Por Marcelo Coelho, na Folha
Acho que foi no ano passado. Imagens de um navio de cruzeiro
ocupado por corintianos circularam pela internet.
Escondendo a fileira branca dos camarotes, uma vasta faixa da
Gaviões atestava o triunfo popular. Em volta da piscina, homens e mulheres que
não eram da Ford Models se punham à vontade, numa completa indiferença pela
própria estética corporal.
Não me lembro se havia carvão e churrasquinho, mas a cerveja
e o pagode corriam sem limites.
Aquelas fotos valiam como uma espécie de teste para o
inconsciente político de cada um. A reação, de simpatia ou de repulsa, talvez
valesse como sinal das atitudes mais instintivas do espectador com relação à
era Lula.
Abuso, falta de senso, invasão, despreparo? O antilulismo
pode ser, sem dúvida, a repugnância diante de uma “petralhada” que ocupa os
espaços antes reservados às “pessoas de bem”.
Bem-estar, ascensão social, farra feliz? O cruzeiro
corintiano seria exemplo dessa espécie de revolução benigna, desorganizada e
imediata, garantida pela súbita melhoria dos padrões de vida experimentada nos
últimos anos.
Claro que isso corresponde apenas a uma parcela da história.
Sabemos bem, ou pelo menos sabemos um pouco mais, o que se passava na cabine de
comando do navio, enquanto o pagode e a cerveja entorpeciam os frequentadores
do convés.
Uma coisa não exclui a outra. Houve melhoria nos padrões de
vida, enquanto os últimos padrões de ética política eram arremessados em
alto-mar.
Seja como for, outro tipo de imagem circula agora na
internet, tendo novamente a torcida corintiana como personagem principal.
Vi, por exemplo, a montagem de um falso avião, verdadeira
sucata pintada de azul claro, com pilhas de caixotes, malas e trouxas amarradas
ao teto.
Era o “avião da torcida”, preparando-se para partir no rumo
do Japão. Outras fotos mostravam faixas corintianas, propositalmente escritas
num português horrível e num inglês pior ainda, incentivando o Corinthians na
batalha contra o “Chélssi”.
Os próprios corintianos, em suma, brincam com o estereótipo
que cerca a torcida do time. Assim como as piadas contra o São Paulo associam
—o que é clássico— um alto nível financeiro com baixo nível de masculinidade, a
pecha de “ladrão” e “maloqueiro” é coisa com que todo corintiano está, de algum
modo, forçado a conviver.
Existe o “orgulho corintiano” assim como o “orgulho gay”. E
desse orgulho faz parte não a recusa à imagem de pobreza, mas sim a sua total
apropriação. Na mesma linha, cresce o “orgulho zona leste”.
Sinal, acredito, de que não importa simplesmente a relativa
melhora nos padrões de vida. O caminho da ascensão social, quando aberto apenas
a uns poucos membros especialmente empreendedores, talentosos ou simplesmente
sortudos da classe baixa, tende a trazer consigo a negação do passado
periférico.
No máximo, há a história edificante da infância pobre do
grande empresário. O próprio Lula é um subcapítulo do gênero.
A melhoria coletiva, por mais modesta que seja, tem outro
efeito. Você sobe, mesmo ficando no mesmo lugar; a antiga favela se torna um
bairro melhorzinho, especialmente se pacificado. A zona leste —uso o termo em
sentido figurado— já não envergonha.
E a pobreza real, embora persista, vai se transformando
também em patrimônio simbólico, em fato de cultura. Chegará o dia, espero, em
que as antigas favelas do Rio se tornarão algo como as aldeias medievais tão
pitorescas que hoje se visitam no interior da Itália, sem memória do esgoto, da
miséria e das facadas de séculos atrás.
O corintiano postou, ele próprio, a foto do avião-favela
parado na pista; sabe que, espremendo os gastos do cartão, pode embarcar para
Tóquio. Lá ele se vira.
Contam-se histórias de quem desceu em terras japonesas sem
falar uma palavra de inglês, sem nenhuma informação sobre fuso horário nem
endereço de hotel.
Pode ser apenas uma lenda. A quantidade de corintianos que
embarcou não se compunha, é claro, de pobres irremediáveis. Em qualquer time,
seria fácil encontrar tipos sociais bem parecidos.
A simbologia funciona, entretanto. Sem ser corintiano, só
posso esperar que no Brasil de hoje estejam sendo comemoradas vitórias ainda
mais significativas, e permanentes, do que a do título mundial conquistado pelo
time.
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