Quando eu era criança* [texto original deste post] - por Luiz Carlos Azenha
Quando eu era criança, em Bauru, existia uma figura quase mítica chamada coronel Amazonas.
Eu digo mítica porque não consigo encontrar hoje em dia informação sobre este personagem, que com certeza foi importante para implantar a primeira rede de televisão de alcance nacional no Brasil, se de fato ele fez o que era atribuído a ele.
O coronel Amazonas era o homem das torres.
Naquele tempo não existia satélite e as imagens de TV eram distribuídas a partir de torres que ficavam na parte alta das cidades.
Era o tempo do regime militar e uma das poucas coisas que as pessoas reinvindicavam, então, era um sinal de TV sem chuvisco.
Teve muito vereador e prefeito do interior que se elegeu graças ao bom sinal de TV que “trazia” para a cidade.
O mítico personagem de minha infância, o coronel Amazonas, era quem cuidava da expansão da Rede Globo.
Pelo que contavam, ele chegava na Prefeitura, pedia um terreno na parte alta da cidade, ganhava o terreno público, instalava os equipamentos e o sinal da Globo chegava sem chuviscos.
A Globo tinha uma relação simbiótica com o regime e facilidade para importar equipamentos.
Era uma vantagem enorme em relação aos concorrentes, já que ninguém queria ver TV com chuviscos.
O sinal da Globo era limpinho. O das outras emissoras, quando chegava, era irregular.
Estou falando do tempo em que a TV tinha acabado de ser importada dos Estados Unidos.
Do tempo em que a doutrina de segurança nacional tinha acabado de ser importada dos Estados Unidos.
Do tempo em que parte da esquerda brasileira queria importar o foquismo, de Cuba.
O foquismo dizia que para fazer a revolução você precisava criar um foco numa área geográfica e, a partir daí, expandir o bolo.
A esquerda queria expandir o bolo para fazer a revolução.
A direita dizia que era preciso primeiro crescer o bolo, para só depois dividir.
O foquismo não foi para frente no Brasil, mas lutar contra ele foi a justificativa para que o regime militar e a Rede Globo fossem para a frente.
O regime acreditava que era preciso integrar o Brasil e que isso seria feito por uma emissora de TV de alcance nacional.
A Globo cresceu junto com a Embratel, que era a empresa pública de comunicações.
O coronel Amazonas, funcionário da Globo, era o nexo do arranjo entre o Estado e a iniciativa privada, financiado com dinheiro público.
Dei esse exemplo porque não dá para falar em mídia no Brasil sem falar em história da mídia.
A história da mídia brasileira é marcada pela relação dela com o Estado.
Foi D. João VI quem criou a Imprensa Nacional.
Não foi por acaso que a TV Excelsior, que pertencia a um empresário que se opôs ao golpe de 64, faliu, enquanto outros grupos de mídia, os que apoiaram o regime, se deram bem.
Quando o regime militar decidiu criar novas redes de TV no Brasil, o grupo Jornal do Brasil, que tinha um jornalismo combativo, se candidatou.
Mas alguém não deixou.
Ganharam o Silvio Santos e o Bloch**, cujas empresas mal ou bem estão aí até hoje (a TV Manchete, do Bloch, virou Rede TV, a do Pânico).
O JB agora é um site na internet.
Com a TV, você alavanca outros negócios. No bom e no mau sentido.
A Globo fez o jornal O Globo crescer com anúncios na programação de sábado, que promoviam a edição de domingo de O Globo.
Assim começou a morrer o Jornal do Brasil.
Hoje chamam de sinergia, mas naquele tempo era ‘uma mão lava a outra’.
Meu ponto é que a tremenda concentração no controle dos meios de comunicação e a tremenda concentração das verbas publicitárias no Brasil, uma das maiores do mundo, não é por acaso.
É fruto de uma relação simbiótica entre poder e mídia.
E poucos tem interesse em se livrar dela.
Hoje o maior anunciante no Brasil é o governo federal. As agencias de publicidade tem um troço chamado BV, bônus de valorização, pelo qual elas recebem incentivo financeiro para manter os anúncios com os grupos de mídia que já são grandes.
É um instrumento para tornar a concentração permanente.
Podemos dizer que na mídia o capitalismo ainda não chegou ao Brasil.
Nenhum de nós tem qualquer chance de competir em igualdade de condições, ainda mais porque políticos são donos de meios de comunicação e os meios de comunicação são donos dos políticos.
Não é por acaso que o Sarney é dono do Maranhão e dono da mídia do Maranhão.
Se forem votar no Congresso uma lei que afete seus negócios, o Sarney vai votar em defesa de seus negócios ou em defesa do interesse público?
Capitania hereditária, versão do século 21.
É por isso que não temos leis sobre propriedade cruzada, por exemplo.
(Adendo: lei que proíbe que o dono de uma emissora de TV tenha também jornais ou emissoras de rádio no mesmo mercado, o que dá a ele vantagens sobre os concorrentes)
No Sul, o dono da rede de TV é dono de emissoras de rádio e dono de jornais.
Portanto, é dono dos políticos que, em tese, seriam eleitos para lutar, por exemplo, contra a propriedade cruzada.
Os políticos que trabalham contra a propriedade cruzada são reféns da propriedade cruzada.
Quem atacar a propriedade cruzada é demonizado na mídia pelos beneficiários dela.
A defesa deste modelo ‘perfeito’ é tão grande que quando você mostra que a liberdade de imprensa no Brasil é exercida por poucos é acusado de ser ’sujo’.
Ou de ser contra a liberdade de imprensa.
Fazem uma confusão deliberada entre a liberdade dos empresários, que é de poucos, e a liberdade de expressão, que deveria ser de todos, mas não é.
De maneira que, quando vocês querem falar em ‘ecologia das novas mídias’, um termo da moda, eu diria que neste ambiente que eu acabei de descrever os peixes pequenos nunca vão crescer.
Twitter, Facebook, redes sociais?
O impacto de tudo isso é relativamente pequeno e não há nada que impeça os grandes grupos de mídia de disputarem esses espaços com todos nós.
Quem terá mais “likes” no Facebook, uma emissora de TV que é vista por milhões ou eu?
Quem terá mais seguidores no Twitter, a Patrícia Poeta, que aparece na Globo, ou o Leandro Fortes?
Não existem “novas mídias” no Brasil.
É a velha mídia que trocou de roupa.
PS do Viomundo: Durante o debate, um dos participantes definiu a “ecologia das novas mídias” como as 300 pessoas que ganham dinheiro como ‘agregadas’ de um portal. É o mesmo princípio que fez o Huffington Post bombar, ou seja, juntar blogueiros de todos os Estados Unidos que ganhavam algum para transferir tráfego para o portal — e receber algum (tráfego e dinheiro) de volta. Ou seja, os blogueiros ralam desesperadamente produzindo conteúdo para o portal, que fatura sobre o trabalho deles e devolve algum. Sem qualquer compromisso ou benefício trabalhista. Quem ganhou dinheiro mesmo com este ‘modelo de negócios’ foi a Ariana Huffington. Eu diria que é o modelo Casa Grande e Senzala das novas mídias. O blogueiro ganha algum, desde que se conforme com a senzala.
* Esse texto foi escrito para um seminário sobre Novas Mídias, do qual participei em São Paulo. O texto publicado antes do debate sofreu modificações para refletir outras ideias tratadas na discussão.
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