De repente, o Brasil virou o barnabé da hora aos olhos da
crítica econômica conservadora.
A Economist, uma espécie de espírito santo do credo
neoliberal, pede a demissão de Mantega e desqualifica os esforços
contracíclicos do governo Dilma diante da terra arrasada criada pelos livres
mercados no cenário mundial.
Assemelhados nativos tampouco afeitos ao pudor retiram a
soberba do bau e voltam a pontificar como se a reforma gregoriana tivesse
eliminado o mês de setembro de 2008 do calendário jornalístico. E com ele as
ruínas legadas pela supremacia das finanças desreguladas.
Rapinosos homens de negócios dão a sua bicada: o problema do
país é o custo da 'folha'. Os salários aqui crescem o dobro da média mundial,emendam
os editoriais. Por 'média mundial' entenda-se a situação do emprego na pujante
economia da Europa hoje, onde a austeridade neoliberal ressuscitou a mais valia
absoluta: corta-se o salário e estende-se a carga de trabalho de quem ainda
trabalha. As refeições são feitas nas filas da Cáritas que distribui um milhão
de pratos de comida por dia só na Espanha.
Governadores tucanos impávidos diante do incêndio global
boicotam a redução no custo da tarifa elétrica proposto por Dilma como se não
houvesse amanhã na economia dos próprios estados e no escrutínio das urnas.
O Tesouro vai cobrir a estripulia dos sapecas do PSDB. Mas
jornalistas alinhados acodem em massa na sua especialidade.
O jogral que nunca desafina saboreia o PIB baixo e alardeia a
primeira consolidação política do levante: tudo decorre da
"ineficácia" do que chamam de 'intervencionismo estatal excessivo do
governo Dilma'.
O que, afinal, deseja a turma braba que jogou a humanidade no
maior colapso do sistema capitalista desde 1929 --e só poupou o Brasil porque
não pode derrubar Lula em 2005, perdeu em 2006 e foi às cordas de novo em 2010?
Simples: enquanto as togas cuidam do PT e de 2014 , trata-se
agora de interditar o debate da crise e sabotar a busca de um novo modelo de
desenvolvimento a contrapelo dos 'mercados autorreguláveis'.
É a volta do garrote a cobiçar o pescoço soberano do país.
Compreender o papel que joga o monopólio midiático nesse
estrangulamento é crucial para reagir com eficácia ao cerco.
Em que medida é possível fazê-lo sem um contraponto de vozes
plurais a afrontar o monólogo conservador na formação do discernimento social?
Mais que isso. Em que medida é possível restringir e vencer o embate no plano
exclusivamente econômico sem alterar o desequilíbrio clamoroso na difusão das
idéias? Vejamos.
O garrote da história:
mídia interdita o debate e a solução da crise
Até que ponto o monopólio midiático é responsável pelo
'consenso' que jogou o mundo na pior crise do capitalismo desde 1929? A
pergunta não é retórica, tampouco a resposta é desprovida de consequências
políticas práticas. Imediatas, urgentes, imperativas.
Trata-se, por exemplo, de saber em que medida a formação do
discernimento social, condicionado por esférica máquina de difusão de certos
interesses, dificulta a própria busca de soluções para a crise.
Mais que isso. Se esse poder blindado que se avoca imune à
regulação -- como se constata em tintas fortes hoje na Argentina, mas não só--
tornou-se um dos constrangimentos paralisantes dessa busca, um difusor de
impasses e confrontos, como democratizá-lo?
É disso que trata o Especial de Carta Maior que emoldura o
histórico '7 D' argentino com a amplitude e a urgência que o tema encerra em
nossos dias (leias as reportagens e análises nesta pág)
Medicada com doses adicionais da poção que a originou, graças
ao receituário reiterado pelo dispositivo midiático, a desordem neoliberal
arrasta a humanidade para o seu quinto ano de arrocho e incerteza.
A rigor, não há qualquer sinal otimista de convalescença ou
superação.
A OIT estima que o mundo cadastrável chegará ao final de 2012
com um exército de 200 milhões de desempregados.
O estoque não foi acumulado integralmente na derrocada
iniciada em 2008, mas é ela que o robustece e realimenta.
