domingo, 16 de dezembro de 2012

O STF, os barões da imprensa e o veredicto do povo



João Quartim de Moraes *

Estamos incontestavelmente diante de um progresso da civilização brasileira: habituada a chegar ao poder, uma vez derrotada nas urnas, pela rude técnica do golpe de Estado, a direita aposta agora no STF. Dos tanques na rua às nunca inocentes casuísticas e filigranas elaboradas pelas eminências togadas que compõem o pretório excelso, o avanço dos métodos é indiscutível; pode-se compará-lo ao que ocorreu com a extração de dentes graças à invenção da anestesia.
A extrema direita cavernosa, a tucanagem e outros neoliberais vibraram com o empolgante espetáculo que lhes proporcionou Joaquim Barbosa, conduzindo com zelo de Grande Inquisidor a ação penal 470, dita do “mensalão”. Intelectuais de programa e pensadores de aluguel, a serviço dos barões da imprensa, tratam de herói o novo presidente do STF, graças ao qual veteranos da resistência clandestina à ditadura, fundadores do PT, que tinham sido, durante os anos de chumbo, presos, torturados, deportados, foram condenados a penas muito pesadas, no caso de alguns, nomeadamente de José Dirceu, sem qualquer prova documental.
Dir-se-á que um passado de militância corajosa e de alto risco não confere imunidade para atos delituosos. Sem dúvida. Mesmo porque dizem que a lei é igual para todos. Mas será mesmo? Vinte anos atrás, alegando falta de provas e outras chicanas, o pretório excelso absolveu Fernando Collor de um delito pelo qual ele fora condenado pelo Congresso. Para avaliar o tamanho da gentileza dos sabichões togados, basta lembrar que PC Farias, parceiro e cúmplice do presidente decaído, teria desviado para a quadrilha da “Casa da Dinda” mais de um bilhão de dólares, conforme apurou a polícia federal, que indiciou cerca de quatrocentas firmas suspeitas e mais de cem grandes capitalistas. Não obstante, os aparelhos judiciário e mediático enterraram um inquérito de cerca de 100.000 páginas. Tudo prescreveu, ninguém pagou. Salvo PC Farias, eliminado num motel em circunstâncias convenientemente misteriosas.
A tucanagem também se beneficiou muito da benevolência judiciária. A compra de votos no Congresso em 1997 para alterar a Constituição de modo a tornar possível a reeleição de FHC, a escandalosa privatização da Telebrás e outros assaltos ao dinheiro público, documentadamente denunciados pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. em "A Privataria Tucana" (livro ocultado pela censura dos barões da imprensa) não mobilizaram a indignação seletiva do pretório excelso. Fábio Comparato lembrou a propósito dessa ética versátil, que “alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao votarem no processo do ‘mensalão’, declararam que os crimes aí denunciados eram “gravíssimos”. Ora, os mesmos Ministros que assim se pronunciaram, chamados a votar no processo da lei de anistia, não consideraram como dotados da mesma gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos agentes da repressão, durante o regime empresarial-militar: a saber, a sistemática tortura de presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a execução sumária de opositores ao regime, com o esquartejamento e a ocultação dos cadáveres [...]. O severíssimo relator do “mensalão”, alegando doença, não compareceu às duas sessões de julgamento.”
O nervo da questão está na eufemisticamente chamada “mudança de entendimento” do STF. A mesma “falta de provas” que garantiu impunidade a colloridos e tucanos (embora as provas documentais fossem muitas) não foi obstáculo para a condenação de José Dirceu. No afã de encontrar algum fundamento jurídico para sua sanha contra o ex-chefe da Casa Civil de Lula, Barbosa buscou apoio na doutrina dita do “domínio dos fatos”, que considera autor de um crime não só quem o executa, mas também quem tinha poder para tomar decisões numa hierarquia funcional formal ou informal. Entertanto, o jurista alemão Claus Roxin, formulador dessa doutrina, desmentiu o uso que Barbosa e colegas fizeram de suas ideias. “Quem ocupa posição de comando tem de ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado”, disse Roxin, reprovando a decisão do STF. Julgamento ainda mais severo foi o que povo exerceu por meio do sufrágio universal: a despeito da persistente campanha de intoxicação mental empreendida pelo punhado de “famiglie” que manda nos grandes meios de comunicação, a grande maioria do corpo eleitoral não se deixou impressionar. Votou como votaria se o STF não existisse.
* Professor universitário, pesquisador do marxismo e analista político.

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