domingo, 9 de outubro de 2011

O Brasil encara a Fifa

Dilma Rousseff e o presidente da Fifa, Joseph Blatter, travam o primeiro grande duelo da Copa de 2014. Em jogo, a mudança de leis, a contratação de fornecedores e o controle da publicidade. Quem vai vencer a disputa?

Amauri Segalla, Alan Rodrigues e Pedro Marcondes de Moura - Ilustração: Baptistão

O jogo é duríssimo. Embalado por uma série de conquistas nos últimos anos, o time da casa quer mostrar aos torcedores sua força emergente. O adversário é um gigante acostumado a vencer embates por goleada e que não reluta em usar artifícios – mesmo se forem polêmicos – para alcançar seus objetivos. Mais do que apenas uma competição esportiva, a Copa do Mundo pode se transformar em um confronto encarniçado entre o país-sede, como o Brasil em 2014, e a Fifa, organizadora do evento. Faltam 32 meses para o Mundial, mas a disputa já está acirrada. A Fifa fez ao governo brasileiro uma série de exigências que, se forem rigorosamente cumpridas, criam uma espécie de Estado paralelo enquanto o torneio durar. A entidade máxima do futebol briga por mudanças em leis federais, estaduais e municipais, impõe a contratação de fornecedores (o que vale principalmente para obras nos estádios), quer o controle de toda a publicidade ligada à Copa e pede até a tipificação de novos crimes acompanhada pela criação de varas para julgá-los. Para os defensores da Fifa, entre eles a Confederação Brasileira de Futebol, nada mais justo do que ceder aos apelos de quem trouxe o maior evento esportivo do planeta para o território brasileiro. Para os críticos das propostas, inclusive gente graúda do governo federal, as imposições colocam em risco a soberania nacional. Quem vai vencer essa guerra?

Na semana passada, a reunião realizada em Bruxelas, na Bélgica, entre a presidente Dilma Rousseff, o ministro do Esporte, Orlando Silva, e Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa (o presidente da federação, Joseph Blatter, não participou do encontro), deu a impressão inicial de que o Brasil está disposto a oferecer o máximo de privilégios à entidade. Não é bem assim. Dilma aceita rever alguns pontos da Lei Geral da Copa, que será analisada no Congresso nos próximos dias, mas é inflexível em outros. A presidente se recusa a alterar o Estatuto do Idoso, que garante a pessoas acima de 60 anos o direito à meia entrada em eventos culturais e esportivos. Se Dilma realmente vencer a batalha, será uma derrota e tanto para a Fifa, que sonha em controlar o preço e a venda dos ingressos da competição. A interlocutores, Dilma também afirmou que não mexerá em uma vírgula do Código de Defesa do Consumidor. Parece pouco, mas significa um golpe na forma de trabalhar da Fifa. Como em Copas passadas, a entidade quer vender ingressos acompanhados de pacotes turísticos. De acordo com a legislação brasileira, a prática configura venda casada, o que é proibido. A ingerência da Fifa preocupa representantes de diversos setores. “Não podemos nos curvar aos ditames impostos pela Fifa”, diz Wadih Damou, presidente da seccional carioca da Ordem dos Advogados do Brasil. “Ela não está acima das regras nacionais.”

PRESSÃO

Contra cortes de privilégios, dirigentes da Fifa endurecem o jogo
e fazem ameaças ao Brasil. Governo contra-ataca e não muda leis

Há muita confusão a respeito das atribuições das partes envolvidas na organização da Copa. À presidente Dilma compete a aprovação – ou não – das normas gerais do jogo, mas particularidades locais não podem ser alteradas por ela. É o caso da meia-entrada para estudantes ou da venda de bebidas alcoólicas nos estádios. No primeiro exemplo, são leis estaduais ou municipais que regulam o benefício. Alterá-las, portanto, é responsabilidade de governos estaduais e prefeituras. Nesse aspecto, ninguém duvida que a meia-entrada para estudantes vai ser cancelada durante o Mundial. “Já ouvi de pessoas da Fifa que, se mantivermos o privilégio, não teremos jogos importantes em nossa cidade”, diz o secretário de Esportes de um dos municípios-sedes do evento, que pede para não ser identificado. “Os caras pegam pesado. Se atrapalhar o jogo da Fifa, você dança.” Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou o Estatuto da Juventude, o que complica ainda mais o caso. A proposta, que terá de passar pelo Senado e depois ser referendada por Dilma, tornaria a meia-entrada um benefício nacional para estudantes de 15 a 29 anos. Até mesmo para não provocar novo desgaste com a Fifa, dificilmente esse artigo do estatuto será aprovado.

