar do Rio de Janeiro, demonstra a que nível de audácia essa organização criminosa chegou. Dela participam os bandidos comuns, os grandes traficantes de drogas e as “milícias”, constituídas de meliantes fardados, como todos sabemos e, em muitos casos, sob proteção política.
Seria conveniente que novo corpo armado, de âmbito federal, e com o objetivo específico de policiar a polícia, fosse rapidamente organizado, nos moldes da Polícia Federal. Esses policiais teriam que ser muito bem pagos, bem treinados e dotados de armamentos sofisticados e poderosos, a fim de intervir rapidamente e extirpar a gangrena que ameaça generalizar-se. E não poderiam intervir nos estados em que estivessem destacados, como forma de preservá-los da corrupção local.
Os governos estaduais, responsáveis pela segurança em seus territórios, irão, naturalmente, aceitar a ação dessa força nacional. A nova corporação não pode ser tímida como a que foi criada recentemente – constituída de integrantes das polícias militares estaduais – que não se encontra devidamente armada, nem adestrada, para ações dessa amplitude.
Para a tranquilidade da cidadania, quanto mais corporações policiais houver, melhor. Quanto mais difuso for o controle sobre tais corpos armados, e quanto mais rigorosa for a punição contra os abusos policiais, menos riscos correremos.
A violência, no entanto, não é só policial. A violência social contra os pobres – obrigados a abandonar os lares e os filhos nas ruas, a fim de trabalhar a dezenas de quilômetros de distância – explica a crescente delinqüência de menores, como no caso do bando de crianças de menos de 12 anos, que se dedicava a “arrastões”, e foi detido, há dias, em São Paulo.
Uma sociedade que é cúmplice da violência contra os pobres, acaba sendo dela também vítima.
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