Ademais de gerar sucessivas massas de demitidos, a desordem
neoliberal torna irrealizável a tarefa projetada pelo organismo da ONU que
inclui a criação de 600 milhões de vagas nos próximos dez anos --duzentos
milhões para zerar o saldo acumulado; mais 40 milhões de novos empregos anuais
para atender às gerações que chegam ao mercado de trabalho.
A colisão de longo curso que esses números condensam desvela
a raiz política de um impasse que expõe a natureza imiscível da supremacia
financeira com os requisitos indispensáveis à convivência compartilhada.O
emprego e tudo o que ele adensa em nossa sociedade em termos de direitos e
dignidade é um desses pontos de tensão inegociáveis. Inclua-se ademais o
principio do escrutínio democrático dos conflitos, do qual o capital a juro se
isenta, e o acervo de direitos que revestem o cristal da civilização
--patrimônio humanista que o atrapalha.
Em nenhum outro lugar do planeta essa incompatibilidade
revela um ambiente de conflagração tão eloquente e pedagógico quanto no cenário
desconcertante da zona do euro.
Se os mercados doentes deles mesmos são capazes de reduzir o
berço do Estado do Bem Estar Social a um matadouro de direitos, em que a classe
média recorre a instituições de caridade para não passar fome, caso hoje da
Espanha, o que pode esperar o resto do mundo premido pela mesma lógica?
A Europa paga em libras de carne humana o ajuste de
competitividade entre economias pobres e ricas cobrado pelo esgotamento do
ciclo de crédito barato e irresponsável.
A paridade intocável do euro revela-se assim o pelourinho de
uma unificação subordinada aos desígnios dos mercados --e sobretudo da
exportação e da finança germânica Em respeito a esse 'senhor' --e a sua
senhora, Angela Merkel-- aciona-se o triturador de uma austeridade que reduz
humanos a coisas, atribuindo-se às coisas a deferência que caberia aos humanos.
Saldo da reciclagem até o momento: mais de 19 milhões de
desempregados na zona do euro; 119,6 milhões de pessoas -24,2% da população- no
limiar da pobreza em toda a Europa; US$ 1,3 trilhão entregues aos bancos
europeus para salvá-los deles mesmos, depois de se esponjarem em estripulias
tóxicas e ativos podres.
O custo humano da
inversão de papéis não sensibiliza a mídia conservadora.
Ela continua a rezar pela cartilha da autossuficiência dos
mercados, mesmo depois de desautorizada nos seus próprios termos por cifras
épicas como essas.
Para a lógica editorial predominante, vivemos sob a
irrelevância das evidências. A narrativa hegemônica, ressalvadas as exceções de
analistas honestos, não cede.
No Brasil criou-se uma fronteira sanitária esquizofrênica. O
noticiário internacional da crise não dialoga com a pauta local que ainda não
virou o calendário anterior a 2008. O empenho em desqualificar o ativismo
estatal dos governos petistas continua intacto, auxiliado pelo radicalismo
golpista das editorias de política.
Hoje, a ênfase editorial, já colada à campanha tucana de
2014, consiste em provar a ineficácia das medidas contracíclicas que
redefiniram o tônus da política econômica herdada do ciclo tucano neoliberal.
Incluem-se no alvo, naturalmente, a derrubada dos juros
--ainda altos para o padrão internacional, mas no menor nível da história; a
intervenção estatal indireta na banca, induzindo-a a cortar spreads pela
concorrência agressiva das instituições públicas; as desonerações e subsídios
ao setor produtivo, da ordem de R$ 45 bi (1% do PIB); a persistência de
incentivos ao investimento, ao crédito e à construção civil e, mais
recentemente, uma turquesa nos lucros indevidos das concessionárias de energia
elétrica --impondo-lhes um desconto tarifário proporcional ao valor das
amortizações consolidadas.
Três estados da federação sabotaram a medida
reivindicada,entre outros, por associações industriais, como a Fiesp, de São
Paulo. Os três estão sob o comando de governadores do PSDB.
