domingo, 19 de fevereiro de 2012

O telhado de vidro da Alemanha

Por: Flavio Aguiar

Sexta-feira, 17 de fevereiro, às 11 horas da manhã (08:00 em Brasília), a Alemanha engasgou.

O presidente Christian Wulff anunciou num pronunciamento ao vivo na TV sua renúncia ao cargo. A decisão em parte foi surpreendente, em parte, não.

Num movimento sem precedentes na história do país o Ministério Público do estado da Baixa Saxônia, de que Wulff foi primeiro-ministro antes de ser presidente, pediu ao Parlamento Nacional que suspendesse a sua imunidade para investigá-lo e processá-lo por corrupção ativa e passiva.

A denúncia se prende à relação do já ex-presidente com um produtor cinematográfico, David Groenewold, ao tempo em que aquele era chefe de governo do estado. Wulff favorecera a obtenção de empréstimos para financiamento de filmes para seu amigo, e depois Groenewold lhe propiciou uma temporada gratuita num hotel de luxo de sua propriedade. Para complicar, a Promotoria levantou que, depois das férias, quando o caso começou a se avolumar, Wulff pediu ao hotel recibos forjados como se ele mesmo tivesse pago pela estadia. Para ainda maior complicação, Groenewold é acusado de nunca ter realizado os projetos para que obteve financiamento, sob a forma de garantia (como se fosse uma fiança pública) com verbas públicas.

Esse desenlace da história aconteceu depois de uma verdadeira batalha entre Wulff e parte considerável da mídia alemã, sobretudo com o jornal sensacionalista Bild, mas também com a vetusta revista Der Spiegel, em torno do seu comportamento.

Tudo começou ao final de 2011, quando a Bild preparou reportagem sobre um empréstimo de 500 mil euros que Wulff recebeu de um outro amigo para a compra de uma casa, quando era chefe de governo da Baixa Saxônia. Ocorre que, na época, questionado por um deputado estadual do Partido Verde, Wulff negara ter recebido o empréstimo.

Inicialmente, Wulff tentou 1) impedir a publicação da matéria, segundo a direção do Bild; 2) retardar a sua publicação, segundo o ex-presidente.

Ocorre que isto foi feito através de um telefonema ao diretor do jornal, que promovera a carreira política de Wulff, em que este se destemperou e disse cobras e lagartos ao ex-parceiro. Que cobras e lagartos, não se sabe; mas devem ter sido pesados, algo incompatíveis com o linguajar em público de um presidente. Para azar deste, seu destempero foi feito na caixa postal do telefone, ficando gravado. Embora a gravação não tenha sido divulgada (tratava-se de um telefonema privado do ex-presidente), ela ficou pendurada como uma bola de ferro no pescoço de Wulff.

Bild favorecera Wulff, dando tratamento positivo a seu divórcio da primeira esposa para casar-se com a segunda, Bettina. Em se tratando de um político católico, isso poderia ser uma complicação, e as reportagens de Bild sobre a “nova vida familiar” do ex-presidente ajudaram a construir sua nova imagem de pessoa moralmente inatacável. Aparentemente, Wulff, graças a isto, favoreceria Bild com entrevistas e informações exclusivas. Mas depois de ter se tornado presidente, outras publicações concorrentes teriam entrado na preferência de Wulff, o que desagradou os dirigentes de Bild. Diz-se aqui que “quem sobe de elevador com Bild, com Bild há de descer”. 

A partir desse telefonema, que não impediu nem retardou a publicação da denúncia, uma parte da mídia alemã assumiu o caso como uma “ameaça à liberdade de imprensa”, e passou não só a denunciá-la, como a esquadrinhar a vida de Wulff. Der Spiegel, que favorecera Joachim Gauck como candidato à presidência, contra Wulff, passou a ataca-lo regularmente, apontando-o como alguém sem estatura moral para o cargo.

Ele levava uma vida de luxos e freqüentadora de altas rodas sociais da burguesia alemã e européia: isso desagradava o “padrão ético weberiano e protestante (luterano)” que um presidente alemão deveria supostamente seguir. Essa inadequação foi tema de extensa reportagem da Der Spiegel, “Der falsche Präsident”, http://www.spiegel.de/spiegel/print/index-2011-51.html .

Para complicar, Wulff foi se enredando em “declarações esclarecedoras” que nunca esclareciam completamente o caso, e assim foi se desgastando numa batalha midiática. As pesquisas de opinião, que inicialmente o favoreciam, foram progressivamente se voltando contra ele e pondo em dúvida até a sua honestidade pessoal.

Certamente contribuiu para esse desenvolvimento a situação peculiar que a Alemanha vive diante da crise financeira e das dívidas públicas que varre a Europa. Para boa parte da mídia boa parte das pesquisas de opinião, a Alemanha, ao impor a política dos “planos de austeridade” que vão devastando vários países do continente, tornou-se um “exemplo”, uma espécie de “reserva moral” da Europa. Um presidente de vida luxuosa e declarações dúbias algumas, falsas outras (sobre o empréstimo, Wulff, que já o negara, afirmou ainda te-lo recebido da mulher do amigo, o que não era verdade: fora deste mesmo), tornou-se incompatível com esse novo “nacionalismo germânico”, baseado num sentimento misto de  superioridade e ao mesmo tempo dever moral. Para se ter uma medida desse desenvolvimento, vários políticos da CDU estão clamando pela saída (ou expulsão) da Grécia da zona do Euro, talvez da União Européia, alegando a incompetência e a corrupção supostamente vigentes naquele país, depois que o presidente grego, Karolos Papoulias acusou o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, de tratar sua nação com “desprezo”. Vale dizer para esses políticos, depois da renúncia de Wulff: quem tem telhado de vidro...

O desgaste se avolumou, e culminou neste episódio da Promotoria pedir a suspensão de sua imunidade. Na sua renúncia, Wulff declarou que nos últimos dois meses ele e sua esposa tinham sido muito e repetidamente “feridos” pelas denúncias, que ele sempre se comportara “dentro da lei”, embora com erros que reconheceu (como no caso do telefonema), mas que um presidente ameaçado de investigação e processo era incompatível com o efetivo exercício do cargo em nome do bem estar dom país.

Wulff é o segundo presidente consecutivo da Alemanha que renuncia. O primeiro foi Horst Köhler, que renunciou em 2010 depois de declarações consideradas improcedentes sobre a presença militar alemã (que ela serviria aos interesses comerciais do país). Tal repetição fez com que alguns analistas questionassem a manutenção do cargo. Além disso, a renúncia de Wulff é um novo duro golpe para a chanceler Ângela Merkel, cuja coalizão de governo, apesar de sua popularidade pessoal como “condutora da crise”, está combalida, pela falência de seu parceiro FDP, que hoje não ultrapassaria a cláusula de barreira de 5% dos votos para ter assento no Parlamento.

Num pronunciamento logo após a renúncia, Merkel traçou uma linha divisória na políticxa alemã, que pode reverter em mais críticas contra ela. Logo depois da renúncia de Wulff, o primeiro partido a se pronunciar sobre o momento foi a Linke, cujo porta-voz declarou que era imediatamente necessário nesta circunstância pensar num candidato suprapartidário (o Colégio Eleitoral previsto na Constituição tem 30 dias para eleger um novo presidente). Logo após o SPD e o Partido Verde concordaram com a posição da Linke.

No seu pronunciamento, Merkel agradeceu a Wulff e sua esposa pela dedicação, e  disse que iria, primeiro, se reunir com os correligionários FDP e CSU (da Baviera) e depois com os partidos de oposição: o SPD e os Verdes. Omitiu a Linke, que é um partido que tem 76 cadeiras no Bundestag, e não pode ser tapado com nenhuma peneira. A declaração veio agravada pela situação de que a Linke tem várias de suas lideranças, no Bundestag e fora dele, cujas atividades vem sendo investigadas pela Polícia Secreta alemã, e cuja existência tem sido questionada por políticos da CSU e da própria CDU.

Para a sucessão de Wulff, até o momento, vários nomes vêm sendo cogitados. O mais citado – inclusive como suprapartidário,  é o de  Klaus Töpfer, um político da CDU, mas que se notabilizou como membro do Comitê da ONU para o Meio Ambiente e como membro da Comissão de Ética sobre Energia Atômica na Alemanha.

Também são citados os nomes de:

1)      Joachim Gauck, pastor protestante da ex-DDR, considerado um militante anti-comunista, que foi candidato do SPD e dos Verdes, em oposição a Wulff, mas sem o apoio da Linke.

2)      Norbert Lasmmert, presidente do Parlamento Nacional.

3)      Wolfgang Schäuble, atual ministro das Finanças.

4)      Ursula von der Leyen, atual ministra do Trabalho, apontada como uma possível sucessora de Ângela Merkel.

5)      Thomas de Mazière, atual ministro da Defesa.

6)      Katrin Göring-Eckardt, liderança do Partido Verde no Parlamento.

Além das ressonâncias políticas nacionais e internacionais, o caso expõe um “novo poder” da mídia alemã, que descobriu o gosto de provocar o sobe-desce de políticos – coisa que é muito ao gosto de nossa mídia brasileira convencional. Isso também poderá ter conseqüências ainda imprevisíveis no cenário interno da Alemanha.

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