Do Blog do Zé Dirceu
A diminuição do valor facial da dívida e o seu reescalonamento – duas medidas já adotadas pelo Brasil e Argentina no passado – são a única forma de a Europa sair de sua crise econômica. Já, as medidas que o Fundo Monetário Internacional (FMI) impõe e o Banco Central Europeu e os governos dos países daquele continente estão impondo à Grécia e a Portugal não funcionam.
Ao contrário, provocarão uma recessão de muitos anos na região. A análise e a previsão são de um especialista em relações internacionais e mestre da Escola Superior de Ciências Econômicas e Políticas de Londres, Rubens Barbosa. Diplomata de carreira, Barbosa foi embaixador brasileiro, dentre outros postos, em Londres e em Washington na década de 90 e no início dos anos 2000. Foi, ainda, atuante nos bastidores e no front da política externa brasileira, como coordenador do MERCOSUL por três anos. Autor de vários livros, lançou recentemente “O Dissenso de Washington”, no qual narra boa parte do que testemunhou nos anos em que presidiu a embaixada na capital norte-americana.
Na Entrevista do Mês, abaixo, fomos ouvi-lo, já que a posição do Brasil frente a um mundo em constante e profundas transformações é um tema apaixonante e cada dia mais estratégico. Vários temas foram tratados – da nova relação Brasil e China ao papel do nosso país junto a fóruns como o G-20, BRICS e MERCOSUL. Nem de longe Barbosa esconde suas opiniões, mesmo que num discurso diplomático. E defende posições polêmicas. Entre elas, a defesa de o Brasil deter um poderio militar à sua altura, assim como o domínio da construção de armas atômicas (ainda que não venha a tê-las). Além de achar desnecessárias campanhas para o Brasil entrar no Conselho de Segurança permanente da ONU. Ele fala, ainda, do seu desencanto com os rumos do MERCOSUL.
Cético sobre as pretensões brasileiras a um assento no Conselho de Segurança na ONU, o embaixador chega a afirmar que o país jogou dinheiro fora em seu “ativismo” em prol da vaga. Por outro lado, também sabe elogiar: credita a Celso Amorim o acerto de ter buscado institucionalizar os BRICS – até então uma sigla usada apenas por economistas – o que tem forçado Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul a um maior conhecimento mútuo e alavancado a imagem do Brasil no exterior, colocando-nos, aos olhos dos investidores, no mesmo patamar que Rússia e China.
Confira a seguir um depoimento sincero, inteligente e crítico dessa testemunha privilegiada da história recente - e nos bastidores - das relações internacionais do Brasil.
[ Zé Dirceu ] Embaixador, os EUA, a Europa e, por extensão, o mundo mergulharam em profunda crise econômica em 2008, que se arrasta até agora e recrudesceu do ano passado para cá. As soluções tentadas não resolvem nada. Qual a saída? Existe chance de uma solução não ortodoxa e de caminhos mais multilaterais que dependam menos dos EUA e da Europa?
[ Rubens Barbosa ] Estive recentemente na Grécia. A crise de agora não tem nada a ver com a de 2008. Àquela ocasião, tivemos um fenômeno que afetou o setor privado, um problema de solvência e derivado da falta de regulamentação das áreas mais sofisticadas de transações financeiras. Agora, o que temos é uma crise fiscal. Os países da Europa se endividaram mais do que podiam. Nos EUA, a mesma coisa. Seu endividamento está crescendo e se agravou muito com a eleição de George W. Bush – presidente que foi um desastre para os norte-americanos. E uma coisa incide sobre a outra.
Os EUA vão sair antes da crise e se recuperar mais rapidamente porque a economia norte-americana tem a chamada resilience, ou seja, uma resistência muito grande a pressões, porque o país está à frente dos demais em tecnologia. Agora, a Europa não. O caso europeu é mais grave. Ela está numa camisa de forças devido ao sistema monetário europeu: um único Banco Central, uma moeda única. E os países, sobretudo os menores, perderam a liberdade de praticar suas políticas econômicas. Não têm instrumentos de política monetária, cambial… É tudo o Banco Central Europeu (BCE) que determina. Eles não podem desvalorizar moeda, aumentar ou baixar taxa de juros, a não ser por meio do BCE.
A Grécia, por exemplo, está em uma situação pré-falimentar. Além de a sociedade grega ser a grande perdedora, outros grandes perdedores são os bancos alemães e franceses, que botaram muito dinheiro no país. Os governos estão tentando evitar o default grego para que os bancos alemães e franceses não quebrem. Isso envolveria a perda de bilhões de euros. Agora, o que me espanta é a demora para tomarem a única medida possível, na minha visão: fazer o que foi feito aqui na região, no Brasil e na Argentina. É preciso diminuir o valor facial da dívida e reescaloná-la.
O problema é que só estão começando a analisar essas possibilidades agora. E não há outra maneira. Essas medidas que o Fundo Monetário está querendo adotar e que o BCE e os países europeus estão impor à Grécia e a Portugal não funcionam. Com elas, corta-se o crescimento, demitem-se funcionários… Vão promover uma recessão de muitos anos. É o que pode acontecer à Europa: serão cinco, 10 anos pelo menos, até que o continente volte a crescer o que crescia antes da crise. Será um longo período de crescimento muito baixo, de 1%, ou menos disso ao ano. E, sem uma perspectiva de saída, pois quando um país corta o seu crescimento o que ocorre é que também se tira a possibilidade do pagamento da dívida.
Europa não quer a interferência do FMI
[ Dirceu ] É um tiro no pé...
[ Barbosa ] O objetivo deveria ser, ao contrário, que esses países pagassem a dívida. Vejo, portanto, uma situação muito complicada na Europa. E nesse quadro é difícil que se encontre uma solução do ponto de vista multilateral. A solução na Europa será encontrada no âmbito da União Europeia (UE). Eles não querem a interferência do Fundo Monetário, nem de gente de fora nessa história.
[ Dirceu ] Em relação ao G-20 e aos BRICS, fóruns com os quais temos relações, quais as perspectivas para os próximos anos? O que nos aproxima e nos separa dos países reunidos nesses fóruns?
[ Barbosa ] Uma das boas coisas feitas pelo ex-presidente Lula e pelo Celso Amorim (chanceler naquele governo) no segundo mandato - esta é uma iniciativa brasileira - foi institucionalizar os BRICS. A nomenclatura foi criada em 2001 e, até 2008, só existia enquanto uma sigla usada por economistas. Mas o Celso Amorim teve a iniciativa de querer gradualmente institucionalizá-la (enquanto um fórum multilateral). Inicialmente foram feitas reuniões de ministros do exterior entre os BRICS Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Depois, de ministros da Fazenda e, depois, de presidentes da República. Já, na terceira reunião ocorreu algo impressionante. As conversas se deram em vinte áreas - bancos centrais, IPEA, órgãos de estatísticas, IBGE etc. Essas áreas todas se reuniram entre esses países. O Brasil e a China, o Brasil e a Rússia, o Brasil e a África do Sul sempre tiveram relações boas, mas não havia nenhuma intimidade. Eles não nos conhecem e tampouco os conhecemos. Mas, com a institucionalização dos BRICS, um maior conhecimento mútuo foi forçado.
[ Dirceu ] Quais foram as vantagens dessa aproximação?
[ Barbosa ] Eu atribuo que grande parte da projeção externa do Brasil obtida nos últimos anos se deve à institucionalização dos BRICS. Se fôssemos fazer uma campanha publicitária para colocar Brasil junto a URSS e a China, levaríamos 20 anos para termos algum resultado… Mas, de uma hora para outra, com o (grupo) BRICS, em dois anos, o mundo passou a ver o Brasil, a Rússia, Índia e a China em pé de igualdade, apesar de todas as diferenças entre eles. Essa foi uma das principais razões da recente projeção externa do Brasil.
[ Dirceu ] Como o sr. vê a agenda dos BRICS?
[ Barbosa ] Os BRICS não têm uma agenda comum. Aliás, nem sei se isso é importante. Do ponto de vista do Brasil, o importante é isso: é ser equiparado à China e à Rússia em termos de destino de investimentos. Por sinal, nós estamos em uma situação muito melhor do que a da China e da Rússia para atrair investimentos. Os BRICS, gradualmente, vão formar uma agenda comum.
[ Dirceu ] E quais são as principais diferenças?