Palavras de um deles que ilustra a mórbida reafirmação de um
passado posto em xeque pela crise, cuja reiteração conservadora sonega o
direito ao futuro aqui e alhures:
"A presidenta Dilma Roussef está fazendo uma profunda
intervenção no setor elétrico a pretexto de reduzir a conta de luz".
A sentença condenatório dá pistas da sofisticação intelectual
e do arrojado arcabouço político do novo delfim a suceder Serra na preferência
conservadora à presidência da República em 2014, Aécio Neves.
Recapitulemos: estamos na maior crise do capitalismo em 80
ano, produzida pelo credo do Estado mínimo associado à celebração suicida dos
mercados autorreguláveis.
Por 'profunda intervenção' entenda-se a prerrogativa do poder
concedente de abrir o leque de alternativas à renovação de concessões,
adicionando-lhes medidas de interesse do desenvolvimento do país e de sua gente
em meio à hecatombe econômica mundial.
São esses os parâmetros de um confronto mediado por um
dispositivo de comunicação todo ele alinhado ao atilado equipamento analítico
do senhor Neves.
Transporte-se os mesmos personagens, o mesmo iimperativo de
redefinição regulatória, a mesma rebelião das naftalinas para a discussão de
uma outra concessão estratégica a reclamar a atualização dos seus termos: a
área das telecomunicações, cujo protocolo de funcionamento remonta a 1962.
Não se trata de um exemplo aleatório.O que está em jogo é um
incontornável requisito à superação da crise, cuja origem --o corpo de
interesses e idéias que a engendrou- teve no monopólio midiático um pregador de
eficiência implacável.
Coube-lhe acionar a britadeira da desqualificação e disparar
os mísseis do interdito contra agendas, políticas, lideranças, plataformas,
governos e países recalcitrantes ou insubordinados.
Ação equivalente registra-se agora na deriva do ciclo
histórico demarcada pela falência do Lehman Brothers,em 2008.
A urgência democrática é clara e corre contra o relógio da
restauração em marcha.
Trata-se de afrontar a espiral descendente da recessão
mundial com uma nova hegemonia de forças e políticas que afrontem e superem a
desordem dos mercados desregulados em sua derradeiro cobiça: fazer do colapso o
'novo normal' sistêmico, às custas da exceção permanente de direitos e
conquistas sociais.
Os interesses ameaçados por esse mutirão progressistas, do
qual Brasil --com os seus limites, que não são poucos-- é um dos protagonistas
de peso, jogam hoje a rodada do vale tudo.
A expressão vale tudo descreve com fidelidade o que tem sido
--e será, cada vez mais-- a rotina do noticiário não apenas econômico, mas
político, judicial e policial dos últimos meses.
As ideias e interesses assim veiculados amplificam a sua
força material graças à abrangência de um aparato de mídia sem rival no país
--assim como acontece na Argentina pautada pelos interesses do polvo difusor
que atende pelo nome de 'grupo Clarín'.
A superação dessa usina de consenso asfixiante não se dará
exclusivamente no plano da luta ideológica.
Os partidos e forças que evocam a democratização das
comunicações tem a obrigação de dar o exemplo prático em casa.
Urge, entre outras iniciativas, materializar a democracia na
vida interna das organizações e, sobretudo, na gestão participativa da
sociedade sob o comando de administrações progressistas, como será a da capital
paulista.
Mas o empenho beligerante com que o dispositivo midiático
assumiu a defesa dos interesses associados à crise não pode ser subestimado.
Ilude-se ao ponto da irresponsabilidade suicida o governante
que ainda acredita ser possível superar o círculo de ferro do colapso mundial
no plano exclusivo do êxito econômico.
Política é economia
concentrada.
O espessamento político da crise tem na sabotagem tucana à
redução da tarifa elétrica, e na forma como ela é noticiada, uma tênue
ilustração do horizonte escuro que se prenuncia.
Quem tem a responsabilidade de liderar o passo seguinte da
história não pode conceder à regressividade narrativa o monopólio do diálogo
político com a sociedade.
A lição é clara e vem se juntar a uma montanha desordenada de
escombros históricos originários de desastres causados pela hesitação e o
acanhamento político diante do dia D --como o '7D' argentino, corajosamente
agendado pela democracia do país vizinho.
Saul Leblon-Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário