domingo, 5 de fevereiro de 2012

O frio e a questão social

Não há tantos sem-teto como ainda há no Brasil, ou na Índia, por exemplo, mas há. E dizem os serviços sociais alemães: não só em Berlim, a maioria vem do antigo Leste europeu. Não são africanos, nem latino-americanos, nem isso nem aquilo. São pessoas cujas vidas perderam o rumo.

Flávio Aguiar

Depois de dois meses de inverno ameno, a Europa Central e do Leste caíram num rigor siberiano.

O quadro é dramático no antigo Leste.

Por que antigo Leste?

Porque este não é um conceito geográfico, é geopolítico. Antigamente, países como a Áustria e a hoje República Tcheca (então Tchecoslováquia) ficavam na mesma longitude, mas pertenciam a dois mundos inteiramente diferentes: a primeira era do Ocidente, ou Oeste, e a segunda, do Leste.

A partir do último fim de semana as temperaturas desabaram, caindo em torno de 20 graus centígrados, ou mais.

O país que mais vem sofrendo com isso é a Ucrânia, antigamente parte da União Soviética. Já chega a mais de 80 o número de mortos por hipotermia – congelamento, em linguagem vulgar.

Na Polônia, numa única noite morreram dez pessoas.

Na Bulgária e na Sérvia também aumenta o número de mortos.

Quem são?

Moradores de rua na maioria. Sem-teto, como se diz aí no Brasil.

Também houve o caso de idosos isolados em residências cuja calefação falhou.

As temperaturas, no caso da Ucrânia, passaram para abaixo dos 30 negativos.

Neste país, abriram-se 1.700 centros de acolhimento para os sem-teto. Há agora uma campanha para doações nacionais e internacionais de colchonetes de isolamento (de ar, por exemplo) a serem postas ao alcance dessas pessoas.

Aqui em Berlim, onde as temperaturas mínimas então entre os 15 e os 20 negativos, e as máximas entre os 10 e os 5 também negativos, as estações de metrô ficam abertas a noite inteira, para que os sem teto possam se recolher.

Não há tantos sem-teto como ainda há no Brasil, ou na Índia, por exemplo, mas há. E dizem os serviços sociais alemães: não só em Berlim, a maioria vem do antigo Leste europeu. Não são africanos, nem latino-americanos, nem isso nem aquilo. São pessoas cujas vidas perderam o rumo.

É uma nova realidade social que os fanados regimes comunistas desconheciam.

Havia outros problemas, é certo. O mais grave (que, em grande parte, levou os sistemas à bancarrota política) era a falta de democracia.

Mas, com todos os privilégios das “troikas” burocráticas, a desigualdade social era menor, e a miséria, em grande parte, desconhecida.

Agora não. A miséria e a pobreza crescem a olhos vistos.

É uma tragédia social e cultural de grandes proporções: são países que, muitas vezes, sofreram as piores agruras dos antigos regimes comunistas.

E que agora sofrem o pior do capitalismo emergente – ou submergente, digamos.

Na primeira vez em que vim a Berlim, em 1996, encontrei um velho militante comunista, professor de história, no memorial em honra dos mortos em 1848 e em 1919. Perguntei-lhe se ele tinha saudades do regime anterior. Estávamos a quase sete anos da queda do muro de Berlim, e a menos de cinco do fim da União Soviética.

Ele me respondeu que não. Explicou que era um regime que, no final, se convertera em policial, e que perdia mais tempo em controlar e reprimir os próprios cidadãos do que em combater – mesmo que só ideologicamente – os adversários do outro lado do muro.

Mas, disse-me ele, tinha saudades dos sonhos que tivera e que não tinha mais.

Uma lição de vida.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

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