Não há tantos sem-teto como ainda há no Brasil, ou na Índia, por exemplo, mas há. E dizem os serviços sociais alemães: não só em Berlim, a maioria vem do antigo Leste europeu. Não são africanos, nem latino-americanos, nem isso nem aquilo. São pessoas cujas vidas perderam o rumo.
Flávio Aguiar
Depois de dois meses de inverno ameno, a Europa Central e do Leste caíram num rigor siberiano.
O quadro é dramático no antigo Leste.
Por que antigo Leste?
Porque este não é um conceito geográfico, é geopolítico. Antigamente, países como a Áustria e a hoje República Tcheca (então Tchecoslováquia) ficavam na mesma longitude, mas pertenciam a dois mundos inteiramente diferentes: a primeira era do Ocidente, ou Oeste, e a segunda, do Leste.
A partir do último fim de semana as temperaturas desabaram, caindo em torno de 20 graus centígrados, ou mais.
O país que mais vem sofrendo com isso é a Ucrânia, antigamente parte da União Soviética. Já chega a mais de 80 o número de mortos por hipotermia – congelamento, em linguagem vulgar.
Na Polônia, numa única noite morreram dez pessoas.
Na Bulgária e na Sérvia também aumenta o número de mortos.
Quem são?
Moradores de rua na maioria. Sem-teto, como se diz aí no Brasil.
Também houve o caso de idosos isolados em residências cuja calefação falhou.
As temperaturas, no caso da Ucrânia, passaram para abaixo dos 30 negativos.
Neste país, abriram-se 1.700 centros de acolhimento para os sem-teto. Há agora uma campanha para doações nacionais e internacionais de colchonetes de isolamento (de ar, por exemplo) a serem postas ao alcance dessas pessoas.
Aqui em Berlim, onde as temperaturas mínimas então entre os 15 e os 20 negativos, e as máximas entre os 10 e os 5 também negativos, as estações de metrô ficam abertas a noite inteira, para que os sem teto possam se recolher.
Não há tantos sem-teto como ainda há no Brasil, ou na Índia, por exemplo, mas há. E dizem os serviços sociais alemães: não só em Berlim, a maioria vem do antigo Leste europeu. Não são africanos, nem latino-americanos, nem isso nem aquilo. São pessoas cujas vidas perderam o rumo.
É uma nova realidade social que os fanados regimes comunistas desconheciam.
Havia outros problemas, é certo. O mais grave (que, em grande parte, levou os sistemas à bancarrota política) era a falta de democracia.
Mas, com todos os privilégios das “troikas” burocráticas, a desigualdade social era menor, e a miséria, em grande parte, desconhecida.
Agora não. A miséria e a pobreza crescem a olhos vistos.
É uma tragédia social e cultural de grandes proporções: são países que, muitas vezes, sofreram as piores agruras dos antigos regimes comunistas.
E que agora sofrem o pior do capitalismo emergente – ou submergente, digamos.
Na primeira vez em que vim a Berlim, em 1996, encontrei um velho militante comunista, professor de história, no memorial em honra dos mortos em 1848 e em 1919. Perguntei-lhe se ele tinha saudades do regime anterior. Estávamos a quase sete anos da queda do muro de Berlim, e a menos de cinco do fim da União Soviética.
Ele me respondeu que não. Explicou que era um regime que, no final, se convertera em policial, e que perdia mais tempo em controlar e reprimir os próprios cidadãos do que em combater – mesmo que só ideologicamente – os adversários do outro lado do muro.
Mas, disse-me ele, tinha saudades dos sonhos que tivera e que não tinha mais.
Uma lição de vida.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
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