É fácil de entender as preocupações da Fifa. Um estudo enviado ao governo federal calcula em US$ 100 milhões os prejuízos gerados pelo benefício da meia-entrada. A entidade, claro, não quer arcar com essa conta. Com faturamento anual de US$ 1,3 bilhão, a Fifa é, na teoria, uma organização sem fins lucrativos. Na prática, conforme denúncias apresentadas principalmente por jornais ingleses, ela teria se tornado uma fábrica de dinheiro que enriquece dirigentes. Sempre que seus interesses econômicos são feridos, a federação reage – e grita a plenos pulmões. Não tem sido raro o governo federal ouvir desaforos de caciques da entidade, inclusive do próprio presidente Joseph Blatter. Pouco tempo atrás, Blatter disse que estava preocupado com o andamento das obras para a Copa e se recusou a responder se o Brasil corria o risco de perder o evento. Claro que não corria. Era apenas jogo de cena para enviar um recado a Dilma, que andava brigada com Ricardo Teixeira, principal parceiro da Fifa no Brasil. “Virou regra: cada vez que o governo brasileiro se nega a atender a uma solicitação, alguém da Fifa fala publicamente e se diz preocupado com a infraestrutura do Brasil”, afirma o diretor de um comitê municipal da Copa de 2014.

Até uma cidade rica como São Paulo pode sofrer sanções da Fifa. Na capital paulista, a Lei Cidade Limpa, do prefeito Gilberto Kassab, proíbe letreiros e outdoors em fachadas e prédios comerciais, o que certamente vai atrapalhar as ações de marketing dos 20 parceiros comerciais da entidade. O que fazer? Mudar a legislação para liberar tudo? Nem a própria prefeitura sabe como agir. “Ainda não temos definições”, diz Gilmar Tadeu, secretário de Articulação para a Copa do Mundo de São Paulo. Nos bastidores, a capital paulista tem sofrido ameaças. A mais comum é a insinuação da perda do jogo de abertura da Copa por causa dos limites impostos pela Lei Cidade Limpa. Nos municípios, há um complicador: as eleições de 2012 devem mudar muitos gestores das cidades e o que vale hoje corre o risco de não significar muito amanhã. Por isso mesmo, há quem aposte em Brasília como sede da partida inaugural, já que a cidade não participa das eleições municipais e, portanto, pouca coisa deve ser alterada até 2014.

Embora o governo Dilma tenha endurecido mais o jogo do que seu antecessor Lula, a Fifa já ganhou diversas batalhas. Uma de suas principais patrocinadoras é uma cervejaria. Ou seja: é tão certo que a empresa estará dentro dos estádios da Copa como está garantida a participação da seleção brasileira no Mundial. Detalhe interessante: desde 2008, a venda de bebidas alcoólicas é proibida em partidas do Campeonato Brasileiro em razão de uma recomendação do Ministério Público. Além disso, muitos Estados e cidades têm legislação própria que veta o consumo de álcool em arenas esportivas. Eles vão resistir? É improvável. Os próprios responsáveis pela Copa no Brasil já tratam as restrições como algo do passado. “Se os municípios não cederem, não serão mais sede”, diz, com uma sinceridade impressionante, Francisco Mussnich, consultor jurídico do Comitê Organizador da Copa.

Foi assim na África do Sul, sede da Copa de 2010, e até na forte Alemanha, palco do Mundial de 2006. Na África, a única vitória do comitê local foi a liberação das vuvuzelas nos estádios, permitidas sob o argumento de que eram patrimônio cultural do país. Na Alemanha, fabricante mais tradicional de cerveja do planeta, a Fifa conseguiu impor uma marca americana em praticamente todas as dez sedes. A iniciativa provocou muita discussão. Apesar da onda de protestos, apenas uma cidade, Dortmund, conseguiu autorização para vender uma cerveja local nos estádios. A Fifa tem um respeito leonino por seus patrocinadores. Na Copa da África, uma criativa ação de marketing conseguiu driblar as regras da entidade. Uma empresa contratou 36 modelos loiras e as colocou na arquibancada no jogo entre Holanda e Dinamarca. As beldades estavam vestidas com minissaias e exibiam decotes generosos. Elas, claro, chamaram tanto a atenção que foram parar nas páginas de jornais do mundo inteiro. As moças faziam parte de uma estratégia publicitária de uma concorrente da patrocinadora oficial da Copa. Resultado: as meninas foram presas e soltas algumas horas depois.

