Por Felipe Carrilho
“A primeira sede do Corinthians foi o céu estrelado do Bom Retiro”, escreveu Lourenço Diaféria no livro “Coração Corinthiano”, obra publicada e esgotada em 1992 e inexplicavelmente não reeditada até hoje.
Na frase lapidar, o cronista da Pauliceia dá conta das origens modestas do Corinthians e faz referência direta ao episódio da fundação do clube. A história é conhecida. Na noite do dia 1º de setembro de 1910, cinco jovens operários, Antônio Pereira e Joaquim Ambrósio – pintores de parede –, Anselmo Correia – cocheiro –, Carlos da Silva – trabalhador braçal – e Rafael Perrone – sapateiro, reuniram-se sob a luz de um dos lampiões a gás que iluminavam a cidade naquela época para combinar a criação de um time de futebol. O Corinthians nascia sem teto.
A questão da “casa própria” está presente na história do Corinthians desde os seus primórdios, encravada no que alguns poderiam chamar de “mito de fundação” do clube. É um dos elementos constitutivos do seu imaginário, do conjunto de sentimentos, motivações e valores que o time inspira nas pessoas, assim como a sua vinculação com as classes populares ou setores historicamente marginalizados da nossa constituição social. Primeiro os operários, depois os negros, como Jaú, zagueiro dos anos 1930, que se tornou pai-de-santo ao encerrar a carreira, além dos nordestinos, que chegavam em multidões à capital paulista e se identificavam com o craque Servílio, e por aí vai.
É partindo desse caráter plural e popular que se pode sondar a própria disposição física das instalações atuais do clube no Parque São Jorge. Aos pés da estátua do santo católico é comum encontrar pedidos de fiéis, oferendas e velas de diversas cores, principalmente azul, o pigmento de Ogum, orixá que corresponde a São Jorge nos candomblés do sudeste do Brasil.
O sabor popular do Corinthians está cristalizado no imaginário do futebol brasileiro porque repousa em episódios concretos ocorridos reiteradamente ao longo de sua história factual. A face mais politizada dessa vocação foi o movimento liderado por Sócrates, Casagrande e Wladimir nos anos 1980, a famosa Democracia Corinthiana. Mas a própria saga do clube em busca de “moradia” também se enquadra nessa perspectiva.
A primeira casa da torcida corintiana não foi exatamente um estádio. O Corinthians treinou entre 1910 e 1915 num antigo pasto onde a Companhia Viação Paulista guardava seus cavalos e burros que puxavam os bondes, ainda sob tração animal naquele tempo. Os jogadores tomavam banho no bebedouro dos animais após os jogos. O terreno estava ocupado por um vendedor de lenha quando o Corinthians instalou ali o seu campo. Vem desse fato o nome “Campo do Lenheiro”. Foi treinando ali que o Corinthians conseguiu passar do futebol varzeano para o oficial.
Com a ajuda do influente intelectual José de Alcântara Machado, o Corinthians conseguiu arrendar da Prefeitura o terreno onde inaugurou o seu primeiro estádio, em março de 1918. O estádio da Ponte Grande localizava-se na rua Itaporanga, ao lado do Campo da Floresta, da Associação Atlética das Palmeiras. O gramado e até as arquibancadas foram construídos por jogadores, torcedores, sócios e membros da diretoria em sistema de mutirão.
Apesar da boa localização do estádio, o crescimento do número de associados e torcedores fez com que a diretoria ambicionasse um terreno maior, onde pudesse instalar outras dependências do clube. Em 1926, o Corinthians adquiriu a primeira gleba do terreno onde hoje se localiza a Fazendinha, o estádio Alfredo Schürig – homenagem ao ex-presidente e empresário que ajudou financeiramente o clube em diversas oportunidades.
Naquela época, a zona Leste era uma espécie de cinturão verde da cidade, com muitas chácaras e fazendas. A chegada do clube contribuiu para o desenvolvimento do bairro do Parque São Jorge e talvez de toda a região.
A partir da década de 1950, o Corinthians começou a disputar os seus jogos com maior frequência no estádio municipal do Pacaembu. Em seu gramado, a famosa linha de ataque formada por Cláudio, Luizinho, Baltazar, Carbone e Mário marcou grande parte dos 103 gols anotados no Campeonato Paulista de 1951. O Corinthians viveu momentos épicos no Pacaembu, como a conquista do campeonato de 1951, a do IV Centenário da cidade, em 1954, a quebra do tabu contra o Santos de Pelé, em 1968. O Pacaembu se tornou uma espécie de casa informal do Corinthians.
Mas o estigma de clube sem teto perdurou, ao menos até o anúncio oficial do estádio de Itaquera como aquele que irá receber a abertura da Copa de 2014. Para além de politicagens ou brigas de bastidores, com partes diretamente interessadas ou outras com interresses indiretos lançando mão de artifícios dos mais variados para viabilizar ou não o empreendimento corintiano, fica aqui uma questão de fundo pouco discutida na grande mídia.
Por trás da indignação seletiva de boa parte dos críticos e, mais flagrantemente, dos deboches claramente elitistas ouvidos nos escritórios, redações de jornal ou nas esquinas da cidade, parece existir certa repulsa diante de um avanço histórico de um movimento popular (não necessariamente no sentido político ou ideológico do termo) como é o Corinthians. A construção do estádio de Itaquera causa uma náusea cujas raízes devem ser procuradas no nível do imaginário do futebol brasileiro.
Felipe Carrilho é historiador e autor do livro “Futebol, uma janela para o Brasil – As relações entre o futebol e a sociedade brasileira”
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