Primeiro grande encontro sindical do período da abertura foi feito ainda sob vigilância
Por: Vitor Nuzzi – Revista do Brasil
Conclat foi a arena para o novo sindicalismo moldar sua cara e apontar seu rumo (foto: © Jesus Carlos/Imagem Latina)
Em agosto de 1981, o Brasil estava com um pé na democracia. Foi nesse clima que, pela primeira e última vez, todas as correntes do movimento sindical se reuniram para discutir a formação de uma central sindical. Autênticos, comunistas, conservadores, moderados, pelegos, radicais, revolucionários – como se classificavam –, 5.036 delegados de 1.091 entidades sindicais estavam na Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, a 1ª Conclat, na Praia Grande, litoral paulista. Mas como ainda se vivia sob a sombra de donos do poder que não queriam largar o osso, a conferência foi acompanhada em detalhes pelos órgãos de inteligência.
Documentos disponíveis no Arquivo Público do Estado de São Paulo mostram, por exemplo, que agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Santos demonstravam apreensão. “A ocorrência da 1ª Conclat preocupa sobremaneira, em face do considerável aglomerado ou concentração de sindicalistas, provavelmente infiltrados por membros de facções de esquerda (...), mormente quando se sabe que a meta prioritária de toda a esquerda seria a reorganização do CGT sob a denominação CUT”, diz relatório de 11 de agosto, dez dias antes do início da conferência. O Comando Geral dos Trabalhadores era formado por confederações, sob influência de PTB e PCB, atuante no governo João Goulart.
Mas grande parte dos delegados presentes à Conclat queria justamente romper com o modelo que se baseava no sistema confederativo, ou seja, com predomínio de confederações e federações e pouca participação das bases. “Nos anos 1980, havia uma semente disseminada nas oposições sindicais: democratização no sindicato, organização de baixo para cima”, lembra Olívio Dutra, na época dirigente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, reconquistado após um período de intervenção – prática comum adotada pelo governo militar em represália às greves que já se espalhavam no país.
Para Edson Barbeiro dos Campos, representante do Sindicato dos Bancários de São Paulo e um dos coordenadores da conferência, a Conclat foi importante inclusive para inibir ações autoritárias do governo. “Acho que a quantidade de pessoas, a mobilização, foi fundamental para que o governo repensasse o processo de intervenção generalizada nos sindicatos. Se o movimento sindical tivesse se dividido para fazer duas conferências, teria sido muito mais fácil para a ditadura tomar providências”, acrescenta Campos, hoje assessor da presidência da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. “Foi uma enorme demonstração de força. Abriu-se caminho para a criação de centrais e para ter um outro grau de relacionamento com os empresários e, de certa forma, com os governos estaduais.”
Conteúdo subversivo
Outro relatório do Dops, posterior ao evento, define-o como “um verdadeiro congresso de cúpula socialista-comunista, onde farto material de literatura de esquerda foi distribuído e vendido”. E destacava o conteúdo, “subversivo”, dos debates. “Predominaram as violentas críticas ao regime vigente, ao desemprego, à estrutura sindical brasileira, às multinacionais, às autoridades constituídas, ao presidente da República, ao governador do Estado de São Paulo, ao ministro Delfim Netto, ao Pacote da Previdência e à situação do trabalhador rural brasileiro.”
Na época da Conclat, já havia sido aprovada a Lei da Anistia (1979), tema polêmico até hoje. Mas o país ainda convivia com ameaças de retrocesso por parte de um segmento mais linha-dura entre os militares. Essas ameaças se expressavam por atentados, como à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1980, e tentativas, como no Riocentro, em 1981, que pretendiam tumultuar um show de 1º de Maio.
Nesse ambiente de rearticulação política entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, foi realizado o Encontro Nacional dos Trabalhadores em Oposição à Estrutura Sindical (Entoes). Surgiu a Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindical (Anampos), juntando setores da igreja, universidades, trabalhadores, intelectuais, sob influência do recém-criado Partido dos Trabalhadores. Em outro polo, agia a Unidade Sindical, reunindo dirigentes tradicionais ligados, principalmente, ao PCB. “O Brasil estava todo em uma efervescência, em consequência dos movimentos sociais e organizativos”, lembra Avelino Ganzer, então dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (PA), que em 1983 se tornaria o primeiro vice-presidente da CUT. “O novo sindicalismo trazia princípios de base, classistas, de autonomia e independência perante os partidos e o Estado, uma questão que deve ser muito avaliada hoje.”
