Por Alessandra Devulsky Tisescu
Alain Badiou enxerga em Slavoj Zizek o único pensador que simultaneamente se aproxima de Lacan e defende, com vigor, a ideia do comunismo. A delicadeza magistral dessa construção teórica só é possível porque Zizek busca a fundamentação última de suas análises em um Hegel diferente, ainda desconhecido, que só aparece por meio de uma investigação lacaniana.
A releitura dos clássicos da política, da filosofia, sem esquecer da psicanálise, parece ser sempre o primeiro passo de um autor que está preocupado com as emergências do mundo. Propor os problemas atuais a grandes pensadores que não vivenciaram as experiências da modernidade significa submeter a “verdadeira novidade do novo” à lente do que era eterno no velho. Para Zizek, esta lente eterna é o comunismo, e Marx o criador do principal arcabouço teórico na sua compreensão.
Em “Primeiro como tragédia, depois como farsa” Slavoj Zizek resgata grandes temas da tradição marxista como a ditadura do proletariado, as crises do capitalismo, a ideia de fetiche, a ideologia e a própria teoria do Estado, entremeando no texto, com um poderoso talento narrativo, conceitos importantes para a compreensão da teoria marxiana concomitantemente à sua aplicação na análise de eventos históricos do passado e do presente. Como Marcelo Grillo afirma, Zizek não só é sensível às urgências políticas que se apresentam no tempo presente, como também empunha a tarefa de rever o passado, repensando os legados deixados pela história de modo indelevelmente crítico.
Inspirado no “O 18 de brumário” de Marx, o autor parte em busca dos grandes fatos e personagens da história mundial que se repetem enquanto eventos, “primeiro como tragédia, depois como farsa”, e encontra um quadro bastante significativo da nossa contemporaneidade – os ataques de 11 de setembro e a crise financeira de 2008, respectivamente. Para o autor, se a queda das torres gêmeas não foi suficiente para abalar a confiança dos políticos democrático-liberais, a crise econômica de 2008 – não surpreendentemente um produto da crise de 2001, e que agora se desdobra nesta crise de 2011 – criou um raro consenso entre a direita e a esquerda americana (consenso este que não se repetiu este ano graças ao terrorismo do “Tea Party”).
Não se trata de uma defesa da sangria intencional das classes populares em favor dos banqueiros que, após anos de especulação financeira desenfreada, viram-se protegidos pelas medidas do Estado. Aqui Zizek segue a tradição marxista ao demonstrar que o Estado é uma figura central para o capitalismo, que é chamado a intervir sempre que o excesso capitalista causa uma assimetria perigosa em seu sistema, a ponto de colocar em crise a sua existência. De fato, o que Zizek demonstra neste novo livro é que no atual estágio em que se encontra o capitalismo, as intervenções estatais que usam dinheiro público (dinheiro do contribuinte) para aplacar a crise, auxiliando bancos e os próprios especuladores, ocorrem como uma necessidade inevitável para a manutenção do mercado. Assim, de nada adianta apontar a “imoralidade” do ato sem pensar radicalmente (no sentido marxiano) em como destruir um sistema que permite este nível de chantagem: mantenha-me ou milhões morrerão de fome. Por essa razão, a injustiça provocada pela ordem capitalista só pode ser afastada quando destruído o seu próprio engendrador – o capital, conclamando o autor: “obedeça, mas pense!”.
Viver à beira do precipício é, para o capital, nada menos do que a exceção que se torna a sua ordem, a transparecer a racionalidade “irracional” de sua lógica, a sua razão instrumental como ensinara Adorno e Horkheimer. Sempre à espera da eclosão da próxima crise, o discurso liberal sequer pode defender os seus próprios pressupostos ideológicos, pois quando demanda a diminuição de impostos e de regulamentação da economia está postulando a sua própria ruína.
Para Zizek, a ideologia do capitalismo que vivenciamos hoje já não se opera mais no modo sintomal tradicional como ensina a psicanálise, no qual ao menos temos a esperança de que aquilo que foi reprimido volte como recalque, denunciando o conteúdo e seu disfarce. De modo distinto, o autor descreve um funcionamento muito mais fetichista da ideologia, portanto, bem mais refinado, que leva o sujeito a estar seguro de suas convicções porque são elas as responsáveis por permiti-lo viver uma vida “insuportável”. Como ensina Alysson Mascaro, a ideologia se impõe não só pelo que distorce do real, mas também pelo que afirma na realidade.
De modo semelhante, a instrumentalização da razão aparece também quando a ideologia dominante, que é a do capital, assume o discurso ecologista. Neste caso, ao invés de denunciar a exploração catastrófica dos recursos ambientais, organizando-se para racionalizar o seu uso, o mercado faz do meio ambiente o seu mais novo “garoto propaganda”, quando não faz dele o seu mais novo produto. Ele passa a “vender” a tentativa de aplacar a culpa particular que cada um de nós carrega, sabedores que somos, de modo consciente ou não, de nossa contribuição maior ou menor à catástrofe que se anuncia, por meio dos slogans da responsabilidade social, ambiental, dentre outras. Dessa forma, ao contrário de usarmos nossa energia libinal para solucionar os problemas ambientais, questionando a própria ordem econômica que nos impõe “necessidades” de consumo absolutamente fetichizadas, passamos a comprar produtos de empresa que se dizem éticas, que fazem contribuições ínfimas às organizações ambientalistas – sem que nenhuma dessas ações efetivamente alterem o curso da exploração predatória dos recursos ambientais, e do próprio homem.
Da análise feita pelo autor de extremos políticos consistentes em figuras como Evo Morales e Berlusconi, perpassando por eventos históricos como a Revolução Francesa e a Revolução Haitiana, extraem-se valiosas lições. Dentre elas, em termos atuais, a de que o mercado não é um bom zelador de si próprio, tampouco das coisas do Estado, razão esta suficiente para colocarmo-nos contra a privatização de quaisquer aparelhos estatais, seja da SANECAP em Mato Grosso, seja da COPEL no Paraná. Outrossim, que o maior perigo do “fetichismo fascista-populista” encontra-se na dificuldade de se identificar o real inimigo numa situação de crise. Quando a dor da exploração é deslocada da luta de classes para um discurso, ora antissemita, ora islamofóbico, surgem atiradores como o da Noruega que, recentemente, foi incapaz de perceber que os problemas sociais sentidos na Europa não são o resultado da emigração ou do suposto “marxismo multiculturalista”, mas sim produto direto das relações capitalistas que chegaram a um estágio suficiente para provocar na Europa em larga escala o que antes era inimaginável – a violência, a miséria e a alienação. A riqueza do texto de Zizek neste novo livro é um convite ao leitor a refletir sobre aquilo que ele pensava do seu passado, e das determinantes de seu futuro, razões estas mais que suficientes para se justificar e comemorar este lançamento
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