Emiliano José
Às vezes, num olhar rápido, penso que se desaprendeu de fazer jornalismo, especialmente quando olho para a revista Veja. Podíamos fazer uma extensa lista de matérias cheias de condicionais, de especulações, de mentiras, invencionices, muito distantes dos fatos. Matérias pautadas previamente para ser confirmadas, nada para ser verdadeiramente apurado. Mas, esse olhar rápido engana-se. Não se pode dizer que o que Veja faz seja jornalismo. Pelo menos aquele que a boa tradição manda – fidelidade aos fatos, apuração séria dos acontecimentos, cuidado com a diversidade das fontes, não noticiar nada que não esteja devidamente cercado, confirmado.
Aprendi tudo isso na escola, dei aulas dizendo isso, pratiquei sempre isso no jornalismo diário como repórter, pauteiro, editor, chefe de reportagem. Leio Mino Carta, que repete sempre a importância dos fatos como base do jornalismo minimamente honesto. Penso em Cláudio Abramo, a ética do marceneiro. Que se tome posição, não há problema. Mas que se respeite os fatos.
Veja é, tenho insistido, uma usina de ideias da extrema-direita latino-americana, e é claro que não tem vergonha disso. E reitero o que tenho dito: não haveria problemas se ela esposasse suas doutrinas direitistas, desde que deixasse claro editorialmente que essa é a linha dela e que tivesse o mínimo de critério jornalístico na produção de seu material semanal. Não diz que é de extrema-direita, como é óbvio, e não tem qualquer critério jornalístico, aquele mínimo, na elaboração de seu material – um material permanentemente editorializado, propagandístico, mentiroso, calunioso, ao menos quando o assunto é política.
Sua produção é profundamente partidarizada, no pior sentido da palavra, sem quaisquer observâncias técnicas, aquelas mais modernas, nascidas lá pelo final do século XIX. Ela não é capaz sequer de observar seu manual de redação, se é que ainda considera a existência dele.
Não é preciso uma pesquisa cuidadosa para perceber tudo o que estou dizendo. Um sobrevoo ligeiro, apenas utilizando-se da memória, indica uma multidão de matérias sem nenhuma consistência, cheias de poderia, seria, teria, sem o alicerce de fontes confiáveis, cheias de fontes mortas, pessoas mortas, que não podem testemunhar se o que a revista diz é verdade ou não. Ela vai aos cemitérios para tentar emprestar credibilidade ao seu material – parece incrível, mas é verdade, e não fez isso apenas uma vez.
Lembro-me, e pode ser que a memória falhe, de matéria que falava numa fantasiosa ajuda de Cuba ao PT em que usou um morto, e agora, mais recentemente, quando usou Orestes Quércia, que também já havia partido. Parece mentira, mas não é, que uma publicação jornalística valha-se desse expediente para sustentar suas hipóteses, sua estranha mania de testar hipóteses independentemente do alicerce dos fatos. O jornalismo aqui anda a quilômetros de distância. A quilômetros de distância da revista Veja.
E agora ela extrapolou todos os limites na matéria que enseja a capa com o ex-ministro José Dirceu. Enseja? Não sei. Creio que a capa foi pensada antes, editada. E depois o editor pediu aos repórteres que saíssem para a cena do crime. E não tem exagero em chamar cena do crime. Foram ao hotel onde o ex-ministro se hospeda e cometeram uma série de crimes. Contra as leis do País, como se estivessem acima disso. Como se não tivessem que respeitar o Estado de Direito. Como se pudessem invadir a privacidade das pessoas sem a observância dos direitos constitucionais.
E não se trata aqui, registro, de apenas defender o ex-ministro, que merece a defesa porque ninguém merece ser agredido em seus direitos. Mas, sobretudo, defender os direitos de todos os cidadãos e cidadãs do País, que não podem estar submetidos aos caprichos de foras-da-lei, que se acreditam acima de tudo e de todos, tal que qual um Murdoch tupiniquim.
A matéria, em si, é um espetáculo de mediocridade jornalística, de inobservância daqueles critérios técnicos mínimos que a profissão reclama, cheia de especulações, sem a base factual indispensável, plena de pré-julgamentos, recheada de ilações que são feitas a partir das posições da revista e, como sempre, cheia de mentiras. Imaginar José Dirceu conspirando contra a presidenta Dilma só cabe na cabeça da revista Veja.
Os crimes vão da tentativa de invasão do quarto do ex-ministro e dirigente do PT até a instalação de câmeras para filmar os que entravam e saíam em visitas a José Dirceu. Curioso é a revista dizer que o José Dirceu vive num apartamento, que ela chama de bunker, que só sobe quem é autorizado. Ué, e onde é diferente? Será que as casas dos distintos editores e repórteres de Veja estão permanentemente abertas ao público, a quem quer que seja? Ou no mínimo, as pessoas têm que ser anunciadas? Não há a premissa legal de inviolabilidade de domicílio? Para a revista Veja, parece que não. Chega a parecer brincadeira, e não é. É coisa séria, própria do banditismo jornalístico à Murdoch, praticado por Veja. Não, a sociedade brasileira não pode cruzar os braços. Os jornalistas sérios não podem ficar indiferentes a isso. Os que prezam a democracia não podem aceitar esse tipo de prática. Isso pode ser tudo, menos jornalismo.
A atitude criminosa, ilegal de Veja foi tão escandalosa que acabou sendo, para ela, um tiro no pé. Tentava, com o panfleto mal costurado que produziu, provocar a quase sempre natural repercussão nos demais veículos, inclusive televisivos. Não houve quase nenhuma. Os demais órgãos de imprensa certamente ficaram temerosos, reticentes de se envolver em matéria tão criminosa e tão sem sustentação. A revista Veja, na tentativa de influenciar, quem sabe, no próximo, e nem sei se tão próximo, julgamento do processo em que o ex-ministro está incluído, resolveu escrever a arenga. Julgou-se esperta demais, apressou-se, e na linha de que os meios justificam os fins.
O povo costuma dizer que esperteza quando é demais vira bicho e come o dono. Tal e qual ocorreu com Veja, neste caso. Resta que não nos calemos, que não aceitemos esse tipo de prática, que repudiemos o crime, que lutemos por um jornalismo ético, fundado nos fatos. A história não se repete. Numa circunstância histórica, é tragédia: Murdoch. Noutra, farsa: Veja.
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