sábado, 1 de outubro de 2011

“O cinema não vive sem a TV”

Segundo a Ancine, a TV Brasil foi a emissora aberta que mais investiu no cinema nacional em 2010. Foram exibidos 80 longas brasileiros. A Globo veio em segundo com 79 títulos e a Cultura de São Paulo em terceiro, com 73. Ao todo a TV aberta brasileira exibiu no ano passado 1749 filmes, dos quais 1516 eram estrangeiros e apenas 233 nacionais.

Laurindo Lalo Leal Filho

Segue aberta na internet a consulta pública para a elaboração de um novo marco regulatório das comunicações no Brasil. A iniciativa de um grupo de entidades ligadas ao setor antecipa-se a uma consulta oficial que, em algum momento, deve ser proposta pelo governo.

Há quase duas décadas fala-se da necessidade de uma nova lei geral para as comunicações no Brasil. Lembro do meio dos anos 1990 quando o Executivo chegou a elaborar o esboço de um projeto de lei. Na época ouvi do ministro responsável pela pasta a promessa de que o texto seria debatido publicamente em sete capitais brasileiras e depois enviado para o Congresso. Ficou na promessa.

O passo mais recente foi a entrega de uma nova proposta, elaborada ao final do governo Lula, para o ministro das Comunicações da presidenta Dilma, Paulo Bernardo. Aguarda-se sua divulgação.

Durante esses anos muita coisa mudou, tecnológica e politicamente. A convergência das mídias acelerou seu processo e o país ganhou governos mais sintonizados com os anseios da maioria da população.

Na sociedade o interesse pelo assunto ampliou-se. Antes restrita basicamente à academia e aos sindicatos de trabalhadores da área, a democratização das comunicações passou a ser tema de inúmeros outros movimentos sociais. Prova disso foi a participação ativa desses setores na 1ª Conferência Nacional de Comunicação, realizada no final de 2009.

Em maio deste ano, um seminário no Rio de Janeiro sistematizou vinte propostas para regular as comunicações e as colocou como plataforma para a consulta pública acima mencionada. Estão lá reinvindicações que, pela longevidade do processo, já estão se tornando históricas.

Por exemplo, a necessidade de maior participação da sociedade em todas as instâncias reguladoras da mídia, limites à concentração da propriedade dos meios e outorgas de concessões de radio e TV realizadas de forma transparente e democrática.

Uma outra proposta, menos discutida, ma nem por isso menos importante, trata de forma genérica da necessidade do fomento à infraestrutura e a conteúdos nacionais. Sem dúvida um mote para ampliar o debate em torno da relação cinema e TV no Brasil, questão ainda pouco tratada fora dos círculos mais diretamente envolvidos com o tema.

Segundo a Ancine, a TV Brasil foi a emissora aberta que mais investiu no cinema nacional em 2010. Foram exibidos 80 longas brasileiros. A Globo veio em segundo com 79 títulos e a Cultura de São Paulo em terceiro, com 73. Ao todo a TV aberta brasileira exibiu no ano passado 1749 filmes, dos quais 1516 eram estrangeiros e apenas 233 nacionais.

Ou seja, 86,5% das horas destinadas ao cinema pelas emissoras de televisão abertas foram ocupadas por produções vindas de fora e só 13,5% por filmes brasileiros.

Os dados são ainda mais significativos quando se compara, por exemplo, a diferença existente entre o número de filmes estrangeiros exibidos pela Globo (786) com o de nacionais: 79, ou cerca de 10%.

Diante de um quadro como esse há muito o que fazer. Um dos caminhos é através de um marco regulatório capaz de contemplar a exigência de cotas de tela na TV para filmes nacionais, assim como a obrigatoriedade do investimento das emissoras na produção cinematográfica.

Nada de muito extraordinário se nos mirarmos em exemplos internacionais, embora aqui a grita dos radiodifusores diante de propostas como essa são sempre ensurdecedoras.

Participando do programa VerTV, das TVs Brasil e Câmara, que discutiu a ausência de filmes clássicos na televisão brasileira, o cineasta Silvio Tendler fez questão de ressaltar que "o cinema não vive sem a TV".

Trata-se de uma verdade universal já percebida há algum tempo em muitos países, dos quais vários tomaram providências saneadoras para que esse casamento se concretizasse e perdurasse.

Na França, por exemplo, a relação é sólida tanto na produção quanto na veiculação dos filmes. Os canais abertos são obrigados a investir na produção cinematográfica. Assim como em outras áreas da cultura francesa, a regulamentação do audiovisual no país é baseada no princípio da exceção cultural. Ou seja, produtos considerados bens culturais, como o cinema, obedecem a leis específicas, não se submetendo às regras do mercado.

Do total de filmes exibidos por ano em cada canal de televisão, aberto ou fechado na França, 60% devem ser obras européias, e dessas, 40% precisam ser filmes falados em francês.

Esse apoio é dado também sob a forma de co-produção e pré-compra para a difusão do filme, 24 meses após lançamento em sala (ao invés de 36 meses quando o filme não é co-produzido por uma emissora de televisão).

No total, as emissoras representam em média 20% do financiamento do conjunto da produção cinematográfica francesa.

Outro exemplo, muito conhecido no Brasil, é o da TV espanhola. São inúmeros os filmes exibidos aqui que, nos créditos, apresentam o símbolo da TVE como apoiadora.

As emissoras são obrigadas a investir 6% de seu orçamento em produção de cinema estando, ao mesmo tempo, limitadas a exibição de 52 filmes estrangeiros ao ano. A diretriz "Televisões sem fronteiras", válida para toda a Comunidade Europeia, prevê a exibição de 50% de filmes europeus para as emissoras dos países do bloco.

Por aqui, enquanto se aguarda a abertura do debate pelo Executivo, o Congresso – após quatro anos de discussão – aprovou a nova lei da TV paga, com avanços significativos. Entre as conquistas está a obrigatoriedade de cotas de programas nacionais nos canais pagos dedicados à filmes, documentários, desenhos animados e dramaturgia. É o chamado “espaço qualificado”, segundo a lei.

As cotas, nesse caso, ficam muito longe daquilo que é praticado na Europa. A lei brasileira determina a obrigatoriedade de apenas 3h30 de exibição de produção nacional por semana. Ou trinta minutos diários. Mesmo restrito, esse espaço nacional, já se constitui num avanço. Ele deve não só ser defendido e preservado, mas ampliado na TV paga e estendido para a TV aberta.

É ai que entra o debate sobre a necessidade de uma lei de comunicação moderna que coloque o Brasil no mesmo nível já alcançado nesse setor pelas maiores democracias do mundo. Sem deixar de nela incluir apoio imprescidível da televisão à produção e a veiculação do cinema nacional, ainda um importante guardião da cultura brasileira.

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

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