Para a Copa no Brasil, a Fifa quer regulamentar a proibição de ações como essa e sugere a prisão de até dois anos para quem “prejudicar a imagem dos patrocinadores” do evento. O cerco inclui a criação de varas especiais como forma de agilizar o processo de julgamento. Não se trata de um exemplo claro de interferência indevida? “Já acabou a fase em que o Brasil se ajoelhava diante de qualquer pressão internacional”, diz Alexandre Camanho de Assis, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. “Se cedermos em pontos previstos na nossa legislação, será não só um constrangimento como um ataque à nossa soberania.” Para Robert Alvarez, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing, as manobras da Fifa são ações planejadas. “Dá para notar na escolha das sedes da Copa do Mundo um claro movimento em direção a nações institucionalmente mais fracas e que ocupam posição de destaque no ranking da corrupção, como África do Sul, Catar e Rússia.” O Brasil , portanto, tem uma oportunidade única de provar que não faz parte desse grupo.

Não são poucas as evidências de negócios suspeitos. A construção e a reforma dos estádios podem se transformar em um cipoal de irregularidades. Segundo uma fonte que acompanha de perto as atividades da Fifa no Brasil, a entidade quer repetir aqui uma estratégia adotada na Copa da África do Sul. Para driblar as licitações, a entidade estabelece critérios tão específicos que torna impossível a participação de empresas brasileiras nas concorrências para o fornecimento de materiais. De acordo com essa fonte, na Arena da Baixada, estádio do Atlético Paranaense, as cadeiras da arquibancada já estavam encomendadas, mas a Fifa esbravejou até que o negócio fosse desfeito. O motivo: os assentos não eram reclináveis e não tinham o tamanho exigido pela federação. “O curioso é que foi indicado um fornecedor europeu acostumado a trabalhar em parceria com a Fifa”, diz o executivo que não quer se identificar. Presidente do Conselho Deliberativo do clube paranaense, Gláucio Geara diz que a recomendação da compra das cadeiras foi feita pela Fifa com a anuência do Corpo de Bombeiros local.
A escolha dos gramados dos estádios também é polêmica. A Fifa quer que os atletas brilhem em um palco composto por grama híbrida (metade sintética, metade natural). Além disso, o gramado deve ter um sistema eletrônico de drenagem controlado automaticamente por sensores. “Só existe uma empresa no mundo, a belga Desso, que adota esses sistemas”, diz um dos responsáveis pelas obras no Estádio do Mineirão, em Minas Gerais. “Ou seja, nem precisa fazer licitação.” Os problemas aparecem em todas as sedes. “Queremos muito o Mundial, mas não teremos o evento a qualquer preço”, diz Ney Campello, secretário estadual de Assuntos da Copa do Mundo da Bahia. Recentemente, o governo baiano não assinou o compromisso de conceder os campos oficiais de treinamento à Fifa, por considerar que a minuta do contrato estava fora da legalidade. Uma das cláusulas previa que a entidade, caso julgasse necessário fazer obras de intervenção ou adequação de uma das áreas – que é pública, vale ressaltar –, poderia contratar o serviço e enviar a conta para o Estado. Um grupo de representantes da Fifa atua diretamente junto aos entes públicos para defender os interesses da federação. Nenhuma obra pode ser executada sem o aval do arquiteto Carlos de La Corte, consultor do Comitê Organizador Local, e todas as ações de marketing devem ser aprovadas pela dupla Jay Neuhaus e Thierry Weil, que dá expediente no Brasil e faz forte lobby junto a parlamentares e governadores.

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, é mais complicado definir diretrizes que sejam válidas para Estados tão diferentes, digamos, quanto Amazonas e São Paulo. Além de legislações regionais, existem particularidades que não podem ser desprezadas. Na capital paulista, em Belo Horizonte e Curitiba, as pessoas estão acostumadas a ver futebol não apenas nos estádios, mas em bares e restaurantes que possuem telões. A Fifa quer proibir isso (e é natural que queira mesmo proteger os direitos de imagem), mas como vai conseguir monitorar os milhares de estabelecimentos comerciais de uma cidade como São Paulo? Em Salvador e no Recife, os torcedores se aglomeram na praia para ver jogos da Copa do Mundo, mas a Fifa quer controlar tudo o que se consome ali, principalmente bebidas e marcas que não fazem parte de seu rol de patrocinadores. O Brasil possui diversas faces, mas não significa que não possua uma identidade nacional. Uma delas, e talvez a mais forte de todas, é o futebol. Querer enquadrá-lo em regras draconianas é um erro tão grave quanto perder um pênalti no último minuto de uma partida decisiva.

Com reportagem de Izabelle Torres e Michel Alecrim

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