As recentes crises macroeconômicas, com efeitos imediatos no comércio mundial de alimentos, obrigam-nos a uma reflexão profunda. A debilitada estrutura de segurança alimentar dos países pobres, sobretudo na África subsaariana e na Ásia-Pacífico, corre sério risco de entrar em colapso e condenar milhares de famílias à miséria absoluta.
Senão, vejamos. Segundo o último levantamento da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), temos 925 milhões de famintos no mundo. Desses, cerca de dois terços estão em áreas rurais e dependem da agricultura familiar e das redes de proteção social para sobreviver.
A crise de 2008 acelerou o processo de alta volatilidade nos preços dos alimentos, iniciada em 2006. A produção agrícola foi gravemente afetada, causando distúrbios sociais em mais de 20 países. Apenas no ano passado, os preços dos cereais aumentaram 50%. Não à toa, o tema escolhido para o Dia Mundial da Alimentação de 2011, celebrado no próximo 16 de outubro, é Preço dos alimentos: da crise à estabilidade.
Entre 2010 e 2011, a alta dos preços dos alimentos levou 70 milhões de pessoas à pobreza extrema, segundo o Banco Mundial. O quadro é particularmente catastrófico no Chifre da África (no nordeste do continente africano), onde cerca de 12,4 milhões de pessoas precisam de assistência imediata na Somália, na Etiópia, no Djibouti e no Quênia. No território somaliano, a situação é de calamidade: 750 mil podem morrer de fome nos próximos três meses. O Chifre da África vem sendo castigado pela pior seca dos últimos 50 anos, sinal de que a natureza agora cobra do planeta o preço por décadas de degradação ambiental.
Podemos enfrentar um quadro tão desolador? Sim. De imediato, é preciso levantar, perante as lideranças mundiais, recursos financeiros para ajuda humanitária aos países pobres. A FAO estima que, para ajudar os camponeses afetados, sejam necessários cerca de U$ 120 milhões para um fundo de emergência. A maior dificuldade enfrentada pelas organizações que prestam auxílio é o acesso às regiões atingidas, principalmente as de grandes conflitos sociais, caso da Somália. As populações africanas carecem de auxilio médico, água potável e abrigo.
A médio e longo prazo, é preciso reabilitar o sistema produtivo agropecuário dos países devastados, com investimentos em insumos agrícolas e na recuperação de solos degradados. Também é fundamental garantir ao pequeno produtor o acesso à terra e à água, ao mercado de crédito e seguro agrícolas.
O estabelecimento de um novo quadro institucional mundial, com a implementação de legislações adequadas ao comércio internacional, sob a supervisão da Organização Mundial do Comércio (OMC), garantirá relações multilaterais mais justas entre os países. Não é segredo que os países ricos distorcem as relações comerciais ao fornecer subsídios à agricultura interna, prejudicando os países em desenvolvimento.
O desdobramento da atual crise pode, portanto, acelerar a adoção de políticas protecionistas, o que só dificultaria o comércio internacional e o crescimento dos países em desenvolvimento. Nesse sentido, medidas de prevenção devem ser adotadas, por meio do fortalecimento das redes de proteção social e da produção agrícola, para mitigar os efeitos da recessão sobre as populações carentes.
O Brasil tem demonstrado, ao longo dos últimos anos, que é possível combinar crescimento econômico com redução da pobreza. Ações no âmbito da cooperação Sul-Sul, especialmente com a África (que irá adotar o modelo brasileiro do Programa de Aquisição de Alimentos), e a discussão sobre a fome no mundo em fóruns como o G-20 são bons exemplos do comprometimento do país por um mundo socialmente mais justo. Precisamos do envolvimento de toda a comunidade internacional para cumprir um dos mais importantes desafios do milênio: reduzir o número de famintos no mundo em 50% até 2015. A missão é difícil, mas não impossível.
* Helder Muteia, veterinário, escritor e ex-ministro da Agricultura de Moçambique é o representante da FAO no Brasil
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