Antonio dias Leite, 93 anos de vida e, grande parte deles, de
preocupação com o País, professor emérito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, investigou a distância que separa o país emergente de um país rico.
Para isso escreveu Brasil, País Rico – O que ainda falta (Campus), no qual
abandona os rigores da Academia – gráficos, tabelas, quadros – em favor da
simplicidade. Ele elenca, com clareza e didática, as principais controvérsias
“em torno do futuro do País”. Da simplicidade nasceu um texto limpo, acessível
e esclarecedor, ao alcance do público e não só dos seus pares.
Crescimento
Dias Leite foi em busca das contradições armadas pelos
obstáculos de sociedades emergentes. De certa forma, uma antiga e saborosa
máxima, a do cobertor curto, explica melhor: se o cobertor do pobre for puxado
para cobrir a cabeça descobrirá inevitavelmente o pé.
“Um exercício aritmético”, ele mostra no livro, “indica que
seriam necessários 35 anos em uma trajetória de crescimento de 3% anuais.” Com
o crescimento maior, o tempo seria menor. Eis os principais trechos da
entrevista.
CartaCapital: O que é um país rico?
Dias Leite: O título remete à convicção de que o Brasil está
numa posição de relevo no mundo. Fundido isso com o fato de ele ser rico. Mas a
riqueza tem de ser expressa pelas condições de vida da população. Um país pode
ser capaz de realizar grande produção de bens e serviços e não ser rico. É o
caso em que nós estamos. Crescemos no total do que produzimos, mas não nos
tornamos um país rico no sentido de que a população está num nível de bem-estar
social.
CC: Quais seriam os maiores obstáculos para chegar lá?
DL: Eu me concentrei muito nas contradições entre os
objetivos perseguidos e, menos, nos obstáculos. O que interessa a um objetivo é
um obstáculo para alcançar outro. O problema é, portanto, o de conciliar. Nesse
contexto, o obstáculo principal é o nosso atraso na educação. Infelizmente a
recuperação no domínio da educação é a de mais longo tempo de maturação que
conhecemos. Esse primeiro obstáculo impõe limitação à velocidade com que se
pode crescer.
CC: E além dessa contradição no objetivo educação?
DL: Às vezes alcançar um objetivo significa abandonar outro.
Temos um problema político-institucional. O Brasil nunca conseguiu chegar a uma
estrutura de Estado aceitável. Ao contrário, a situação se deteriorou nos
últimos anos. Então, a possibilidade de definição de uma estratégia nacional
focada em vencer os obstáculos que se apresentam de várias naturezas encontra
uma dificuldade na sua própria formulação. Recentemente, com a proliferação de
ministérios, essa tarefa se tornou mais difícil dada a dispers
CC: Tudo isso não se enrosca na falta de um projeto nacional?
DL: Há duas coisas a distinguir. Uma é a não definição desse
projeto. Já houve tempo em que tivemos a definição de projetos nacionais.
CC: Quando?
DL: O projeto de desenvolvimentismo de JK dava uma diretriz
ao País. Ultimamente, há muitas críticas aos projetos que foram feitos. É
possível criticar as opções feitas. Elas, no entanto, davam uma diretriz ao
País.
CC: Getúlio Vargas teve um projeto?
DL: Vargas deu um passo na administração pública do Brasil, a
contar da proclamação à revolução de 1930. Um passo de 40 anos. Ele fez uma
reforma administrativa. Depois dele os militares fizeram uma e, posteriormente,
Fernando Henrique fez outra. Todas diferentes entre si. A partir daí não houve
andamento. Estamos falando de iniciativas que não configuram uma estratégia
nacional. Há uma estrutura inapta para promover um desenvolvimento estratégico.
É preciso mencionar também o exagero ao poder construtivo de regras
pormenorizadas para as atividades individuais e coletivas, sem atribuir
equivalente importância à sua efetividade.
CC: Na prática esse excesso produz o quê?
DL: A complexidade da regulamentação resultante induz
inclusive à fuga dos pequenos empreendedores para operações informais e até
ilegais. Além de prejudicar o processo de crescimento econômico do País, a
informalidade cria condições para a generalização da corrupção, que vai se
tornando endêmica.
CC: Há diferença entre um país rico e um país rico e
poderoso?
DL: Existe. Rico e poderoso é um passo adiante.
CC: Esse passo à frente se daria com o domínio da energia
nuclear?
DL: Seria interessante pensarmos na posição do Irã…
CC: Não seria importante para um país se tornar poderoso?
DL: Não vejo interesse na sociedade brasileira por esta
natureza de poder.
CC: Em que medida a crise mundial pode dificultar a ascensão
do Brasil à condição de país rico?
DL: Acho que a dificuldade principal está na decisão de
tomar, simultaneamente, medidas de longo prazo que interessam ao
desenvolvimento completo do País e as de curto prazo para fazer frente aos
reflexos do que acontece no mundo. Aí está de novo uma contradição entre o
curto e o longo prazo. Um grande defeito dos escritos econômicos é o de ignorar
a variável tempo.
CC: Essa seria mais uma contradição?
DL: Ninguém sabe exatamente o que é “curto” e o que é
“longo”. Para o mundo financeiro o curto prazo é uma semana, o longo prazo é um
mês.
CC: Essa crise projetou mais a importância do papel do Estado
nos países emergentes. Como o senhor avalia isso?
DL: A presença do Estado no Brasil sempre foi muito forte.
Houve momentos em que ele ficou dentro de limites razoáveis, mas, em outros
momentos, se envolveu em coisas desnecessárias.
CC: Nessa crise não teria faltado, nos países ricos, a “mão”
do Estado?
DL: A crise decorre de uma evolução no sentido de dar
agilidade a mecanismos de movimentação de fundos para o investimento e para
outros fins. Essa agilidade, conjugada a uma redução de regulamentos e regras,
avançou a uma imprudência impressionante, como se verifica hoje. Não se pode
conceber que tenha sido feita a loucura como a questão das hipotecas, nos
Estados Unidos.
CC: A situação não sugere que certos casos exigem freios e
outros, algemas?
DL: Isso mesmo. É impressionante que as discussões mundiais
sobre o assunto da economia real continuem em plano secundário. A preocupação
resume-se em como sustentar o sistema financeiro existente. Esse caminho
desconhece que dois terços da humanidade precisam de crescimento. Há o
esquecimento de que esses dois terços estão passando fome. De certa forma, essa
é a visão do FMI.
CC: O Brasil não entrou nesse caminho?
DL: Sua pergunta remete às contradições. No Brasil, o
interesse está voltado para a eliminação da miséria e a distribuição de renda.
Esse é o objetivo prioritário. Há, porém, uma nítida contradição entre esse
objetivo e o objetivo de sua pergunta sobre a proteção à nossa soberania. As
Forças Armadas estão à míngua.
CC: É uma boa opção, não?
DL: É um mérito. Surgiu, felizmente, um político comprometido
com a eliminação da miséria e a redução da desigualdade. Esse caminho, no
entanto, estabelece contradições em países emergentes.
CC: É possível pensar que essa crise econômica de agora
prenuncia o fim do capitalismo financeiro ou, pelo menos, restrições?
DL: Tenho muitas diferenças com o mundo financeiro. Tenho
horror dele. O impressionante, nessas discussões mundiais, é que o assunto da
economia real continua em plano secundário.
CC: A preocupação tem sido a de sustentar esse sistema
financeiro?
DL: Sim. É só isso. Um desses economistas, ex-chefe do FMI,
discute a questão do crescimento como se dois terços da humanidade não
precisassem de crescimento. Essa história de esquecer o crescimento não leva em
conta que dois terços da humanidade passam fome. Imagine que um homem desses
foi economista-chefe do FMI. É preciso fazer o dever da “nossa casa”, mas é
fundamental considerar que existem outras casas.
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