Por Natalia Viana
“Como a tortura é vista como uma prática de
uma pequena minoria e não das forças militares brasileiras como um todo, a
assistência militar americana não é tida como fomentadora de práticas
repressivas”. Foi com essa frase que o então embaixador dos EUA em Brasília,
John Crimmins, encerrou o despacho diplomático enviado a Washington em 12 de
março de 1976. Tratava-se de uma avaliação oficial sobre a situação dos
direitos humanos no país, para que o país pudesse continuar recebendo
assistência do governo americano.
Mas o relatório enviado
por Crimmins, assim como sua esdrúxula conclusão, são desmentidos pelos
próprios documentos da embaixada encontrados na Biblioteca Pública de
Documentos Diplomáticos dos EUA (PlusD), do WikiLeaks. Em diversos despachos,
os representantes americanos mostram estar plenamente cientes das torturas
praticadas pelos agentes da repressão. Mesmo assim, os EUA investiam pesado em
armar e treinar os militares brasileiros e consideravam essa assistência
estratégica para manter a proximidade com os militares no poder.
Um capitão do exército
brasileiro, por exemplo, recebeu, durante 13 semanas, formação para “forças
especiais” em Fort Bragg, na Carolina do Norte. Diante das possíveis críticas
do Congresso, que questionava o governo americano sobre o apoio a ditaduras
sulamericanas, o Departamento de Estado até tentou cancelar o curso. A resposta
da embaixada não poderia ser mais clara:
“Neste país em que há panelinhas ao redor de cada um dos membros de alto
escalão do governo, o candidato selecionado [para treinamento pelos EUA] é
assessor de um general sênior e politicamente poderoso”, descreve o despacho
confidencial. “É claro que se cancelarmos [a ida dele] vamos perder parte da
boa vontade que esperávamos ter”.
Em muitos despachos
Crimmins elogia o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), afirmando que embora
as “prisões arbitrárias, tortura e prisões por crimes políticos de opinião ou
livre associação” continuassem sendo preocupação mundial, “os esforços da
administração Geisel para submeter o aparato de segurança ao seu controle e
acabar com abusos notórios têm gerado ganhos e perdas para os dois lados. No
momento presente, a administração tem vantagem”.
O então embaixador
também negava a tortura no governo Geisel: “Relatos indicam que não há pessoas
sendo torturadas agora e o clamor público em casos de prisão está sendo
respondido prontamente”, escreveu em março de 1976, embora admitisse que “a
prática” era “nova” e que “a guerra contra a subversão” continuava. E concluiu:
“Enquanto houver prisões, permanece o potencial para abusos”. Segundo ele,
diplomatas e militares americanos haviam manifestado “preocupações” em relação
a maus tratos a congressistas, advogados, policiais e religiosos, sem no
entanto recusar carta branca para que os EUA mantivessem assistência militar
dos EUA para o país.
No mesmo relatório o
embaixador ainda elogiava o único relatório público sobre a tortura, o “Relatório
Sobre as Acusações de Tortura no Brasil”, publicado pela Anistia Internacional.
“Achamos o relatório altamente relevante e preciso”, escreve, muito embora a
conclusão da Anisitia fosse diametralmente oposta à dele. “A tortura, no
Brasil, não é nem pode ser o resultado de excessos individuais; nem é, nem pode
ser considerada uma reação exagerada a atos terroristas para derrubar um regime
em dificuldade que, por seu lado, provoca o famoso ‘ciclo da violência’. Isso
não sucede, porque já não existe luta armada no Brasil. A tortura é
manifestação e necessidade de um modelo político num contexto jurídico e
socioeconômico”, concluiu o advogado francês Georges Pinet no relatório.
No final daquele ano, o
exército brasileiro cometeria a famigerada chacina da Lapa, em São Paulo, numa
operação deflagrada a partir da tortura do preso João Baptista Franco Drummond,
dirigente do PC do B. Os militares invadiram a sede clandestina do PC do B – o
partido era proibido de existir legalmente – e executaram Ângela Arroyo e Pedro
Pomar, membros do comitê central. Em seguida, foram presos e torturados os
dirigentes Elza Monnerat, Haroldo de Lima, Aldo Arantes, Joaquim de Lima e
Maria Trindade. Nos anos Geisel, pelo menos 45 militantes
da esquerda foram considerados desaparecidos, segundo o livro “Habeas Corpus”,
da Secretaria Especial de Direitos Humanos.
O entusiasmo de
Crimmins com a assistência militar dos EUA ao Brasil, apesar dos relatos de
tortura, já havia sido revelado pelo repórter Rubens Valente na Folha de S.
Paulo, com a divulgação de documentos de 1973 e 1974 assinados pelo embaixador.
Nesses documentos, ele chegou a afirmar mais de uma vez que a manutenção desse
apoio poderia ser uma maneira dos EUA influenciarem o governo brasileiro a
coibir abusos.
A estratégia não surtiu
efeito, e Crimmins mudou o argumento. Foi em 1975 que o embaixador alegou pela
primeira vez que a tortura era “prática de uma minoria” para defender a
manutenção do apoio militar.
Se quisesse, o governo
americano poderia ter se valido do artigo 32 da Lei de Assistência ao
Estrangeiro, que previa o corte de assistência financeira a países que cometiam
violações de direitos humanos.
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