domingo, 16 de dezembro de 2012

Acima das provas



A tragicomédia encenada no STF deve alertar a nação para uma necessária reforma do Poder Judiciário. Julgar é coisa séria, e não mero espetáculo de televisão

Por: Mauro Santayana, para Revista do Brasil

Peço ao leitor que acompanhe o raciocínio de um leigo sobre o resultado, até agora, do julgamento da Ação 470 pelo Supremo Tribunal Federal. Os tribunais existem para exercer a justiça, como é óbvio. Eles partem de uma acusação, que deve ser acatada pela representação da sociedade, em nosso caso, o Ministério Público. O Ministério Público é provocado normalmente (embora nem sempre) pelos órgãos policiais, que, depois de inquérito formal, indiciam os suspeitos, mediante as provas recolhidas pelas investigações.
O promotor, ou procurador, pode aceitar o indiciamento – ou não, se as provas e indícios lhe parecerem insuficientes. Sendo suficientes, o Ministério Público faz a denúncia formal dos indiciados à Justiça. Foi assim que ocorreu, com algumas singularidades, com o rumoroso processo. Primeiro, a denúncia foi feita pelo procurador-geral da República ao STF, porque os parlamentares e o ministro José Dirceu tinham direito ao foro especial. O Supremo rejeitou o pedido de desmembramento feito por advogados de defesa – alegando que apenas alguns acusados faziam jus ao foro especial, devendo a maioria ser processada pela Justiça local. E assim iniciou inovações que assustaram os observadores.
Um dos princípios da justiça é que a autoria do crime deve ser claramente comprovada e que, na dúvida, o réu deva ser beneficiado. Vamos supor que todos os indícios reunidos pelo procurador-geral da República tenham sido verdadeiros. Por mais dedutivo que possa ter sido, só a sua inteligência dedutiva não bastava para legitimar o libelo. São necessárias provas, e, no caso de José Dirceu, o procurador e o relator o apontaram como “chefe da quadrilha”, o chamado “ato de ofício”.
O que caracteriza o ato de ofício é a prova clara de que o réu, no exercício de seu cargo, cometeu o crime ou mandou que outros o cometessem. Como todos se recordam, no julgamento de Fernando Collor, o ministro Celso de Mello determinou, com seu voto, a absolvição do ex-presidente, com o argumento de que não havia o ato de ofício. No caso de José Dirceu, concluiu o ministro, não era necessário mais o ato de ofício. Violou-se um rito do processo. E a violação do axioma de que ninguém pode ser condenado sem provas é precedente que põe em risco as garantias constitucionais dos cidadãos brasileiros.
O argumento usado pelo ministro relator é que se caracterizava, no caso, a teoria do domínio do fato. Essa teoria, por mais interessante possa ser, não faz parte de nossos códigos, nem da tradição de nossos pensadores do Direito. Embora tenha nascido na Idade Média, foi reavivada em Nuremberg, para punir os chefes nazistas. Re-exposta há poucos anos pelo jurista alemão Claus Roxin, serviu para punir, entre outros, o general Rafael Videla, na Argentina, e Alberto Fujimori, no Peru.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Roxin foi claro, ao afirmar que o seu pensamento não fora devidamente assimilado pelos juízes do STF: para estabelecer o “domínio do fato” é necessário mais do que a presunção do julgador. É preciso que haja provas incontestáveis de que a ordem para a execução dos delitos apontados tenha realmente partido do réu – como as houve no caso dos dois ditadores latino-americanos. Enfim, faltou o “ato de ofício” – ausência que socorreu Collor, mas não José Dirceu.
A conclusão é singela: o julgamento da Ação 470 foi subjetivo. Não conseguiu o Ministério Público provas cabais da culpa de alguns réus e, sem tais provas, o ministro relator foi buscar, na Alemanha – mas em fonte errada –, o suporte teórico para a condenação. O STF, para julgar sem provas, criou jurisprudência perigosa, que favorece a perseguição política e o exercício dos preconceitos. A partir de agora, qualquer pessoa – e, quem sabe, até mesmo algum ministro do Supremo – poderá vir a ser condenada sem provas. E sem ato de ofício.

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