[ Barbosa ] Nesse fórum (BRICS) Brasil e a África do Sul não são países nucleares. Já, Índia, China e Rússia têm suas bombas atômicas. Portanto, a agenda deles é mais complexa e diferente da nossa. Estamos vendo agora no G-20 e na Organização das Nações Unidas (ONU), que o Brasil tem atuado junto com os BRICS nas questões do Oriente Médio. Ou seja, não há uma agenda pré-estabelecida entre os BRICS, mas ela será gradualmente desenvolvida com a evolução do grupo.
"Mercado interno ou força militar?"
[ Dirceu ] E por falar em poder militar, nos próximos cinco, dez anos, seremos a 5ª ou 6ª economia do mundo. É uma necessidade do Brasil a estratégia de defesa nacional que foi assumida na questão do Atlântico Sul, do pré-sal, da Amazônia. Qual relação há entre o novo papel que o Brasil assumiu internacionalmente, sua posição nos BRICS e a questão da nossa força militar? O quanto conta dispormos de forças armadas modernas tecnologicamente no mundo de hoje? Reformulando a pergunta: em seu mais recente livro (O Dissenso de Washington) o sr. menciona que, na década passada, o Brasil já era visto pelos EUA como economia emergente, mas não era tratado com a mesma importância dada à Rússia, à Índia e à China, três países com conflitos internos e/ou regionais, e armas nucleares. Hoje, ainda é importante dispor de armas nucleares para ser tratado com deferência? Para as potências, o que conta mais: mercado interno forte ou força militar?
[ Barbosa ] Claro que a força militar conta. E o Brasil não tem arma nuclear…
[ Dirceu ] E nem deve ter.
[ Barbosa ] O Brasil não deve ter armas nucleares, mas deve ter o que eles chamam no exterior de “capability”. Deve ter (dominar) o conhecimento para fazê-las.
[ Dirceu ] Estou de acordo.
[ Barbosa ] Disso não podemos abrir mão e devemos acelerar essa questão. Já, em relação ao fortalecimento militar, ele é muito importante. O Brasil, com as dimensões que tem, com os recursos naturais descobertos agora, não pode deixar de proteger as suas fronteiras. Essas usinas do porte de uma Itaipu, as plataformas para a prospecção de petróleo... Não vejo a necessidade de nos armarmos contra ataques terroristas, mas imagine um maluco que destrua uma plataforma daquelas? Equivalem a 10% do fornecimento de petróleo do país.
[ Dirceu ] Precisamos de Forças Armadas bem equipadas e capacitadas...
[ Barbosa ] É preciso ter a Marinha, a Aeronáutica e o Exército equipados. E isso vem de encontro à política de fortalecimento da indústria nacional de defesa. Trata-se de uma questão muito importante. Sempre achei que nós tínhamos de identificar o que nos importava para a defesa no Brasil e atrair empresas do exterior para produzirem aqui esses equipamentos e essas tecnologias. É o que vai fortalecer o chamado “poder nacional”. Na prática, o Brasil não pode ter uma presença externa, sem dispor de uma presença militar.
Recentemente, o Brasil mandou uma fragata para o Líbano. Não é possível ter o comando das Forças Navais no Líbano e não dispor de um navio lá. Tampouco se pode querer defender a fronteira no Amazonas, inóspita e não habitada, sem ter os aviões não tripulados, sem dispor de uma tropa ali na fronteira, sem equipamento especializado. Da mesma forma, nos rios e no Atlântico. Não estou falando de uma força de ataque, mas de uma força defensiva. Não somos bélicos. O Brasil não tem uma guerra há 150 anos: o país definiu todas as fronteiras e se tornou independente sem qualquer guerra. Mas é preciso contarmos com uma força militar compatível com o tamanho do país.
[ Dirceu ] O sr. mencionava o fortalecimento de uma indústria nacional de defesa...
[ Barbosa ] O fortalecimento dessa indústria é muito importante para o país. Nos EUA, por exemplo, as verbas dedicadas pelo Pentágono à indústria da defesa são brutais. Daí saem as grandes inovações tecnológicas, depois readaptadas para o uso civil. Temos que começar a fazer o mesmo.
Brasil passa a ter voz em novas áreas
[ Dirceu ] Voltando ao tema do G-20...
