domingo, 16 de dezembro de 2012

Política é uma arte de risco (Parte 2)


"Assim como era arriscado pegar em armas nos anos 1970, é arriscado também mudar um país pela via eleitoral. E estamos mudando"

Por: Paulo Donizetti de Souza, Revista do Brasil

Não cometi crime, não cometi ilícito. Fiz escolhas políticas. Os empréstimos que assinei foram registrados e cobrados judicialmente. Então são empréstimos legais. Meu sigilo bancário, fiscal e telefônico foi quebrado. Eu quebrei. Não encontraram nada, mas nada disso valeu.
No Fórum Social Mundial de 2002, a Maria Conceição Tavares, numa mesa junto com Lula, dizia que as pessoas não deviam esperar que uma vitória eleitoral instalaria o socialismo. Seria necessário, antes, uma ruptura gradual com o modelo econômico vigente. Quando e por que o PT concluiu que nem essa ruptura seria possível?
Antes da campanha, na Carta aos Brasileiros (na qual o partido se comprometia a “cumprir os contratos”) e no próprio programa de governo. Fizemos uma escolha histórica. A minha geração tinha vivido com a ideia de era preciso derrubar a ordem para mudar a ordem. Derrubar a casa para construir uma nova. E nós fizemos a escolha de mudar a ordem por dentro da ordem. Mudar a casa a partir de dentro dela. Não tínhamos força para fazer a ruptura. Aí nós fomos mudando a ordem por dentro da ordem. O Lula dizia: “Eu não vou deixar o país quebrar na minha mão”. E ele foi fazendo essa mudança. O que o Brasil tem hoje, em relação a crescimento, a política externa, distribuição de renda, diminuição da pobreza, foi um processo. Assim como foi um drama pra nós querer mudar a ordem peitando-a de frente, foi um drama muito grande mudar a ordem por dentro da ordem. Esse drama é o que explica a crise de 2005.
O PT foi mudar a ordem dentro da ordem, e fazer algumas alianças inéditas dentro da ordem, e a ordem mudou o PT?
A política é uma arte de risco. Assim como era arriscado pegar em armas nos anos 1970, é arriscado também mudar um país pela via eleitoral. E estamos mudando. Eu pregava o voto nulo em 1966, 1970. Mas dizia: “Não adianta votar, temos de pegar em armas”. Porque é fácil pregar o voto nulo e ficar em casa. A nossa geração foi derrotada, mas não baixou a cabeça. A gente resistia, até na cadeia. Fazia greve de fome, fazia greve de silêncio...
Mas era greve de fome mesmo ou entrava um lanchinho clandestino?
Nada. Os presos comuns respeitavam a gente porque era só água. Eles queriam mandar comida por fora, e a gente não comia. Tanto que depois de uns dias você vai para o soro. E se o segurança vacilava a gente arrancava o soro da veia.
Depois que Roberto Jefferson deu aquela entrevista falando do “mensalão”, em abril de 2005, contaminou a vida familiar? Vocês imaginavam as consequências que viriam?
Genoino – Olha, foram sete anos de muita perturbação, cada dia uma agonia. O que nos tranquilizava, na relação familiar e com os amigos, é que sempre confiaram muito em mim, nunca houve dúvida. Meu pai e meus irmão sabem como eu vivo. A solidariedade que eu recebi foi muito forte. Uma carta da Miruna em 2005 foi tão importante como agora. Estou tranquilo com a minha consciência. Eu não cometi crime, eu não cometi ilícito, eu fiz escolhas políticas. Os empréstimos que eu assinei foram todos legais, foram registrados na Justiça Eleitoral, foram cobrados judicialmente, eu tive minhas contas bloqueadas, o PT homologou pagamento com aval judicial e pagou em quatro anos. Então não são empréstimos fictícios, são legais. Como presidente do PT, o que eu fazia eram reuniões, as pessoas diziam que eu era deputado sem mandato (havia perdido a eleição para governador de São Paulo e pela primeira vez desde 1983 estava sem mandato parlamentar), porque eu vivia no Congresso. Eu tinha essa tranquilidade interior. Ela é muito importante.
E de onde extrair essa tranquilidade?
Aprendi muito na cadeia. Quando está preso com seus companheiros, se não tiver uma tranquilidade interior de que o que está fazendo não é crime, você se arrebenta. E nós encontrávamos energia até para descobrir que o relógio serve como espelho, você limpa o fundo do relógio, pule com cinza de cigarro – isso demora – e tem um espelho, bota a mão e vê o corredor inteiro. Você descobre que os vasos sanitários da cadeia podem servir de telefone se tirar a água, combina todo mundo na mesma hora, tira a água e se comunica. Depois você aprende a telegrafar, batendo em código Morse na porta, na parede. Enfim, vai descobrindo maneiras de sobreviver.
Tem de haver muita confiança...
