A 68ª Assembleia Geral da Sociedade Interamericana de
Imprensa (SIP), realizada de 12 a 17 de outubro, em São Paulo, mostrou mais uma
vez que essa entidade, que na prática funciona como um sindicato dos donos dos
grandes conglomerados de comunicação, representa hoje uma das mais graves
ameaças à liberdade de expressão na América Latina. A SIP e seus dirigentes,
aliás, têm uma longa e sólida ficha corrida de serviços prestados à violação de
liberdades e de apoio a governos golpistas na região. Editorial da Carta Maior.
Editorial - Carta Maior
A 68ª Assembleia Geral da Sociedade Interamericana de
Imprensa (SIP), realizada de 12 a 17 de outubro, em São Paulo, mostrou mais uma
vez que essa entidade, que na prática funciona como um sindicato dos donos dos
grandes conglomerados de comunicação, representa hoje uma das mais graves
ameaças à liberdade de expressão na América Latina. A constatação não chega a
ser uma novidade, mas algumas coincidências muito expressivas marcaram o
encontro da SIP no Brasil. Enquanto os grandes empresários que dirigem a
entidade e seus dedicados funcionários apontavam a “Ley de Medios” do governo
argentino como uma das mais graves ameaças à liberdade de expressão e de
imprensa no continente, o relator especial da Organização das Nações Unidas
(ONU) para a Liberdade de Opinião e de Expressão, Frank La Rue, dizia, em
Buenos Aires, que essa lei é avançada e representa um “modelo para todo o
continente e para outras regiões do mundo”.
Diante dessa gritante divergência de avaliação a respeito de
uma mesma lei, cabe perguntar: onde reside exatamente a diferença entre a SIP e
a ONU? Para a SIP, a “ameaça à imprensa independente” na Argentina pode “ter um
capítulo obscuro em dezembro, quando o governo pretende avançar sobre os meios
audiovisuais do Grupo Clarín desconhecendo sentenças judiciais e normas
legais”. No dia 7 de dezembro, vence o prazo fixado pela Corte Suprema para a
medida cautelar com a qual o grupo Clarín conseguiu bloquear, durante três
anos, a aplicação do artigo 161, que obriga as empresas a abrir mãos das
concessões que superem o limite estabelecido pela nova legislação para evitar
práticas monopólicas.
Compreende-se assim a preocupação da SIP. Os empresários
fogem de qualquer limitação legal à prática de monopólio (direto ou cruzado)
como o diabo, da cruz.
O que a SIP considera uma ameaça, o relator da ONU considera
um avanço. “Eu considero essa lei um modelo e a mencionei no Conselho de
Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Ela é importante porque, para a liberdade
de expressão, os princípios da diversidade de meios de comunicação e de
pluralismo de ideias é fundamental”, afirmou Frank La Rue. Desnecessários dizer
que a SIP e os veículos de comunicação de seus dirigentes omitiram
completamente as declarações do relator da ONU. O limite da liberdade de
imprensa e de expressão que defende é exatamente o limite de seus interesses
econômicos, nem mais nem menos. Para compreender a natureza desses interesses é
preciso recordar a própria história da SIP e de seus dirigentes, que, na
América Latina, está intimamente ligada ao apoio a golpes militares, à
deposição de governos constitucionais, à violação sistemática de direitos
humanos e à censura. Para a SIP, é fundamental que essa história permaneça
oculta, mas cada vez que um de seus dirigentes ou aliados abre a boca para
dizer algo, ela vem inteira à tona.
Um exemplo disso é o editorial do jornal O Globo, de 16 de
outubro de 2012, intitulado “Cerco à liberdade na América Latina”. Logo no
início o editorial afirma: “Qualquer pessoa medianamente informada sabe que a
democracia representativa passa por um ciclo de ataques na América Latina,
região com longa história de recaídas autoritárias”. De recaídas autoritárias,
o grupo Globo, de fato, entende, afinal, prestou inestimáveis serviços à
ditadura brasileira, assim como o grupo Clarín fez com a ditadura argentina.
Não é por acaso, portanto, que O Globo saia em defesa do seu parceiro
argentino, acusando a presidenta Cristina Fernández de Kirchner de querer
obrigá-lo a se desfazer de várias concessões de rádio e TV que hoje compõem um
dos tantos monopólios que há no setor na América Latina.
Qualquer pessoa medianamente informada sabe qual foi o papel
que a Globo e outras grandes empresas de mídia desempenharam na ditadura
brasileira, como foram cúmplices de assassinatos, torturas, desaparecimentos de
pessoas, violação de direitos humanos fundamentais e supressão da liberdade de
imprensa e de expressão. O mesmo ocorreu na Argentina, com os grupos Clarín e
La Nación, no Chile com o diário El Mercurio, e em praticamente todos os países
da região. Mais recentemente, a tradição golpista da entidade foi exercida na
Venezuela, em Honduras, no Equador e no Paraguai.
A SIP e seus dirigentes, neste contexto, têm uma sólida ficha
corrida de serviços prestados à violação de liberdades na América Latina. É
compreensível, portanto, que, no momento em que esse poder começa a ser
contestado e ameaçado, seus veículos venham a público alertar para o “cerco à
liberdade na América Latina”. Há apenas uma liberdade que está sob cerco na
região: a liberdade dos donos de grandes conglomerados midiáticos continuarem
sonegando à população o direito à livre expressão e a um jornalismo de
qualidade.
Jornalismo, aliás, que não é mais o interesse central da SIP
e seus veículos há muito tempo. O fato já foi admitido inclusive pela
presidenta da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito, que
reconheceu que os grandes veículos de imprensa estavam substituindo o papel da
oposição ao governo Lula. “Esses meios de comunicação estão fazendo de fato a
posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente
fragilizada”, disse a executiva da Folha de S.Paulo em março de 2010. Para
desempenhar essa função, esses veículos não hesitam em deixar o jornalismo de
lado. Como fez mais uma vez o grupo Globo esta semana, que contratou uma
pesquisa Ibope para avaliar a intenção de voto dos eleitores de São Paulo no
segundo turno da eleição municipal e, diante do aumento da vantagem do
candidato Fernando Haddad (PT) sobre o candidato José Serra (PSDB),
simplesmente sonegou a informação no principal noticiário do grupo, o Jornal
Nacional. A SIP, a ANJ, seus dirigentes e filiados também guardam profundo
silêncio sobre as agressões e truculências praticadas por José Serra contra
jornalistas, inclusive de seus veículos. O que está sob cerco na América
Latina, é a possibilidade se seguir chamando tais práticas de “jornalismo”.
A cereja deste bolo de autoritarismo, cinismo e hipocrisia
foi fornecida pelo novo presidente da SIP que, no discurso de encerramento da
assembleia da entidade, além de repetir os discursos citados acima, resolveu
atacar o jornalista australiano Julian Assange, fundador do grupo Wikileaks,
que atualmente encontra-se refugiado na embaixada do Equador em Londres, já
tendo recebido asilo político deste país. Jaime Mantilla, do diário Hoy, do
Equador, acusou Assange, classificado por ele como um "indivíduo hábil e
irresponsável", de “conseguir informação de maneira fradulenta e praticar
o jornalismo desonesto”. Os jornais brasileiros, mais preocupados em blindar
seu dirigente do que em fazer jornalismo, omitiram as declarações do
recém-empossado presidente da Sociedade Interamericana de Imprensa.
Esses são, portanto, alguns dos principais alvos da SIP e de
seus braços midiáticos no continente, como a ANJ no Brasil: políticas contra a
prática de monopólio, apontadas como exemplares pela ONU, jornalistas como
Assange, que vive hoje trancafiado em uma embaixada por ter exposto segredos de
guerra da maior potência do planeta, leis que busquem garantir o direito à
diversidade de opinião e à liberdade de expressão. Os fatos falam por si.
Qualquer pessoa medianamente informada sabe hoje que entidades como a SIP e a
ANJ representam, de fato, uma grave ameaça a essas liberdades e direitos em
toda a América Latina.
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21102
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