[ Barbosa ] O Brasil tem um papel a desempenhar no G-20 e isso já começa a acontecer. O Brasil está em uma transição entre um país que está em desenvolvimento e um país que começa a ter uma posição fora de sua região, para além dela. Por projeção externa entendo a forma como o Brasil passa a ter voz em áreas como o Oriente Médio, a África, a Ásia.
[ Dirceu ] Quais as conseqüências disso?
[ Barbosa ] Isso cria uma situação complicada para nós. Para se ter influência no G-20 é preciso ter ideias, ter políticas. O ministro Guido Mantega (Fazenda) lançou em fórum recente o conceito da “guerra cambial”. É um exemplo de como o Brasil pode influir nas discussões globais. Mas, nosso país não tem, ainda, um peso específico como a Rússia, a China, para influir num conflito na Ásia… É um pouco de pretensão nossa querer influir no Oriente Médio. Não temos, ainda, peso para isso.
[ Dirceu ] Em que temos peso?
[ Barbosa ] Temos peso para atuarmos nos grandes temas multilaterais. Acredito que outra grande razão da projeção externa do Brasil é que o país é um ator importante nos grandes temas globais – comércio exterior, meio ambiente, mudança de clima, energia, água, democracia, direitos humanos. O Brasil é chamado a se manifestar nesses assuntos. É nesses campos que podemos exercer a nossa influência com ideias. E mesmo aqui, nós sempre ficamos em uma posição reflexa. O Brasil sempre reflete o que perguntam… Temos que, a partir de agora, passar a ter posição pró-ativa, políticas e uma ação propositiva.
China: parceiro e concorrente
[ Dirceu ] Hoje o Brasil é um grande exportador de matérias primas e importador de tecnologia e manufaturas. Nesse contexto, como ficamos em relação à China? O país é mais um concorrente, um parceiro ou um desafio?
[ Barbosa ] O Brasil tem uma visão ingênua em relação a China. Ela é o principal parceiro comercial do Brasil, passou até os EUA. E é o segundo grande parceiro, aqui da região sul-americana. Um dos equívocos da política externa do governo Lula foi considerar a China como “economia de mercado” (um status de tratamento bilateral especial). A consequência prática disso é que esse fato restringiu a margem de manobra do governo brasileiro e das empresas brasileiras na hora de usarem os mecanismos de solução de controvérsias. E isso faz falta, agora, com a invasão de produtos chineses que está ocorrendo. Não só porque os chineses têm uma maior competitividade, mas, também, pela sua influência na manipulação cambial – coisa que pouca gente sabe aqui no Brasil. Sobretudo, porque eles vêm ao Brasil praticando um preço de dumping, quando não fazem uma triangulação com outros países para que seus produtos sejam vendidos aqui. A triangulação é usada exatamente quando o Brasil começa a tomar medidas para enfrentar os produtos chineses. Aí, eles os exportam para o Vietnã, para, a partir de lá, conquistarem o nosso mercado.
[ Dirceu ] Em resumo, a China é uma oportunidade ou um desafio?
[ Barbosa ] A China ainda é uma grande oportunidade para o Brasil. Eu não acredito que o seu crescimento, mesmo com essa crise internacional, vá cair dramaticamente. Os chineses crescem 12% ao ano. Mesmo com a crise internacional, no pior cenário, o seu PIB deverá se desacelerar para 9% ou 8% ao ano… E, mesmo que isso aconteça, a China continuará a ser um grande comprador de produtos primários brasileiros. Nossa receita de exportação para a China deve continuar a crescer. Aí está a oportunidade.
[ Dirceu ] E quais são os principais desafios envolvidos nessa relação?
[ Barbosa ] Nem o governo brasileiro, nem os empresários brasileiros sabem o que querem dessa relação. É a mesma coisa com os EUA. Nós não sabemos o que queremos da relação com eles.Nem o governo, nem o setor privado. Há confrontos, divergências. Com a China é mais grave porque o país está afetando diretamente a política comercial brasileira, além de forçar diretamente a apreciação do câmbio brasileiro. O governo da China, por meio do Banco da China, tem usado o mercado de derivativos, o mercado futuro, para interferir no nosso câmbio.
[ Dirceu ] Como ficam a indústria de transformação e o mercado interno brasileiros, agora, com o novo papel que a China está desempenhando no Brasil?
[ Barbosa ] Historicamente o mercado brasileiro era atendido por apenas 10% de produtos importados. Hoje essa proporção chegou a 25% e a maioria deles chegam da China, prejudicando a nossa indústria de transformação.
"MERCOSUL se transformou em fórum de debate político"
[ Dirceu ] Ainda nem falamos sobre a América Latina. Quais são as chances de conseguirmos um real avanço na integração regional? Qual o papel político do Brasil em função dos casos de crises em Honduras e na Venezuela e, ainda, no Haiti? Qual o nosso papel no MERCOSUL e na UNASUL?
[ Barbosa ] (momento de hesitação) Sou muito crítico da nossa política em relação a América do Sul. Não defendemos os nossos interesses como deveríamos. O Brasil mudou de patamar em sua relação com os países da região. Nós já temos interesses fora da região. Mas, aqui, na região, perdemos a possibilidade de exercer uma liderança efetiva. No começo do seu governo, o presidente Lula, repetiu várias vezes que o Brasil queria ser liderança na região. Nós não fizemos isso. Hoje, acredito que o país esteja a reboque dos acontecimentos na América Latina.
Outros países têm tomado a iniciativa, seja a Argentina, com essas medidas restritivas todas, seja a Venezuela. E o Brasil acompanha. Até a CELAC, a Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos, foi uma iniciativa do México... Essa UNASUL (inicialmente chamada de Comunidade Sul-Americana de Nações, uma união entre o MERCOSUL e a Comunidade Andina de Nações com vistas à integração sul-americana)... Eu não vejo resultados concretos nessa iniciativa. A integração na região sofreu um atraso, não avançou. Com isso, o Brasil resolveu bilateralizar as relações com todos os países.
A integração regional, econômica, comercial - que é o que interessa efetivamente ao Brasil - e é o que estava se dando no âmbito do MERCOSUL, parou. Está totalmente estagnada. O Brasil apresentou duas vezes, em 2004 e 2009, propostas para o MERCOSUL avançar e nem houve resposta. Nós perdemos a capacidade de influir porque os países perceberam que o Brasil não queria forçar nenhuma situação. Eu acho que é um equívoco cultivarmos aquilo que o Itamaraty denominou de “paciência estratégica com a Argentina”. Não é possível mantermos uma situação em que os argentinos restringem o comércio bilateral da maneira como estão restringindo, unilateralmente. E, fazendo-o apesar das regras do MERCOSUL e as da Organização Mundial de Comércio (OMC). E, ainda assim, o Brasil não fazer nada a respeito. Isso não é correto. Temos que reclamar. Não é bater, mas é preciso aplicar os mecanismos de defesa comercial que temos à mão, quando ocorre uma medida dessa natureza.
[ Dirceu ] E quanto ao MERCOSUL? Como estamos?
[ Barbosa ] Hoje, o MERCOSUL se transformou em um fórum de debate político e social. Apesar de a retórica do governo ser contrária ao que estou dizendo, na realidade, o MERCOSUL deixou de ser o acordo comercial e econômico que era na origem. Quando eu participei disso – fui coordenador do MERCOSUL durante três anos - só discutíamos questões comerciais, econômicas e financeiras. Claro que debater questões políticas e sociais é importante. Agora, não é o que foi inicialmente negociado e que era o que interessava ao Brasil: uma área de livre comércio na região. Nesse sentido, acredito que esteja faltando uma visão estratégica, inclusive, na integração da região.
O Brasil teria que promover a integração física da região. Por exemplo, nós estamos sem visão estratégica na questão da saída para o Pacífico, fundamental quando pensamos nossas relações com a China. A China é o principal parceiro comercial do Brasil e a América do Sul tem na China o seu principal mercado, mas a integração regional física parou durante 10 anos. Até a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana - IIRSA (programa conjunto de governos de 12 países da América do Sul), que tinha sido criada, parou. Só agora estão retomando.
Somos hoje exportadores de capitais para a América do Sul
[ Dirceu ] Na verdade, nessa parte que envolve rodovias, pontes, aviação, trem... o Brasil avançou. O que mudou é que, hoje, somos mais um país exportador de capitais, de serviços e de tecnologia para a América do Sul do que propriamente de matérias primas...
[ Barbosa ] Sim, claro. Foram feitas algumas coisas. Mas, o projeto atrasou. A integração não saiu do papel e se transformou hoje em integração social e política, o que é uma distorção.
[ Dirceu ] Até agora pouco mencionamos um ator importante das nossas relações exteriores, os Estados Unidos. O sr. considera que a produção do excedente de petróleo brasileiro a ser exportado, assim como a do etanol, possa melhorar as nossas relações com eles? Este poderia ser um assunto de interesse mútuo voltado ao desenvolvimento de pesquisas na área energética, de forma que os EUA diminuíssem a sua dependência brutal do petróleo do Oriente Médio? Estou me referindo a uma possível aliança nessa área, que poderia melhorar a eficiência da produção energética, com redução nos custos e poderia contemplar, também, a questão ambiental, que se tornou gravíssima. Enfim, uma aliança que poderia ser a base de uma nova economia – a exemplo do que foi a internet, quando gerou nos EUA um novo ciclo de desenvolvimento.
[ Barbosa ] A recente visita do presidente Barack Obama a presidenta Dilma Rousseff, no Brasil, deve ser vista sob uma perspectiva histórica. Ela é uma mudança do relacionamento entre Brasil e EUA. Por quê? Consciente ou inconscientemente, os governos brasileiro e norte-americano incluíram no comunicado do encontro presidencial quatro ou cinco áreas que, pela primeira vez, casam interesses concretos. Não estou falando de interesses políticos ou ideológicos, mas interesses pragmáticos entre as empresas brasileiras e as americanas.
Nesse comunicado foi tratada a questão do petróleo. Outra coisa importantíssima foi a decisão de os dois governos colaborarem na viabilização de bio-combustível para aviação. Essa parceria Brasil-EUA tem o potencial para movimentar bilhões de dólares. Terceiro ponto tratado na visita é um acordo na área espacial.
Dentro de 10 a 15 anos, o Brasil vai se tornar um dos maiores fornecedores de petróleo para os EUA. Aí, sim, e não mais na retórica, o Brasil será um parceiro estratégico dos EUA. As estatísticas do ano passado e deste ano mostram que o Brasil deixou de ser um país que exportava manufaturas para os EUA. No passado, exportávamos 80% de manufaturados e 20% de commodities. Hoje, da nossa pauta de exportação para os EUA, cerca de 90% é composta de produtos primários. E o primeiro produto de exportação para os EUA já é petróleo. Isso vai se acentuar e fazer com que os EUA olhem para o Brasil de outra maneira. Mas, nesse futuro diálogo em relação aos EUA, nós temos de deixar muito claro a defesa do interesse nacional e do respeito mútuo. Isto porque o Brasil vai se tornar para os EUA o que hoje o Oriente Médio é para eles. E, lá, os EUA exercem uma interferência muito grande nas questões internas. Nós temos que deixar claro como vamos atuar nessa relação.
Assento no Conselho de Segurança: só quando EUA quiserem
[ Dirceu ] E quais as chances de o Brasil vir a ter assento no Conselho de Segurança (CS) da ONU?
[ Barbosa ] Acho que o Brasil tem todas as qualificações para entrar no Conselho de Segurança. Mas fui crítico do ativismo brasileiro nesta defesa. Gastamos dinheiro, abrimos 40 ou 50 embaixadas ao redor do mundo. Foi uma perda de tempo e de recursos para um “não evento”. A partir de 2005, quando esse assunto foi discutido pela última vez na ONU, ele saiu de pauta. Não está, de fato, na mesa de negociação. Isso só vai acontecer quando os EUA e os outros membros permanentes (Rússia, China, Inglaterra e França) assim o desejarem. No fundo, os americanos é que estão bloqueando essa pauta. Por que os EUA incluiriam no Conselho de Segurança países que serão, na maioria das vezes, contra seus interesses? A Índia, a Nigéria, o Brasil? Se eles têm um grupo de cinco que eles controlam, por que colocariam 10 países no Conselho, se perderiam o seu controle?
A França e a Inglaterra, até com qualificações, apoiariam o nosso pleito ao Conselho. Já, a China está bloqueando a ampliação do Conselho por causa do Japão.
[ Dirceu ] As chances, no curto prazo, não existem?
[ Barbosa ] O Brasil vai, eventualmente, entrar no CS. Mas isso não se dará por causa do nosso ativismo. Protagonizamos esse ativismo na África, mas quando, em 2005, discutiu-se o assunto, a Organização da Unidade Africana (OUA) se reuniu e votou contra o Brasil, apesar de todo o esforço que fizemos. Quando o assunto estiver maduro, quando, de fato, EUA, França, Inglaterra, China e Rússia disserem sim à ampliação do CS, (aí, sim) vão entrar a Índia, a África do Sul, o Brasil, o Japão e não sei quem mais. Os cinco países, então, prepararão uma resolução, que será colocada e votada na Assembléia Geral. Para ser membro do CS, o Brasil não precisa fazer comício nenhum. Será um membro devido à sua projeção, ao peso, às políticas que o país está adotando, à nossa crescente participação fora do continente...
[ Dirceu ] Quando isto ocorrerá?
[ Barbosa ] Eu sou muito cético em relação à velocidade desse processo. Vai ser necessário ter um fato político internacional muito forte, como o que estamos testemunhando - o enfraquecimento da Europa e dos EUA em quatro ou cinco anos – e, em contraposição, o fortalecimento dos BRICS... Só aí, eles vão ceder à realidade.
[ Dirceu ] O sr. esteve à frente de postos importantes da diplomacia brasileira, como as embaixadas em Londres e em Washington. Nesta última, foi embaixador do Brasil tanto nos governos de FHC quanto no de Lula. Em seu livro "O dissenso de Washington" o sr. fala de preconceitos mútuos EUA-Brasil. Quais são esses preconceitos e quais deles mais prejudicam a relação bilateral?
[ Barbosa ] Temos uma história de desencontros entre Brasil e EUA. Desde os primórdios das nossas relações, logo após a Independência do Brasil (1822), em 1823, o primeiro ministro plenipotenciário nosso, o embaixador brasileiro, quis apresentar credenciais ao governo dos EUA e não conseguiu. Levou quase dois anos para apresentá-las, porque os EUA não quiseram reconhecer um país que tinha ligações tão estreitas com as monarquias européias. Àquela ocasião, os EUA já eram uma república.
[ Dirceu ] E de lá para cá?
[ Barbosa ] Ao longo do século XIX, o Brasil rompeu três vezes suas relações com os EUA. É uma coisa que pouca gente sabe. Depois, também, dois presidentes norte-americanos, entre eles Abraham Lincoln, quiseram impor ao Brasil o envio de seus negros libertos. Queriam fazer no norte do país, na Amazônia, a chamada Libéria. Esses fatos ficaram no nosso subconsciente. Tivemos, ainda, todas as atitudes intervencionistas norte-americanas durante a Guerra Fria.
[ Dirceu ] Como se deu essa relação na história recente?
[ Barbosa ] Nos tempos contemporâneos, e durante a minha estada lá, eu verifiquei concretamente uma grande desinformação sobre o Brasil por parte dos norte-americanos, alguns preconceitos arraigados em relação a nós. Como eles têm pouca informação sobre o nosso país, acham o Brasil “imprevisível”. Comparando, a Rússia e a China que são previsíveis. São contra vários interesses norte-americanos, mas são considerados países previsíveis. Os americanos, no entanto, não sabem o que esperar de nós. Há muita desconfiança em relação a como o Brasil vai agir nesta ou naquela situação.
[ Dirceu ] O inverso não é verdadeiro? Os brasileiros não têm preconceitos em relação aos EUA?
[ Barbosa ] Também, temos. Os nossos são de ordem ideológica. Isso ficou mais evidente no segundo mandato do presidente Lula, quando houve uma influência ideológica muito grande, que prejudicou as diretrizes traçadas pelo próprio presidente da República. Não houve o desenvolvimento de uma série de coisas. Um exemplo foi a base tecnológica de Alcântara, no Maranhão. Nós fizemos certas exigências aos norte-americanos que não estavam em jogo. O acordo entre os dois países em relação a Alcântara era de uma natureza de salvaguardas tecnológicas. Mas nós queríamos a transferência de tecnologia. Há, portanto, desencontros que permeiam toda a relação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário