Em entrevista à Carta Maior, Fayez A. Saqqa, deputado do Parlamento palestino, fala sobre algumas das questões centrais associadas ao pedido de reconhecimento na ONU: que forma terá esse Estado, o que ocorrerá com os mais de cinco milhões de refugiados palestinos, como fará a direção palestina para tornar tangível a reconciliação entre o grupo fundamentalista Hamas, que controla Gaza, e a Autoridade Palestina, que governa a Cisjordânia, qual será o futuro da iniciativa uma vez que os EUA a vete na ONU?
Eduardo Febbro - Direto da Cisjordânia
No dia seguinte ao pedido de reconhecimento do Estado Palestino na ONU os palestinos da Cisjordânia seguiam festejando. Desde Jerusalém Oriental, passando por pequenas localidades dos territórios, quase não havia automóvel ou janela que não sacudisse a bandeira palestina. Muitas questões centrais, porém, estão em suspenso: que forma terá esse Estado, o que ocorrerá com os mais de cinco milhões de refugiados palestinos, como fará a direção palestina para tornar tangível a reconciliação entre o grupo fundamentalista Hamas, que controla Gaza, e a Autoridade Palestina, que governa a Cisjordânia, qual será o futuro da iniciativa uma vez que os EUA a vete na ONU?
Fayez A. Saqqa não perde nem as esperanças, nem a vontade, nem o humor, nem a lucidez. Esse deputado do Parlamento palestino já viu muitas derrotas, muitos exílios e muitas vitórias para não reconhecer a dificuldade do futuro ou a forma pela qual “o mundo está mudando”. A janela de seu escritório em Belpem dá para uma magnífica paisagem da Judeia. Uma rua acima está a Basílica da Natividade e para baixo está o campo de refugiados palestinos de Aida, onde residem parte dos palestinos que perderam suas casas em 1948. Fayez Saqqa conta que se emocionou até às lágrimas quando escutou os dirigentes latino-americanos na ONU e celebra o apoio que os palestinos recebem nas Nações Unidas, que associa a “um novo despertar”.
- A criação do Estado soberano e independente deve compreender Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental. É preciso lembrar que esta Palestina não é mais do que 22% de nossa palestina histórica. Já fizemos um grande sacrifício para conseguir a paz. Na época da União Soviética havia países sobre os quais não se ouvia falar: Lituânia e Estônia, por exemplo. Muitos anos depois, essas nações se tornaram países soberanos nas Nações Unidas e exercem seu direito à livre autodeterminação. Há poucos meses, o Sudão do Sul ingressou na ONU como novo Estado e tem sua bandeira tremulando nas Nações Unidas. Nós não entendemos por que a força tem que estar acima do direito e da legalidade. Não se pode seguir fazendo com que as vítimas paguem o preço de uma agressão brutal. Os fatos consumados pela força militar nunca devem ser admitidos pelo direito internacional. Mas a criação deste Estado em 22% de nossa terra não resolve todo o problema.
O passo seguinte diz respeito aos refugiados palestinos. Esse tema deverá ser colocado no processo da criação do Estado Palestino para buscar soluções tangíveis, para que milhões de palestinos vejam que recuperaram seus direitos. O presidente Mahmud Abbas usou as palavras exatas na ONU sobre o momento que o vive o povo palestino e a causa palestina. Para nós, foi um discurso político e moral muito importante. Seguimos carregando na mão o ramo de oliveira da paz. Falamos de negociações, mas não como as que ocorreram nestes vinte anos ao longo dos quais o juiz foi parte. Os Estados Unidos e o quarteto para o Oriente Médio apoiaram a política israelense de extensão das colônias e confisco de terras e, de vez em quando, nos anestesiavam com uma bela declaração, mas nada mudava de concreto. Agora, a causa palestina excedeu os limites do povo palestino. É uma causa de justiça e paz em todo o mundo.
Pergunte a qualquer pessoa, de Marrocos a Bagdá, qual é o principal problema da nação árabe e ela dirá: a causa palestina. Oxalá o presidente Obama se dê conta que esse duplo discurso que utiliza para a Primavera Árabe e o outro, a 180 graus, sobre o povo palestino, impedindo que falemos de nossos direitos legítimos, não vai lhe trazer nada de bom no mundo árabe. Ninguém acreditará em suas palavras. O discurso de Obama foi o pior que um presidente dos EUA pronunciou ao longo de muitas décadas.
Qual pode ser o ponto de articulação entre o pedido de reconhecimento de um Estado Palestino e a realidade? Não ficará tudo no ar com o já antecipado veto norteamericano?
- Nós não temos a sexta frota no mar para nos ajudar, nem temos o exército vermelho, nem amarelo, nem verde. Temos a vontade de nosso povo de recuperar seus direitos. Temos a legalidade internacional. Temos sofrido durante 63 anos. Sabemos todos que amanhã não haverá um Estado Palestino soberano, e sabemos que os Estados Unidos seguem apoiando a ocupação israelense, que é um sócio dessa ocupação. Sabemos também que, na Europa, é preciso acertar muitos assuntos para seguir falando de irmandade, fraternidade e justiça. São palavras ocas, essa gente mantem a mentalidade neocolonial no Oriente Médio. Foram correndo a Líbia para repartir o petróleo entre eles e não pelos direitos do povo líbio. Na Palestina estão fazendo o mesmo, mas na direção contrária, seguem justificando a ocupação.
