EM NOME DA VERDADE
Atuais e ex-ministros da Justiça e de Direitos Humanos se uniram, na última
semana, em favor da instalação da Comissão da Verdade no Congresso
Congresso vota, nesta semana, a criação da Comissão da Verdade. Pelo menos quatro grandes grupos de mistérios dos anos de repressão terão de ser desvendados, se parlamentares e autoridades quiserem virar essa triste página da história
Mariana Queiroz Barboza e Vasconcelo Quadros – Revista Isto É
Era outubro de 1973, o período mais duro da ditadura militar, quando 750 homens das Forças Armadas combateram, entre os rios Araguaia e Tocantins, no sul do Pará, guerrilheiros do PCdoB que tentaram promover uma revolução socialista a partir do campo. As consequências da Guerrilha do Araguaia são conhecidas. Houve um banho de sangue. Pelo lado da guerrilha foram 80 mortos e desaparecidos – 59 militantes e 21 camponeses que aderiram à rebelião. Os militares sofreram 16 baixas. O caso, porém, continua cercado de vários mistérios. Os militares, por exemplo, jamais permitiram que o País soubesse quem foram os responsáveis pela ordem de extermínio geral e por que um grupo de 23 guerrilheiros – aprisionados em confrontos ou que se renderam a partir da segunda fase do conflito – foi executado. Já o PCdoB nunca justificou por que não foi ordenada a retirada dos militantes quando já não havia mais chances de êxito e os líderes da rebelião haviam partido para São Paulo. Para tentar elucidar esses e outros episódios de violação de direitos humanos no Brasil de 1946 a 1988, o governo, antigos e atuais ministros e líderes partidários negociaram um acordo para a votação, na próxima semana, do projeto que cria a Comissão da Verdade. Enquanto as autoridades e os parlamentares buscavam solucionar o impasse político, ISTOÉ procurou especialistas, historiadores, militantes de esquerda e integrantes do Exército para entender, afinal, qual a verdade que se busca. E quais são os outros grandes mistérios que ainda cercam os casos de tortura, mortes e desaparecimentos ocorridos durante os momentos mais violentos da repressão no País.
O que se sabe é que perduram pelo menos quatro grandes vertentes de mistérios a ser desvendados na história recente do País. O primeiro desses grupos refere-se à fase inicial da revolução, de 1964 até o sequestro do embaixador suíço Giovanni Butcher, em 1970, quando a matança de inimigos ainda não havia se constituído propriamente numa clara política de governo. Mesmo assim, o aparelho de repressão produziu uma série de vítimas. Os episódios foram pontuais e não há documentos oficiais conhecidos capazes de esclarecê-los. Entre os mais emblemáticos está a morte do ex-sargento Manoel Raimundo Soares, cujo cadáver foi encontrado boiando no rio Jacuí, em Porto Alegre, no que ficou conhecido como “caso das mãos amarradas”, de 1966. Também é dessa fase o assassinato do ex-deputado Rubens Paiva. Sequestrado em 20 de janeiro de 1971 dentro de sua própria casa, no Rio de Janeiro, Paiva foi morto após dois dias de tortura no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). A ocultação da morte envolveu esforços da cúpula do governo e até hoje pouco se sabe dela. O assassinato do jornalista Vladimir Herzog, embora tenha ocorrido um pouco depois, em 1974, também pode ser incluído entre casos pontuais ainda sem explicação.
A outra vertente de mistério pertence à fase da chamada política de extermínio urbano, que vitimou militantes que retornaram de Cuba, banidos pelo regime militar e dirigentes de organizações de esquerda. É o momento em que começa a ficar claro que a repressão e a tortura fazem parte de uma política de Estado e não são apenas obras de agentes descontrolados dos porões da tortura. Uma das vítimas famosas do período é o estudante Frederico Eduardo Mayr, morto sob tortura. Os documentos conhecidos sobre sua prisão são típicos daqueles anos de cumbo: contraditórios e inconclusivos.
O terceiro grupo de episódios pendentes de esclarecimento refere-se aos fatos ocorridos a partir de outubro de 1973 durante a Guerrilha do Araguaia, quando todos os que estavam em batalha morreram. Integrante do grupo de trabalho criado pelo Ministério da Defesa para reconstituir o conflito, Myrian Alves sustenta que é no movimento organizado pelo PCdoB que estão os principais “esqueletos” escondidos tanto pela ditadura quanto pelo próprio partido. Entre eles, o sumiço do soldado Valdir de Paula, que pertencia ao comando militar do Pará.
O quarto e último grande grupo de mistérios do período da repressão remete já ao fim da ditadura militar, quando são exterminados dirigentes do PCB, durante a chamada Operação Radar. São casos como o de Orlando Bonfim Júnior, um dos “desaparecidos” do período. Não há sinais de Bonfim desde que ele foi levado por agentes da repressão ao presídio Castelo Branco, em outubro de 1975. “A resposta que buscamos é única: a verdade, o que aconteceu, onde estão os desaparecidos. Vamos esclarecer e virar essa página”, diz o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Para Paulo Abrão, secretário nacional de Justiça, a Comissão chega num instante em que o efeito do tempo é benéfico, “porque a distância dos fatos permite que hoje eles possam ser administrados de forma menos apaixonada”.
Pelo acordo fechado com o colégio de líderes pelos ministros José Eduardo Cardozo (Justiça), Celso Amorim (Defesa) e Maria do Rosário (Direitos Humanos), é provável que o projeto que cria a Comissão da Verdade seja aprovado na íntegra, como quer o governo. Por ele, a Comissão terá dois anos de vigência, seus sete integrantes serão insubstituíveis e terão ainda completa autonomia para revirar a história em busca da verdade. Ex-militante do PCdoB, preso na Guerrilha do Araguaia, torturado e condenado pela Justiça Militar, o ex-deputado José Genoino, assessor especial do Ministério da Defesa, afirma que não há riscos de a investigação descambar para o revanchismo nem de recolocar na agenda a lei de anistia ou a punição dos torturadores. Ele diz que o que foi pactuado pacifica o País, repõe a verdade histórica e afasta as animosidades que alimentaram a “guerra fria” entre esquerda e direita nos últimos 50 anos. “A comissão não será palanque e nem discutirá o que já foi resolvido pela anistia”, garante Genoino.
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