Minha geração é muito marcada por essa solidariedade. Aliás, eu tive dois exemplos marcantes de solidariedade. Um quando eu estava uma vez preso lá no Araguaia, em Carolina do Norte, com crise de malária, febre de 40 graus, e tive uma sessão de choque elétrico, que também desidrata. Juntaram as duas coisas, e eu não tinha água de jeito nenhum, não cuspia, não urinava, corpo seco. Gritei a noite inteira por água. De madrugada um soldado, que eu não sabia quem era, jogou uma garrafa de água mineral por baixo da cela. A solidariedade não tem rosto nem tem ideologia, ela se manifesta com a qualidade do ser humano. Outro exemplo, recente, foi uma carta que recebi do cineasta João Moreira Salles. Ele lembrou quando o acolhi com um abraço no Congresso, num dia que passou sufoco na CPI do Narcotráfico (o cineasta pagava uma bolsa mensal de R$ 1.200 ao traficante conhecido como Marcinho VP para que escrevesse um livro com sua história). E me escreveu agora retribuindo aquele “abraço solidário”.
Como você avalia o julgamento?
Esse julgamento se deu numa conjuntura política muito específica. Fizeram coincidir com as eleições e a grande imprensa jogou um papel decisivo, porque criou uma visão binária – ou condena, ou é conivente com a corrupção – e criou um maniqueísmo, no sentido de não examinar provas, os autos, os detalhes, não individualizar as condutas. Meu sigilo bancário, fiscal e telefônico foi totalmente quebrado. Eu quebrei. Não encontraram nada, zero, mas isso não valeu. Vou lutar até o fim da minha vida, jamais vou deixar de recuperar a minha história, que não é de dinheiro, riqueza, é de ideias. Eu fui deputado de ideias, eu sempre morei no hotel mais simples em Brasília, nunca tive carro, nunca fui de ir em festa, essas parafernálias do poder. Esse julgamento me deu alguns pesadelos. Alguns a Rioco presenciou, levou uns empurrões enquanto dormia. Eu misturava as sessões dos anos de chumbo com figuras de capa preta. Causou muito impacto, muito pesadelo, porque você junta as cenas.
Tem muita gente com sede, agora, de que o “mensalão tucano” também seja julgado logo.
Eu prefiro não falar nisso. A esquerda tem de levar muito a sério este pensamento. Não é por acaso que a revolução mais libertária do mundo, que criou as palavras de ordem mais universais, “liberdade, igualdade e fraternidade”, e criou o hino mais bonito, a Marselhesa, produziu também a guilhotina. Não é por acaso que a revolução mais libertária, de 1917, na Rússia, produziu os crimes do stalinismo. Eu defendo uma esquerda humanista, socialista, democrática, temos de ter a noção correta do perdão, não do esquecimento, do perdão. Não existe olho por olho, dente por dente. Somos pacientes para que a verdade um dia prevaleça.
No PT hoje existem os que querem que o partido faça o combate jurídico, porém acate a decisão do STF e toque-se a vida; e há os que defendem mobilizar, fazer manifestação, barulho. O que você pensa a respeito?
Num Estado democrático de direito, decisões de um dos poderes quem é democrata tem de acatar, porque a desobediência civil se dá quando há ditadura e opressão violenta. Na democracia as instituições têm de ser respeitadas. Eu cumprirei as decisões do STF, mas vou sempre discuti-las. Cumprir não significa baixar a cabeça. Eu estou convencido da minha inocência, então vou lutar para prová-la, mas isso não significa que vou desobedecer o Supremo. Nós demos a vida por essa democracia, nós a construímos. Tem imperfeições, é necessário uma reforma política, quebrar o monopólio dos meios de comunicação, democratizar a informação. A Lei de Acesso à Informação é o maior exemplo de que a informação não pode ser um bem privado nem um bem estatal. É um direito do cidadão, como comer, trabalhar. Precisamos de uma reforma do Estado no sentido democrático, porque a democracia brasileira é um processo em evolução.
O Oded Grajew chama de “corrupção legalizada” as contribuições das empresas às campanhas eleitorais. Dez por cento dos doadores privados respondem por 70% das doações. Isso não é uma forma de “compra de voto”? Esses setores não cobram a fatura dos políticos? Existe disposição para uma reforma política?
Eu acho que é necessário uma reforma política centrada em dois pontos: financiamento público e fidelidade partidária. Mas eu não concordo com a visão udenista de tratar o Congresso como se fosse uma casa de corruptos. Essa Constituição, chamada corretamente de cidadã, como é que foi feita? Foi feita na disputa, teve de tudo, concessão de rádio, teve deputado que celebrizou a frase “é dando que se recebe”, teve quebra de vidro, pancadaria... Eu tinha 36 anos e perante Ulisses Guimarães eu era menino, e eu dizia: “Doutor Ulisses, e a Justiça?” Aliás, o lobby da Justiça foi o mais forte na Constituinte. Ele dizia: “A Justiça não tem rampa. Rampa tem o Parlamento e o Executivo, porque o povo bota e tira”. Não tem problema, deixa o povo entrar, xingar, jogar chinelo, moeda, hoje você perde a votação, amanhã ganha. Deixa a UDR aqui dentro, amanhã vêm os sem-terra, depois os índios, depois vêm os banqueiros, as multinacionais... Traz tudo aqui para dentro, que essa bagunça democrática vai produzir a Constituinte. E ela foi produzida assim. A visão udenista da política, eu não concordo, a maioria do Congresso é de pessoas corretas.
O PT assinou a Constituinte?
Assinou. Votou contra, mas assinou. Porque muita coisa que defendíamos está lá. Agora, tudo foi fruto de negociação intensa. Política não pode ser essa coisa de tratar como inimigo, como uma guerra, ter de destruir o outro. Isso tem de acabar. Política tem disputa e negociação. Quando iniciamos a Constituinte tinha uma comissão de sábios, que elaborou um projeto, e nós deixamos de lado. Ela nasceu nas comissões, subcomissões, onde se quebrava o pau. Teve revólver, quebra no microfone, paulada, chute. Mas a política é assim. Essa ideia de que política é uma coisa amorfa está errada. Olha o destino da Europa, dos Estados Unidos. Você sataniza a política e ganha um Berlusconi por décadas. O princípio de que o poder emana do povo tem de ser radicalizado.
Ao se referir à conduta do STF no “mensalão” a presidenta Dilma Rousseff disse que a política é humana e todos estão sujeitos a erros.
Claro. Por isso precisa haver um conjunto de regras e normas para corrigir, evitar, punir e fazer as coisas separando o joio do trigo. Não dá para colocar todo mundo dentro do mesmo saco. A criminalização da política é um equívoco, porque a descredencia. E política significa paixão. Uma coisa que me choca: dia da eleição no Brasil é um dia de tristeza, é um feriadão. Eleição é um dia que você devia estar alegre, com a roupa do seu partido, com a bandeira do seu partido, com o carro enfeitado e tudo a que você tem direito, porque é a soberania popular se expressando. Aqui tem uma série de proibições, não pode votar com a estrela, com tal cor, não pode isso, não pode aquilo... Na eleição os artistas são o povo e o eleito, e os juízes e promotores são os garçons da festa. Mas aqui no Brasil é o contrário.
Existe um preconceito em relação a política, a greve, a movimento social, e temos de enfrentar essa maré, porque as mudanças não nascem de uma sentença, nascem da luta. Eu me preocupo muito com isso, por que eu nasci dessa paixão, da paixão do “é proibido proibir”, de usar um banquinho para subir e fazer comício-relâmpago... Quando o Rockfeller veio ao Brasil, nós fizemos um comício de um minuto no Largo da Concórdia, era um minuto em cima do banquinho e sair correndo. Mas isso é o que muda o país, não é essa coisa morna, pantanosa. Os operários conquistaram os direitos porque fizeram greve, teve piquete, teve quebra-pau. A política não é amoral, mas a moral não pode estar no centro da política. Você tem de ter princípios morais e éticos, por isso que é preciso uma reforma política. Agora, a política tem autonomia.
O PT se relaciona bem com o jornalismo político no varejo, mas no atacado leva chumbo. Por que, com dez anos no poder, os governos petistas têm medo de enfrentar a batalha contra o monopólio e pela da democratização do acesso à informação?
Em primeiro lugar, um depoimento pessoal. Eu conheci o lado poético e o lado sanguinário da mídia. Eu fui projetado pela mídia, era fonte, dava entrevista permanentemente. Ao mesmo tempo, vi o lado sanguinário da notícia, da fofoca. A liberdade de imprensa é um valor fundamental. A informação é um bem público, é um direito do cidadão, não é bem privado nem estatal. Quando a gente fala de “democratizar a informação” é no sentido de facilitar o acesso, o monopólio dificulta, transforma a grande mídia no partido da ordem estabelecida e proprietário do que é certo e do que é errado. Um país como o nosso tem de incentivar as mídias alternativas, a mídia regional, a produção cultural regional, captar a riqueza da diversidade cultural, étnica, política e social do país. Tivemos de priorizar esse projeto que está mudando o Brasil. Mudou o padrão de renda, mudou o crescimento, a soberania da presença externa, o papel do Estado. Agora, temos duas grandes tarefas, que é uma reforma política e uma democratização do acesso à informação. E resgatar o sentido da política, reafirmar o valor do Congresso e do Executivo, do poder que emana do povo. Diminuir o peso do dinheiro nas campanhas. Eu tenho uma visão otimista do Brasil. Apesar de estar enfrentando essa situação, sou otimista. Agora, não se faz omelete sem quebrar ovos.
Faz parte dos seus planos assumir o mandato de deputado federal?
Não é uma questão de desejo pessoal. Eu respeito a Constituição Brasileira e respeito a soberania popular. Tive 92 mil votos, sou o primeiro suplente, e a Constituição determina que se um parlamentar renunciar o presidente da Câmara convoca o suplente. Eu estou sempre recomeçando. Não é por acaso que uma das iniciativas da Rioco é um bordado, depois ela vai falar, que remete a um pássaro, Fênix, que nasce das cinzas. Você achava que quando estava preso eu imaginava que um dia ia ser deputado? Jamais passou na minha cabeça, eu queria água, não sabia o que ia acontecer no dia seguinte. A gente deve ser paciente com as nossas convicções, e uma coisa que está sendo importante para mim é a solidariedade.

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