Nós seguiremos lutando, Até agora ninguém nos ofereceu nada substancial para recuperar nossos direitos. Nós falamos de fronteiras, Israel não fala de fronteiras, nós falamos do fim da colonização, Israel não quer saber disso. Os colonos que ocuparam nossas terras cometeram um crime de guerra. O primeiro ministro Benjamin Netanyahu disse: “vamos negociar essa noite”. Estamos negociando há vinte anos e nunca nos disseram que estão dispostos a aceitar a legalidade internacional como base das negociações. A comunidade internacional não pode obrigar um povo ocupado a negociar a liberdade com o ocupante. Quando ocorre uma agressão na rua se vai a um juiz para que ele decida quem é o culpado.
Não se pode dizer a quem é agredido que se acerte com o agressor. Como é que vou negociar com ele se ele tem a força e eu não? Israel é a quarta ou quinta potência militar do mundo apoiada pela primeira potência mundial, que são os Estados Unidos. E, a partir dessa posição, dizem aos palestinos: negociem. É preciso tirar o carrasco que está sobre a vítima. Aí sim vamos negociar, mas ali onde é possível negociar, no Tribunal Internacional e na ONU. Esta é a realidade. Não podem seguir nos dizendo: negociem com Netanyahu. Neste casso dissolvam as Nações Unidas, rompam as convenções de Genebra e que cada um faça o que bem entender.
Fica, porém, um problema interno maior: a reconciliação palestina, ou seja, um acordo com o Hamas.
Creio que, apesar do que diz, o Hamas entendeu a importância do passo dado por Mahmud Abbas. Retomaremos as negociações com o Hamas, formaremos um governo de unidade e convocaremos as eleições para o ano que vem tal como pactuamos com o Hamas no último acordo que firmamos no Cairo. Nos reconciliaremos com o Hamas porque, assim, não andaremos para trás. Nossa unidade é capital. No entanto, o Hamas não pode tomar a população de Gaza como refém. Devem abrir Gaza às eleições e à vontade popular. Mas o que ocorreu na ONU, o apoio que nosso presidente recebeu do povo palestino, foi um sufrágio a favor da linha política da OLP. Tenho certeza que o Hamas recebeu essa mensagem.
Como você dizia agora a pouco, o retorno às suas terras dos palestinos expulsos em 1948 e 1967 é um dos grandes obstáculos. Inclusive se dá como certo que os de 48 não gozariam das mesmas condições dos de 67.
- Até o momento, as resoluções sobre o retorno dos refugiados não foram cumpridas pela irresponsabilidade de Israel em admitir sua responsabilidade no drama dos refugiados palestinos e pela incapacidade da comunidade internacional de fazer cumprir essas resoluções. Na Bósnia, essas resoluções foram cumpridas, em qualquer parte do mundo a comunidade internacional tem se mobilizado e ajudado o retorno de refugiados. Quando se trata de Israel as resoluções da ONU não são cumpridas. Parece que estamos lidando com um Estado acima da lei. É um Estado mimado pela grande potência norteamericana e, lamentavelmente, por sistemas na Europa que tornaram impossível o cumprimento tanto da resolução relativa aos refugiados palestinos como outras semelhantes a de 1967 que obrigava Israel a retirar-se da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental.
Mais de quarenta anos depois estas resoluções não foram cumpridas pela irresponsabilidade das grandes potências encabeçadas pelos EUA. Eles precisam nos explicar por que a lei é divisível, por que ela é cumprida em uma parte do mundo e descumprida em outra. O que ocorre na Palestina é a existência de uma máfia política que impede o cumprimento da legalidade internacional. Não podem pedir a nós que resolvamos essa situação como se fôssemos os culpados. As pessoas que estão nos acampamentos de refugiados vivem uma situação de tremenda humilhação, Em 1948 tinham casas, suas terras, mas por força do terror tiveram que se deslocar e ir viver em um acampamento. Além de viver em condições promíscuas, estão moralmente feridos. A comunidade internacional tem uma dívida com eles. E, apesar de tudo, são essas pessoas que tem carregado em seus ombros a revolução palestina.
Não o surpreendeu a forma pela qual Argentina, Brasil, Chile, em suma, boa parte dos países da América Latina respaldaram a Palestina em um claro desafio ao império.
Não segurei as lágrimas quando escutei a presidenta argentina Cristina Kirchner falar. E por isso somos otimistas, porque o mundo está mudando. Emocionam-me as mudanças que ocorreram na América Latina nos últimos anos. Quando um país como Argentina, Brasil, Chile ou Equador avança é um avanço para nós também. Basta de hegemonia sobre os povos do mundo! Nos mantinham divididos como uma torta para que pudessem nos comer melhor. Esse despertar é chave para todas as causas justas, entre elas a da Palestina. Temos grandes palavras de agradecimento com os povos da Argentina, do Chile, do Brasil, com os mais de 130 Estados do mundo que nos últimos meses reconheceram o povo palestino. Os que são livres querem que os demais também o sejam, os que querem a paz para si, a desejam para os demais.
Tradução: Katarina Peixoto
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