As regras continuam as mesmas – e em algum momento o Brasil vai ter que se decidir entre duas que são incompatíveis: um sistema de votação presidencial que fortalece popularmente o presidente eleito em dois turnos (ou já consagrado majoritariamente num primeiro) ou um sistema de votação parlamentar que tende a pulverizar cada vez mais o voto.
Maria Inês Nassif
Nem tudo é igual no país de Macunaíma. Até o ano passado, o Brasil convivia com uma realidade meio torta, segundo a qual um presidente eleito pelo voto direito em dois turnos (portanto, com exigência de maioria absoluta dos votos válidos), governava sob um sistema partidário extremamente pulverizado que impedia a formação de uma maioria monopartidária, ou uma coalizão menos volumosa.
As regras continuam as mesmas – e em algum momento o Brasil vai ter que se decidir entre duas que são incompatíveis: um sistema de votação presidencial que fortalece popularmente o presidente eleito em dois turnos (ou já consagrado majoritariamente num primeiro) ou um sistema de votação parlamentar que tende a pulverizar cada vez mais o voto, e que está longe de fortalecer as instituições partidárias. Quando mais o voto é pulverizado, maior o número de partidos para compor um governo de coalizão.
De certa forma, a democracia brasileira merece os parabéns por conseguir sobreviver nessa corda bamba, com as crises que fatalmente irrompem de leis que fortalecem popularmente um presidente, mas dão, simultaneamente, um poder enorme de barganha aos partidos, mesmo aos muito pequenos.
A distorção, todavia, vem sendo empurrada com a barriga desde a Constituinte de 1988, quando, votadas em separado, as propostas deram ao sistema partidário um perfil parlamentarista, enquanto o presidencialismo vencia e levava para casa um modelito dois números menor que o seu corpanzil. Ainda assim, como a história anda, independente de quanto aperta a roupa, a chamada correlação de forças (termo que minha geração, e também a anterior, usou à farta para explicar por que num momento as coisas fatalmente mudam, mesmo com tanques nas ruas) prevalece sobre as consequências previstas para um determinado sistema político.
Na prática, a pulverização partidária, aliada às práticas tradicionais de fazer política, resultam em enorme poder de barganha dos partidos frente a um Executivo. Mas, como as variantes conjunturais nunca são as mesmas, nem sempre isso acontece. Até pela contradição entre partido forte frente ao Executivo e desacreditado junto ao eleitorado, e entre Executivo forte junto ao eleitorado e refém de um Congresso pulverizado, coisas ocorrem – e podem ser suficientemente fortes a ponto de balançar a lógica desse sistema maluco.
Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, existia uma maioria parlamentar onde, embora com as restrições conferidas pela lei, o ambiente ideológico, inclusive internacional, era propício à formação de maiorias (que permitiram, por exemplo, a venda de enorme patrimônio público sem qualquer tipo de vantagem para o Estado, como descreve Amaury Ribeiro Jr. no livro que é sucesso de vendas, “A Privataria Tucana”). As maiorias eram mais orgânicas, digamos assim, porque a maioria dos partidos do centro à direita embarcaram na onda neoliberal; e porque nesse processo foram escolhidos, a dedo, aqueles que viriam a se constituir na “burguesia moderna”, capaz de conviver de forma proveitosa com o capital monopolista financeiro.
Estar no círculo de poder era definitivo. Nossa elite mudou de cara nesse período, sem grande espaço para oposição, que exercia o direito de espernear, apenas. Além das variáveis ideológicas, a “democratização” de recursos junto às “bases tradicionais” viabilizaram um projeto de poder (que era para ser de 20 anos de poder tucano-pefelista e tornou-se oito, mais por conta da conjuntura econômica do que da ação de uma oposição que apenas saiu do atordoamento da queda do Muro de Berlim depois que foi obrigada a governar).
Nos dois governos Lula, as distorções do sistema se acentuariam. No primeiro, o presidente era um homem limitado em suas possibilidades pelo perfil do governo de coalizão, por uma crise financeira que foi uma herança pesada e por uma relação com parceiros no Congresso que, na falta de qualquer afinidade orgânica, passava mesmo pelas relações de troca da política tradicional.
A partir do segundo, era um presidente consagrado popularmente, e sob cujo governo as condições objetivas da maior parte da população melhorou – e com partidos de oposição cada vez mais enfraquecidos pelo modelo político arcaico em que, quanto mais longe do poder, menos chances uma legenda tem de eleger representantes. O que sobreviveu de oposição valeu-se da força de mediação da mídia tradicional, que teve um importante papel no pleito de 2006, do lado da trincheira do PSDB representada por José Serra, que perdeu para a candidata de Lula, a presidenta Dilma Rousseff.
O empréstimo de credibilidade da imprensa à candidatura Serra, evidentemente, não foi suficiente para fazê-lo vitorioso, mas estabeleceu um vínculo profundo entre o maior partido de oposição e a mídia tradicional. A perda de credibilidade que resultou dessa relação carnal entre um e outra (mídia e PSDB) atingiu parte de público leitor e tornou cada vez mais reduzidas condições de ampliação de sua influência na opinião pública. Manteve um público leitor fiel, mas partidarizado. Perdeu público que representava a outra parte da polaridade política que, apesar de todas as deficiências do quadro partidário, se consolida numa espécie de Fla-Flu na sociedade.
O poder de persuasão desse tipo de jornalismo, no entanto, é eficiente para os mesmos. O público não se amplia. Da mesma forma que, na internet, a tendência é uma conversa com o lado oposto.
O segundo ano do governo Dilma Rousseff começa com algumas mudanças de parâmetro. Ela não foi ruim na política quanto apostavam seus opositores e temiam seus adeptos – aliás, parece que a presidenta deu um passo além daquele dado por Lula, a partir de 2005, quando estourou o chamado Escândalo do Mensalão. Na época, até porque em véspera de eleição, o grande enfraquecido foi o PT. Embora os outros partidos da base tenham ficado tão expostos quanto o partido, foi o de Lula que sofreu mais. Lula surfou, com sua popularidade, no vácuo deixado pelo partido. Fortaleceu-se como figura política, mas preservou os demais da coalizão. E, embora tenha tirado de letra a oposição sistemática feita pelos meios de comunicação, esteve no meio de uma guerra constante.
Dilma demitiu ministros por pressão dos jornais. No momento em que anuncia uma reforma ministerial, a maioria dos partidos da coalizão foram alvejados por denúncias. Ela está mais forte que os partidos que a apoiam. E, ironia das ironias, a exposição do vínculo carnal da imprensa com o PSDB, em especial com o grupo de Serra, configurada no “Privataria Tucana”, enfraquece também a mídia nesse momento – aquela que, teoricamente, foi a vitoriosa na batalha de derrubar ministros. No mínimo, nesse processo, a mídia mostrou que tem apenas um lado. Um dos diários nacionais, aliás, cometeu um vanguardismo jornalístico: estabeleceu a norma de ouvir o lado acusado sem mencionar as acusações contidas num livro que, aliás, não foi objeto anterior de sua curiosidade jornalística.
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