Tão Gomes
Vocês certamente já ouviram falar em Jânio Quadros. Foi aquele presidente da República que renunciou ao mandato depois de apenas sete meses de governo. Um período curto, mas que deu tempo para ele proibir as brigas de galo, lançar a moda do safari para enfrentar o calor do País tropical, e, ah…sim, chegar ao cúmulo de proibir o uso do biquini, etc…etc…e deixar o Brasil numa bananosa que acabaria resultando no golpe de 64.
Na próxima semana, completam-se 50 anos da renúncia de Jânio Quadros. No dia 19 de agosto de 1961, ele condecoraria Che Guevara que visitava o Brasil. No dia 25, renunciaria, embora ainda se questione se ele de fato estava querendo deixar o poder ou corria atrás de mais poder, retornando nos braços do povo, como se dizia na época.
A resposta para essa pergunta ainda atormenta historiadores da política brasileira contemporânea. Claro que alguns indícios apontam para um retorno triunfal. No dia 25 de agosto de 1961, o vice-presidente João Goulart estava em visita oficial à China. Naquele tempo, voltar da China era um problema. Hoje, com o Aero-Lula, a presidenta Dilma Rousseff levou quase dois dias para retornar. Imaginem sem o Aero-Lula.
Outro indício de que a renúncia não era para valer: Jânio embarcou para São Paulo levando a faixa presidencial, que teve de voltar a Brasília trazida pelo seu ajudante-de-ordens.
Quando Jânio completou os primeiros 15 anos da renúncia, eu e o Hélio Campos Mello o visitamos várias vezes para uma reportagem especial para a revista IstoÉ, na época mensal, com reportagens e artigos longos, meio na linha da Esquire norte-americana.
Para todos os efeitos, Jânio era um político aposentado, depois de uma carreira fulminante, que o levou da Câmara Municipal de São Paulo a Brasília em pouquíssimo tempo. Ele foi o primeiro presidente a tomar posse na “solidão do Planalto Central”, o que o incomodava muito. Essa solidão, diga-se, foi um tema recorrente na nossa longa conversa, 35 anos atrás.
O ex-presidente aposentado morava numa casa confortável num bairro distante do centro. Dedicava-se a pintar uns palhacinhos xumbregas, que dizia vender por bom preço, e dar os retoques num dicionário da língua portuguesa. Muito mais completo, segundo o autor, do que o Aurélio. Dava com exemplo a palavra “corno”. No Aurélio teria não sei quantas acepções e no seu dicionário tinha quase o dobro.
Dado o alto teor de novidades nas revelações do ex-presidente, nossas conversas prolongaram-se por vários dias, e acabariam sendo longas e descontraídas. Jânio era um especialista em língua portuguesa, e um mestre na colocação dos pronomes, em especial os oblíquos. Ainda hoje há quem se recorde do seu “fi-lo porque qui-lo”. E seu modo de falar, encandindo as sílabas, faziam que suas frases ficassem para sempre gravadas na memória do interlocutor.
Durante uns cinco ou seis dias, conversamos, eu e Jânio. Às vezes com a presença do Hélio Campos Mello, às vezes a sós. Minto. Éramos sempre acompanhados por um carrinho de bebidas, de vários tipos e marcas, que nos acompanhava como um cãozinho ensinado.
Jânio ia ao escritório apanhar um Atlas para me provar que Corumbá, o município onde foi confinado após o golpe de 64, era duas vezes maior do que a Bélgica (de fato é), e lá ia o carrinho de bebidas atrás.
O ex-presidente voltava ao terraço, onde eu já estava na terceira dose de uísque, e lá vinha o carrinho de bebidas atrás. Tinha de tudo no carrinho. Até vinho iugoslavo. Jânio me contou que ganhara uma caixa desse vinho do cônsul honorário daquele país em São Paulo. Deixou de acescentar que o cônsul honorário da Iugoslávia em São Paulo era o conhecido radialista Alexandre Kadunc, como eu viria a descobrir mais tarde.
O fato é que as revelações de Jânio, estimuladas talvez pelo fator etílico, nos levaram a momentos muito interessantes e fizeram crescer a nossa intimidade. A ponto dele comentar, por exemplo, o torneado delicadíssimo dos pezinhos da então deputada Ivete Vargas, ou, depois de um tomar um gole de uísque, pousar o copo e desabafar: “Foi bom eles me tirarem…Eu ia virar este País de ponta cabeça”. Naquela altura do campeonato eu não estava em condições de indagar quem eram eles”. Passei batido.
Mas a intimidade, as confidências, tudo desandou quando o Hélinho propôs a ele a ideia, que eu achara genial, para a foto de capa: Jânio com um boné da antiga CMTC, Companhia Municipal de Transportes Coletivos. Exatamente o boné que ele usava quando se candidatou a vereador em São Paulo.
Rapaz, o homem, que já balançava na cadeira dado o teor alcoólico da nossa conversa, levantou-se num salto, me encarou firme apesar dos seus olhos vesgos (havia quem dissesse que um deles era de vidro) e perguntou com voz autoritária: “O senhor certamente já ouviu falar em Wenceslau Braz?” Pelo tom eu percebi que mexera com um leão enfurecido.
E Jânio desembestou sem me dar tempo sequer para articular uma resposta: “Wenceslau Braz fora presidente da República do Brasil…E um dia esse senhor fez uma visita à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde eu estudava…E o senhor sabe o que eu fiz?
Prostrei-me aos pés daquele homem. E o senhor sabe porque eu me prostrei diante daquele homem? Porque havia sido presidente da República…E agora vem os senhores à minha casa propor que eu pose com um boné da CMTC…Pois ponham-se daqui para fora, os dois…”
Saimos, eu e o Hélio Campos Mello, rapidinhos. Jânio convocou ainda sua segurança pessoal, composta por cinco viralatas, para colaborar na operação. Felizmente eles se limitaram a latir e não houve vitimas a lamentar.
*Tão Gomes é jornalista e autor do blog http://tgp70.wordpress.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário