A tragicomédia encenada no STF deve alertar a nação para uma
necessária reforma do Poder Judiciário. Julgar é coisa séria, e não mero
espetáculo de televisão
Por: Mauro Santayana, para Revista do Brasil
Peço ao leitor que acompanhe o raciocínio de um leigo sobre o
resultado, até agora, do julgamento da Ação 470 pelo Supremo Tribunal Federal.
Os tribunais existem para exercer a justiça, como é óbvio. Eles partem de uma
acusação, que deve ser acatada pela representação da sociedade, em nosso caso,
o Ministério Público. O Ministério Público é provocado normalmente (embora nem
sempre) pelos órgãos policiais, que, depois de inquérito formal, indiciam os
suspeitos, mediante as provas recolhidas pelas investigações.
O promotor, ou procurador, pode aceitar o indiciamento – ou
não, se as provas e indícios lhe parecerem insuficientes. Sendo suficientes, o
Ministério Público faz a denúncia formal dos indiciados à Justiça. Foi assim
que ocorreu, com algumas singularidades, com o rumoroso processo. Primeiro, a
denúncia foi feita pelo procurador-geral da República ao STF, porque os
parlamentares e o ministro José Dirceu tinham direito ao foro especial. O
Supremo rejeitou o pedido de desmembramento feito por advogados de defesa –
alegando que apenas alguns acusados faziam jus ao foro especial, devendo a
maioria ser processada pela Justiça local. E assim iniciou inovações que
assustaram os observadores.
Um dos princípios da justiça é que a autoria do crime deve
ser claramente comprovada e que, na dúvida, o réu deva ser beneficiado. Vamos
supor que todos os indícios reunidos pelo procurador-geral da República tenham
sido verdadeiros. Por mais dedutivo que possa ter sido, só a sua inteligência
dedutiva não bastava para legitimar o libelo. São necessárias provas, e, no
caso de José Dirceu, o procurador e o relator o apontaram como “chefe da
quadrilha”, o chamado “ato de ofício”.
O que caracteriza o ato de ofício é a prova clara de que o
réu, no exercício de seu cargo, cometeu o crime ou mandou que outros o cometessem.
Como todos se recordam, no julgamento de Fernando Collor, o ministro Celso de
Mello determinou, com seu voto, a absolvição do ex-presidente, com o argumento
de que não havia o ato de ofício. No caso de José Dirceu, concluiu o ministro,
não era necessário mais o ato de ofício. Violou-se um rito do processo. E a
violação do axioma de que ninguém pode ser condenado sem provas é precedente
que põe em risco as garantias constitucionais dos cidadãos brasileiros.
O argumento usado pelo ministro relator é que se
caracterizava, no caso, a teoria do domínio do fato. Essa teoria, por mais
interessante possa ser, não faz parte de nossos códigos, nem da tradição de
nossos pensadores do Direito. Embora tenha nascido na Idade Média, foi
reavivada em Nuremberg, para punir os chefes nazistas. Re-exposta há poucos
anos pelo jurista alemão Claus Roxin, serviu para punir, entre outros, o
general Rafael Videla, na Argentina, e Alberto Fujimori, no Peru.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Roxin foi claro, ao afirmar
que o seu pensamento não fora devidamente assimilado pelos juízes do STF: para
estabelecer o “domínio do fato” é necessário mais do que a presunção do
julgador. É preciso que haja provas incontestáveis de que a ordem para a
execução dos delitos apontados tenha realmente partido do réu – como as houve
no caso dos dois ditadores latino-americanos. Enfim, faltou o “ato de ofício” –
ausência que socorreu Collor, mas não José Dirceu.
A conclusão é singela: o julgamento da Ação 470 foi
subjetivo. Não conseguiu o Ministério Público provas cabais da culpa de alguns
réus e, sem tais provas, o ministro relator foi buscar, na Alemanha – mas em
fonte errada –, o suporte teórico para a condenação. O STF, para julgar sem
provas, criou jurisprudência perigosa, que favorece a perseguição política e o
exercício dos preconceitos. A partir de agora, qualquer pessoa – e, quem sabe,
até mesmo algum ministro do Supremo – poderá vir a ser condenada sem provas. E
sem ato de ofício.
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