por Mauro Santayana
Nunca tivemos, no Brasil e alhures, uma justiça perfeita. A
esse respeito permanece como paradigma da dúvida do julgamento político a
condenação de Sócrates. A acusação que lhe fizeram foi de impiedade, o que, no
léxico de então, mais do que hoje, significava heresia diante dos deuses:
Sócrates estaria pervertendo os jovens com seus ensinamentos, tidos também como
antidemocráticos. As lições de Sócrates sempre foram da dúvida, da incessante busca
do conhecimento, mesmo que o conhecimento fosse, em sua inteligência,
inalcançável. Ele dizia saber que nada sabia.
Nesse pensamento negativo radical, recriado e elaborado por
Platão, estaria, em ultima ratio – à qual não se atreveu Platão – a suprema heresia
de duvidar da existência dos deuses. Os deuses eram os fiadores da democracia,
e quando esse contrato com o mito, em que se fundava a sociedade, rompeu-se, ao
ser sua existência posta em dúvida, Atenas perdeu o seu ponto de gravidade e
entrou em irrecorrível declínio político.
Não estamos em Atenas daquele tempo emblemático, e seria,
isso, sim, impiedosa heresia comparar o julgamento atual do STF ao de Sócrates.
Em certo aspecto, no entanto, os dois episódios se semelham: o do espetáculo.
Como tudo em Atenas, o julgamento de Sócrates foi público, com 501 juízes. Os
acusadores e Sócrates, em sua apologia, foram ouvidos por uma assembléia
numerosa, de acordo com os relatos, mas os que acompanham a Ação 470 vão muito
além: chegam a dezenas de milhões.
A transparência é salutar, mas não seria essa exposição
demorada e ampla, vista pelo outro lado da razão, contaminada pela vaidade de
alguns magistrados e, dela decorrente, pela influência de jurados estranhos e
ilegítimos, mediante os meios de comunicação?
Todos os condenados já se encontravam, mesmo sem que se
conhecessem devidamente os fatos, julgados por apresentadores de programas de
televisão e políticos, sem falar nos que se identificavam como “cientistas
políticos” e “juristas”, iluminados pelos holofotes, que supriam de argumentos
interessados os mediadores das emissoras. Assim se desenvolveu um julgamento
paralelo, que antecipava votos e açulava os telespectadores contra os réus. Por
isso mesmo, e de acordo com alguns observadores, também em outros aspectos foi
um julgamento que desprezou as cautelas da lei no que se refere ao direito de
defesa dos acusados.
Se isso realmente ocorreu, abriu-se precedente perigoso, que
poderá servir, no futuro, contra qualquer um. Ainda que os acusados fossem
realmente culpados, a violação de alguns princípios, entre eles o da robustez
das provas, macula o processo e o julgamento. Como dizia Maquiavel, “quando se
violam as leis por uma boa causa, autoriza-se a sua violação por uma causa
qualquer”, ainda que nociva ao Estado.
O que os observadores de bom senso temem é que o
inconveniente espetáculo, em que se transformou o julgamento da Ação 470,
excite os golpistas de sempre. Ainda que a sugestão não passe de tolice insana,
há os que pretendem aproveitar-se do julgamento para promover um processo
contra o presidente Lula e seu governo.
Se isso viesse a ocorrer, os juízes do Supremo teriam que
admitir novos processos contra outros chefes de Estado, pelo menos no exame dos
atos de governo dos últimos vinte anos. Como diz o provérbio rural, o risco que
corre o pau, corre o machado.
A história nos mostra – e 1964 é alguma coisa recente na vida
nacional – que uma das primeiras vítimas institucionais dos golpes é exatamente
a imprensa. O “Correio da Manhã”, que se excedeu no entusiasmo conspiratório, e
publicou o célebre editorial de primeira página em favor da deposição de Jango
pela força, sob o título de “Basta, e Fora!”, foi o primeiro a se arrepender –
tardiamente – e o primeiro a ser sufocado pela arbitrariedade da Ditadura.
Os outros vieram depois, amordaçados pela censura, e
obrigados a beber do fel que queriam que fosse servido aos competidores. Os
açodados editores dos jornais e diretores dos meios eletrônicos, como são as
emissoras de rádio e televisão, devem consultar seus arquivos e meditar essas
lições do passado.
Com todo o respeito pelo STF e a sua autonomia republicana,
não nos parece conveniente a transmissão ao vivo dos julgamentos. Os juízes
devem ser protegidos pelos ritos da discrição. Seria ideal, também, para a
respeitabilidade da Justiça, que os juízes só recebessem as partes e seus
advogados em audiências regulares, das quais já participam oficialmente os
representantes do Ministério Público.
O ato de julgar, em todas as suas fases, deve ser visto como
alguma coisa sagrada. Essa era a razão dos ainda mais antigos do que os gregos,
que só escolhiam os anciãos para a difícil missão de ministrar a justiça. Os
julgamentos não podem transformar-se em entretenimento ou em competição
oratória.
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