Agente FOX-06
Na política, com o fim do bipartidarismo imposto desde 1964, era tempo de recomposição. O PT havia sido criado em 1980. A sigla PTB era motivo de disputa entre Leonel Brizola e Ivete Vargas. O veterano político criou, então, o PDT. Os partidos comunistas saíam da clandestinidade. Nas eleições quase gerais que se realizariam em 1982 (só não elegeria o presidente da República), o PMDB iria se afirmar como principal partido da oposição.
O movimento sindical já incomodava o poder de plantão. Surgia uma geração que depois seria associada com o “novo sindicalismo”, propondo mudanças estruturais e modernização nas relações do trabalho. Essa geração, identificada por Lula e outros, iria se chocar com dirigentes apegados à estrutura oficial, resistentes a mudanças.
O agente FOX-06, do Dops paulista, fazia sua análise da Conclat. A formação da CUT, segundo ele, dividia “interesses políticos do PCB, PCdoB e MR-8, por outro lado o PT e os representantes da Igreja”. Zeloso, destacou a presença do líder comunista Luiz Carlos Prestes no plenário, junto com personalidades como dom Cláudio Hummes (então bispo da Diocese de Santo André), Ulysses Guimarães (liderança mais expressiva do PMDB) e Teotônio Vilela (que rompera com a Arena, o partido do regime militar, para se tornar figura emblemática da redemocratização). Em seu relatório, de 11 páginas, o agente anotou até chapas de carros estacionados ali perto, inclusive oficiais.
E o imposto sindical...
Entre as resoluções da Conclat, algumas são conhecidas até hoje, como a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. Mas a principal decisão foi a criação da Comissão Nacional Pró-CUT – responsável por organizar um congresso no ano seguinte para fundar a central. A comissão eleita tinha 56 integrantes, 32 de sindicatos urbanos e 24 de rurais. Chegar a essa composição, porém, exigiu horas de reuniões, depois que o plenário se dividiu entre duas chapas. A votação foi apertada.
Como não era possível dizer quem tinha ganhado, os líderes do encontro partiram para outra reunião e quebraram a cabeça para formar chapa única. Os nomes de Waldemar Rossi, líder da oposição metalúrgica de São Paulo, de um lado, e de Joaquinzão, do outro, não passaram. “Temiam a possibilidade de Lula obter a hegemonia do movimento sindical”, lembra Jair Meneguelli, primeiro presidente da CUT e hoje à frente do Conselho Nacional do Sesi.
O congresso previsto só saiu dois anos depois. Começavam a se consolidar as diferenças entre os sindicalistas. Se foi difícil montar uma central, hoje existem seis formalmente legalizadas. A Central Sindical e Popular Conlutas, criada em 2010, ainda não foi reconhecida. Certos temas continuam sendo polêmicos. “Magoa ainda não ter acabado o imposto sindical”, diz Clara Ant.Para Clara Ant, na época diretora do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, havia uma situação de “empate técnico” no encontro. “Era um equilíbrio delicadíssimo, a rigor, entre quem queria e quem não queria formar a CUT. A minha convicção é que, se a CUT não fosse criada, não ia ter nenhuma central”, afirma Clara, hoje assessora do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Instituto Lula, novo nome do antigo Instituto Cidadania. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (atual ABC) de 1975 a 1981 e um dos criadores do PT, em 1980, Lula era o mais destacado representante dos, à época, chamados “autênticos” da Conclat.
Aplausos para Glauber
De certa forma, a história daquela conferência tem início em 1977, segundo relato de Hugo Perez, então presidente da Federação dos Urbanitários de São Paulo e atualmente assessor político da Força Sindical. Naquele ano, os empresários haviam realizado o Congresso Nacional das Classes Produtoras (Conclap), atiçando o movimento sindical, que já se organizava em campanhas salariais, turbinadas pela revelação de que houvera manipulação de dados oficiais da inflação de 1973. Convocado para ser orador da turma de um curso do Ministério do Trabalho perante o presidente Ernesto Geisel, o sindicalista falou sobre a necessidade de os trabalhadores também realizarem seu congresso. “Ele (Geisel) não disse uma palavra”, lembra Hugo, “e a palavra ‘congresso’ rolou por meses.” A partir daí, começaram as conversas e reuniões.
O senador Paulo Paim (PT-RS), então dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Canoas, considera a Conclat uma “revolução pela via democrática” no país. “Todos estávamos juntos, por um sindicalismo autêntico, rebelde, combativo, corajoso.”
Entre debates e enfrentamentos políticos, sobrou um momento para a abstração. Clara Ant ainda se emociona ao lembrar a reação à notícia, durante o encontro, da morte do cineasta Glauber Rocha. O plenário fazia um minuto de silêncio quando alguém gritou: “Os artistas precisam de aplauso!” Os murmúrios deram vez às palmas.
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