As outras sepulturas
Sempre é bom começar citando Hegel. Porque dá uma certa
classe ao texto e porque, a partir de Hegel, você pode ir para qualquer lado,
para a esquerda e/ou para a direita. Marx afiou suas teses criticando e às
vezes assimilando Hegel, e Hegel, ao mesmo tempo em que sacudia o pensamento
conservador europeu, era o exemplo mais acabado do que Marx abominava, o
filósofo que explicava o mundo em vez de tentar mudá-lo. Mas minha citação de
Hegel não tem nada a ver com esta divisão, mesmo porque é uma que todo mundo –
a partir da redescoberta da peça no século 18 – endossaria. Hegel disse que a
Antígona, de Sófocles, era o mais sublime produto da mente humana, e sua
heroína a mais admirável personagem, da História.
Escrita 400 anos antes de Cristo, a peça conta a história da
filha de Édipo, rei de Tebas, com a sua mulher (e mãe, lembra?), Jocasta.
Antígona quer enterrar seu irmão, morto num ataque a Tebas, contrariando as
ordens do rei Creonte, para quem o corpo do traidor, que permanecerá insepulto,
pertence ao Estado e não à sua família. Antígona rouba o corpo do irmão para
que sua alma, sem os ritos fúnebres, não se perca no mundo dos mortos, e o
sepulta no meio da noite. Para punir sua desobediência, Creonte a condena a ser
enterrada viva. Muitos conflitos são desnudados na peça, mas o principal deles
é entre o Estado e o indivíduo, entre a lei fria e costumes antigos, entre o
direito do soberano e o direito do sangue comum. O fascínio da peça para Hegel
e outros tem muito a ver com o renascente interesse pela cultura grega na
Europa de então mas também com a revolução que acontecia nas relações
estado/cidadão no explosivo começo do século 19.
A história de Antígona se adapta ao momento no Brasil, quando
se tenta investigar o que permanece simultaneamente enterrado e insepulto no
nosso passado, tantos anos depois do fim da ditadura. Os corpos ainda não foram
devolvidos às suas famílias, os direitos do sangue ainda não se impuseram aos
direitos do Estado algoz, os ritos fúnebres de muitos continuam restritos à
imaginação de novas Antígonas, tão trágicas quanto a Antígona grega. Os
arquivos da ditadura estão sendo aos poucos desenterrados. Já passou da hora de
abrir as outras sepulturas
Artigo de Luis Fernando Veríssimo, publicado hoje em diversos
jornais do País.
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